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Ao futebol brasileiro, com carinho

Por Fernanda Chamusca Paes

Tudo começou em São Paulo, no dia 14 de abril de 1895. Várzea do Carmo, bairro do Brás. Charles Miller, protagonista dessa história1, foi o pioneiro em organizar a primeira partida de futebol no Brasil2. Uma partida entre funcionários das empresas São Paulo Railway Company e São Paulo Gaz Company3. A bola rolava nas esquinas da cidade, nos bairros e nas ruas. O Brasileiro se conectava, pouco a pouco, com a atividade que se tornaria símbolo de resistência de toda a nação.

“Que bonito era as bandeiras tremulando, a torcida delirando, vendo a rede balançar…”4

Apenas em 21 de julho de 1914, estreou a Seleção Brasileira de Futebol. O primeiro campeonato conquistado pela seleção, hoje em dia conhecido como Copa América, aconteceu em 1919, mas foi a partir de 1930 que tudo “começou”: o mundo parou para assistir a Copa do Mundo de Futebol.

Quase 27 anos depois, o Brasil voltou a conquistar um título. Mais um campeonato sul- americano, mais uma pitada de esperança em 1949. A bela espera, entretanto, se tornou uma doce ilusão para quem viu e viveu o “Maracanazo” de 1950. O Brasil foi sede da Copa do Mundo e a Seleção Brasileira precisava de apenas um empate para poder sagrar-se campeã da Copa do Mundo de Futebol pela primeira vez. O Uruguai, contudo, venceu a partida e foi campeão do torneio5.

A partir de 1954, buscou-se a renovação. Didi, Nilton Santos, Julinho, Djalma… uma gama de atletas que brilharam usando pela primeira vez o uniforme amarelo da seleção. Dos traumas de 1950, da decepção de 54, esperava-se tudo, menos o que estava por vir. Em 1958, a maturidade dos veteranos e a expectativa dos novatos marcaram a era de ouro de um Brasil inesquecível. A nossa primeira Copa do Mundo para contar história!6

Na Copa de 1962, foi nosso novamente! E em 1970 também. Injustiça mesmo foi não ter sido nosso em 1982. Ah, seleção de 82, como você merecia! A verdadeira expressão de futebol-arte! De uma bela história da geração anterior, o futebol brasileiro só comprovava o seu potencial em ser uma máquina de talentos7.

Poderia passar anos falando da criatividade e capacidade técnica apresentada pelos brasileiros desde 1958, entretanto, apesar do destaque, havia um longo período sem vencer uma Copa do Mundo. O Brasil demonstrava garra e talento, mas era frustrado diante das derrotas acirradas e decisivas. As outras seleções estavam se qualificando, aprendendo a profissionalizar o seu futebol com o passar dos anos. E aqui identificamos um dos maiores defeitos do povo brasileiro: o imediatismo.

A luz da vitória brilhou novamente em 19948. Voltamos a sorrir! Longo período sem títulos? Tolice!

Impossível não se recordar das icônicas narrações de Galvão Bueno. A disputa de pênaltis que parou o país, a final que consagraria uma seleção merecedora e representante de uma longa jornada iniciada nos anos 30. Romário, Bebeto, Branco, Mauro Silva, Taffarel, Mazinho, Cafu… um grupo que batalhou pela vitória e abriu as portas para uma nova geração de atletas.

Para além! Uma geração que abriu as portas para um novo momento do futebol brasileiro: a exportação de grandes talentos para o mercado europeu. E aqui temos uma mudança significativa para o cenário brasileiro perante a modalidade. O mundo estava se profissionalizando no Futebol e clamava pelos talentos do “País do Futebol”9.

Na cabeça do torcedor brasileiro, não se passaram 63 anos desde a conquista da primeira copa do mundo de futebol. A influência do tempo parece não contar quando se trata de encantamento, paixão e esperança pelo triunfo sempre. Todavia, esse mesmo tempo foi o suficiente para que outras nações pudessem entender a lógica e o potencial de um bom planejamento, acreditar no processo e investimentos a longo prazo para o futebol. Entender que o resultado demoraria anos ou décadas para chegar. E sabemos que quem não compreendesse esses pilares, ficaria para trás.

Por muitos anos, brilharam as estrelas dos clubes nacionais.

“Quem não amou a elegância sutil de Bobô”10 com o Bahia. O Santos do Pelé, o Flamengo do Zico, Vasco da Gama do Vavá, Botafogo do Garrincha, o Corinthians do Rivellino e do Sócrates, a Academia Palmeirense de Ademir da Guia, assim como tantos outros que fizeram história pelos clubes brasileiros. Até 1986, os atletas da Seleção Brasileira ainda atuavam, em sua maioria, no território nacional.

A partir de 1990, inicia-se, essencialmente, o êxodo para o mercado do futebol europeu. Com mais investimentos e facilidades de acesso, a Europa foi se tornando o sonho possível dos grandes talentos brasileiros.

E nesse momento, as perspectivas mudaram. O futebol europeu se distanciou do resto do mundo. O mercado brasileiro ganhou com as transações, mas também perdeu com a saída de grandes atletas, ainda muito jovens, dos seus campeonatos. O futebol nacional prospectou e retrocedeu, como todo investimento, assumiu o risco inerente e a consequência como um fator importante para a valorização do produto11.

E por que colocar a Seleção Brasileira como parâmetro de análise? Porque é o lugar onde se reúnem os melhores atletas, os mais talentosos e, muito provavelmente, os mais rentáveis. Atletas como Neymar, que até hoje garante o recorde de transferência mais cara de todos os tempos. Atletas como Vinicius Júnior, que servem de parâmetro para uma verdadeira análise sobre o potencial do futebol brasileiro e o seu atual distanciamento do futebol europeu.

Segundo informe do FIFA Transfer Matching System12, o Brasil segue invicto como nação que mais exporta atletas para o mundo. O que isso quer dizer? O produto ainda está valorizado. Contudo, clarividente é o abismo entre o futebol europeu e o futebol brasileiro em níveis técnicos e táticos. O orçamento dos clubes europeus, se comparado ao orçamento dos clubes brasileiros, permeia a utopia.

Um abismo que foi construído através do investimento e da profissionalização, mérito do futebol europeu, que se reflete diretamente nas seleções nacionais. Como exemplo disso, os melhores atletas brasileiros, atuantes na seleção nacional, jogam por clubes europeus. Uma realidade que não significa ausência de profissionalismo ou potencial dos clubes brasileiros, contudo, evidencia a falta de projeto, credibilidade, estratégia, profissionalização e investimento a longo prazo.

Mas o que o futebol europeu, em essência, tem a nos ensinar? PACIÊNCIA!

Alemanha, campeã do mundo em 2014; França, campeã do mundo em 2018; O que essas seleções têm em comum? Projetos bem pensados e a longo prazo. Queriam vencer, mas sabiam que a caminhada era longa e o entrosamento depende do tempo13.

Manchester City e Pepe Guardiola; Atlético de Madrid e Diego Simeone; O que diferenciam esses dois técnicos? Aproximadamente 50 milhões de reais14. O que esses dois técnicos têm a ensinar ao Futebol Brasileiro? PACIÊNCIA!

Pepe Guardiola recebe aproximadamente R$150 milhões por temporada. O técnico foi contratado para vencer tudo com o Manchester City. Contratado para temporada 2016-17, Pepe modificou a filosofia do clube, todavia não ganhou qualquer título pelo clube à época. Em seguida, em 2017-18 atuou naquela que pode ser considerada uma das melhores temporadas do Manchester City nos pontos conquistados. Venceu a Copa da Liga Inglesa, todavia perdeu a Copa da Inglaterra e foi eliminado da UEFA Champions League nas quartas-de-final.15

O Manchester City já havia faturado duas Premier Leagues até a chegada de Guardiola. O grande objetivo do clube seria alcançar a UEFA Champions League com o treinador, objetivo quase alcançado em 2021. E o “quase” no futebol europeu significa muita coisa. O “quase” significa consistência, tentativa, riscos e projetos pensado à longo prazo.

Pepe é um dos maiores treinadores da história e cometeu erros também com o City. Hoje, após 5 (cinco) anos de sua estreia, o Manchester City segue como um clube vitorioso, todavia ainda possui muitas metas que não foram alcançadas para a dimensão do investimento feito.

Para Guardiola resta a segurança de poder arriscar e fazer o seu trabalho. Assim como Diego Simeone que chegou ao Atlético de Madrid em 2011, disputou duas finais da UEFA Champions League e perdeu as duas. Venceu duas vezes a La Liga e uma vez a Copa do Rei em 10 anos de comando da equipe, sendo o treinador mais bem pago da Espanha. Mesmo enfrentando temporadas difíceis e deficitárias, Diego Simeone não foi dispensado das suas atividades.

Traçando um paralelo, temos a final da Libertadores de 2021. O Palmeiras enfrentou o Flamengo. O técnico do Flamengo, à época Renato Gaucho, chegou naquela final com 72,8% de aproveitamento com a equipe, um vice-campeonato do Brasileirão, que ainda não havia se confirmado, e, naquele dia se tornou vice-campeão da Libertadores. Renato atuou pelo Flamengo por 4 (quatro) meses16.

Taxado de “Lixo”, tido como um “erro”, considerado o pior técnico do clube de todos os tempos, Renato saiu do Flamengo 2 (dois) dias após a final da Libertadores, após trabalhar um campeonato inteiro com seu time titular desfalcado.

Do outro lado, tivemos Abel Ferreira como técnico do Palmeiras. Com um projeto a longo prazo e mais tempo para criar, a mensagem do treinador após conquistar duas libertadores no mesmo ano foi: “ Foi o Palmeiras que me abriu as portas para ganhar títulos. Cheguei aqui com títulos e já levando paulada. Existe muita margem para melhorarmos no Brasil.”17

E aqui vemos novamente o instituto do “imediatismo”.

Nossos melhores atletas não fomentam o produto interno do futebol, nossos melhores treinadores não aguentam a pressão da falta de projetos e calendários exaustivos. O melhor do nosso futebol foge cada dia mais do nosso domínio. Por quê?

O Futebol Europeu e os projetos dos seus clubes ensinam, principalmente, que o futebol não responde de forma imediata. É preciso ter paciência e comemorar as conquistas no caminho, aprender com os erros e fomentar a vitória futura. O Brasil não abre as portas para projetos, porque torcedor quer resultado e se ele não for imediato, ele é dispensável. Não há caminho percorrido, não há erros cometidos, não há risco na tentativa.

O futebol brasileiro é símbolo de uma constante montanha-russa em que o mesmo clube campeão da Libertadores pode ser o novo rebaixado para série B em questão de pouco tempo. O futebol brasileiro não permite que um técnico tenha tempo o suficiente para conhecer seu time. O futebol brasileiro é insano, imediatista e, porque não dizer, utópico.

O futebol brasileiro acompanhou as mudanças, buscou a sua profissionalização, todavia, seria uma tarefa praticamente impossível acreditar que, para ter uma garantia de sucesso, basta seguir o modelo europeu e aplicá-lo internamente. O precipício de inovação, do câmbio, do acesso e planejamento é bem maior do que um simples planejamento estratégico. Mas acima de tudo, o torcedor europeu tem o seu papel de ouro: ele acredita no projeto a longo prazo.

Nunca faltou vontade, força de trabalho qualificada ou estudos suficientes para tornar o futebol brasileiro um produto mais rentável que o europeu ou em parâmetros similares. Contudo, nos falta paciência para esperar o trabalho prover os resultados.

A imprevisibilidade de um jogo de futebol ainda é um risco ao resultado desportivo que precisa ser avaliado com mais carinho. O formato de relação de trabalho entre clubes e técnicos precisa ser avaliado com mais cuidados. Humanos são falhos, pessoas precisam de tempo para adaptar uma nova realidade, errar faz parte do processo. Consistência leva ao resultado, se tivermos paciência para esperar a construção ser elevada.

Ninguém domina o campo de jogo sem tempo o suficiente para conhecer quem são as suas peças. E essa lição cabe para os líderes em campo, os treinadores, assim como para os líderes que fazem o espetáculo acontecer, os gestores de futebol.

Clarividente é a melhora do cenário com a profissionalização dos gestores de futebol, assim como é de clareza solar os sacrifícios que muitos precisam fazer para conseguir desenvolver o mínimo. O desgaste é tamanho e, para além dos desafios de uma gestão, tende a enfrentar o tribunal virtual de torcedores que não fazem ideia do que é gerir um clube de futebol e quem são os seus verdadeiros “heróis”.

Sem eles, nada acontece. Sem eles, o futebol brasileiro não evolui. Sem eles, nenhum projeto terá o verdadeiro sucesso. Ninguém será sempre campeão, mesmo com todo dinheiro do mundo. Projeto depende de mais fatores, além do dinheiro. Projeto depende do tempo, da resiliência e da consistência. Se não compreenderem que o Futebol Brasileiro precisa de planejamento e estratégia, será sempre um ciclo vicioso de imediatismo, espelho dos mercados que deram certo e, na prática, a desilusão de esperar milagres e a crença em heróis traiçoeiros.

Um negócio sem projeto é uma realidade fadada ao fracasso. Até para empreender, é preciso paciência. E paciência, nesse caso, deve ser sinônimo de projetos, tempo e trabalho, palavras que nunca faltaram no vocabulário do futebol brasileiro.

Falta paciência e carinho com o futebol brasileiro, com o seu formato e com as pessoas que o fazem acontecer.

Ao futebol brasileiro, em especial, aos operadores de dentro e fora de campo, com carinho, mais planejamento e menos imediatismo, por favor.

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Referências:

1 DUARTE, Orlando. História dos esportes. São Paulo: Senac, 2016.

2 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Em 1895 foi disputada a primeira partida de futebol oficial no Brasil. 2008. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/radio/programas/431278-em-1895-foi-disputada-a- primeira-partida-de-futebol-oficial-no-brasil/>. Acesso em: 14 out 2021.

3 BELLOS, Alex. Futebol: o Brasil em Campo. Tradução de Jorge Viveiros de Castro. 2ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

4 GRUPO RAÇA. Na Cadência do Samba (Que bonito é). Canal 100: 1956. 02:42 min.

5 GLANVILLE, Brian. A História Da Copa Do Mundo. Londres: Faber and Faber Limited, 2014.

6 BELLOS, Alex. Futebol: o Brasil em Campo. Tradução de Jorge Viveiros de Castro. 2ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

7      CBF.       #TBTdaAmarelinha       Zico,       o      Galinho       de      Quintino.       2020.      Disponível      em:

<https://www.cbf.com.br/selecao-brasileira/noticias/index/tbtdaamarelinha-zico-o-galinho-de- quintino>. Acesso em: 14 out 2021.

8 GLANVILLE, Brian. A História Da Copa Do Mundo. Londres: Faber and Faber Limited, 2014.

9 LEONCINI, Marvio Pereira; SILVA, Márcia Terra. Entendendo O Futebol Como Um Negócio: Um Estudo Exploratório. 04 set 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/gp/v12n1/a03v12n1.pdf>. Acesso em: 12 out 2018.

10 CAETANO VELOSO. Reconvexo. Universal Music Ltda.: 1989.

11 GHISLENI, Taís Steffenello; ROSA, Juliana Rodrigues. A Transformação De Um Jogador De Futebol Pela Mídia.  2008.                                                           Disponível                                      em:

<http://erevista.unioeste.br/index.php/cadernoedfisica/article/view/1650/1721>. Acesso em: 14 out 2018.

12          FIFA.           Global           Transfer           Market           report.           2020.           Disponível           em:

<https://digitalhub.fifa.com/m/482e6b2d76404434/original/ijiz9rtpkfnbhxwbqr70-pdf.pdf>. Acesso em: 03 Jan 2022.

13 ESPN. De fiascos na Europa à consagração, saiba como Alemanha ‘copiou’ Barcelona e quer o mundo. 2014. Disponível em: <http://www.espn.com.br/noticia/425100_de-fiascos-na-europa-a-consagracao- saiba-como-alemanha-copiou-barcelona-e-quer-o-mundo>. Acesso em: 03 dez 2021.

14 GOAL. Klopp, Guardiola e os técnicos mais bem pagos do mundo. 2020. Disponível em: https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/klopp-guardiola-e-os-tecnicos-mais-bem-pagos-do- mundo/1fmntajfypdgi12oz5d5xynn3k>. Acesso em: 03 dez 2021.

15 ESPN. Manchester City: Veja quanto é o ‘custo Guardiola’ para cada conquista. 2019. Disponível em:

<https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/5524387/manchester-city-veja-quanto-e-o-custo- guardiola-para-cada-conquista>. Acesso em: 03 dez 2021.

16 AGÊNCIA BRASIL. Renato Gaúcho não é mais o técnico do Flamengo; saiba quem comanda o clube no jogo contra o Ceará. 2021. Disponível em: <https://gcmais.com.br/esporte/futebol/2021/11/29/renato- gaucho-nao-e-mais-o-tecnico-do-flamengo-saiba-quem-comanda-o-clube-no-jogo-contra-o-ceara/>.

Acesso em: 03 dez 2021.

17 BET 365. Após segundo título da Libertadores, Abel Ferreira deixa futuro aberto no Palmeiras. 2021. Disponível em: < https://nossopalestra.com.br/palmeiras/noticias/apos-segundo-titulo-da-libertadores- abel-ferreira-deixa-futuro-aberto-no-palmeiras/>. Acesso em: 03 dez 2021.

 

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