O esporte sempre foi – e continua sendo – usado como um instrumento político. Popular que é, governos se aproveitam do potencial que ele tem para faturar politicamente, ou melhorar uma imagem abalada. O Qatar tem sido um exemplo. O país da Copa de 2022 é constantemente apontado por entidades internacionais por desrespeitar princípios de direitos humanos. Alguns atletas sentiram esse problema da maneira mais difícil.
Zahir Belounis se viu preso no Qatar. O jogador de futebol franco-argelino tornou-se uma vítima do chamado “sistema kafala” do país. A Federação Internacional de Atletas Profissionais (FIFPRO) liderou uma campanha internacional para libertar o jogador e sua família e garantir seus direitos humanos.
O caso
Belounis ingressou no Al-Jaish do Qatar em 2007 e, mais tarde, estendeu seu contrato até junho de 2015. No entanto, no verão de 2011, o atacante foi emprestado a outro clube, já que o Al-Jaish contratou mais jogadores estrangeiros do que podia.
Em novembro de 2011, o clube parou de pagar seu salário e na temporada seguinte Al-Jaish nem mesmo o emprestou. Ele tinha mais 4 anos de contrato.
Belounis contratou ajuda jurídica para cumprir seu contrato. O clube então o colocou sob grande pressão para encerrar o negócio e assinar um documento confirmando que Al-Jaish não lhe devia nada. O clube disse que ele não poderia deixar o Qatar a menos que assinasse o documento. Belounis recusou: sua assinatura invalidaria qualquer reivindicação de obter a remuneração que lhe era devida.
O que é o regime “kafala”
Os trabalhadores de outros países que chegavam ao Qatar eram submetidos a um sistema trabalhista histórico por lá chamado Kafala. Nele são estabelecidas relações entre cada trabalhador e seu “patrocinador”, normalmente o empregador.
De acordo com esse sistema, o empregado virava refém do empregador. Ele ficava sujeito à autorização do patrão para realizar diversas atividades, como alugar imóvel, sair do país, trocar de emprego. Além disso, o trabalhador tinha o passaporte retido por esse “patrocinador”, que se negava a fornecer vistos para saída do país. Se insistisse, o próprio empregador poderia pedir a prisão do empregado.
Simples, escravidão. Com princípios de direitos humanos esquecidos e a própria Constituição local desprezada, já que ela também fala em respeito a direitos humanos.
Belounis ficou preso no sistema de kafala do país do Golfo, já que não conseguia a autorização do seu empregador para deixar o Qatar, mesmo após o término do contrato de trabalho.
Isso levou a uma grande injustiça quando um jogador está em disputa com seu clube e deseja deixar o país. O clube pode, como condição de concessão da licença, exigir que o jogador renuncie a quaisquer reclamações contra o clube.
Como consequência, Belounis, com sua esposa e duas filhas, teve que morar no Qatar sem nenhuma renda. A situação deixou o jogador desesperado, a ponto de fazer uma greve de fome.
Liberdade!
Após uma campanha envolvendo a FIFPRO e outras entidades de proteção de Direitos Humanos, Belounis recebeu seu visto de saída do Catar em novembro de 2013.
Após 19 meses, ele obteve um visto de saída e deixou o Qatar para retornar à França. Belounis admitiu que durante esse tempo de espera ele planejou deixar o país ilegalmente, considerou suicídio e se criou dependência com o álcool.
De volta à França, ele deu uma emocionante coletiva de imprensa nos escritórios do sindicato dos jogadores franceses, UNFP, em Paris. Para o jogador, a participação da Federação Internacional dos Atletas foi decisiva:
“Foi depois da mensagem da FIFPRO pedindo minha libertação que as coisas realmente começaram a andar.”
Um acordo financeiro foi posteriormente acordado entre o jogador e El Jaish.
Uma decisão que protegeu muito mais gente
Belounis não foi o único jogador preso em função do sistema da kafala. A FIFPRO recebeu muito mais reclamações de jogadores e muitas vezes levantou a questão.
A pressão do movimento esportivo, aliada a pressão de coletivos globais de direitos humanos e da movimentação de tribunais internacionais acabou sendo decisivo para uma mudança importante.
No final de 2016, o Qatar apresentou alterações legislativas que substituíram o sistema Kafala, garantindo melhores condições de trabalho aos imigrantes. E as mudanças não pararam por aí.
Depois do caso, a entidade-mor do futebol mundial também incluiu em seu Estatuto, no art. 3, a previsão de que a “FIFA está comprometida com o respeito aos direitos humanos internacionalmente reconhecidos e deverá empreender esforços para promover a proteção desses direitos”. E foi além, encomendou ao professor John Ruggie a elaboração de um relatório com recomendações para implementação de uma política de direitos humanos, implementada em 2017.
Os problemas com trabalhadores no Qatar persistem, apesar das mudanças nas regras trabalhistas. Desde que o país foi escolhido sede do Mundial, um grande número de operários morreu trabalhando para levantar o maior evento esportivo do planeta.
Segundo o jornal The Guardian, mais de 6.500 trabalhadores migrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram no Qatar desde que ele o país ganhou o direito de sediar a Copa do Mundo em 2011.
A vida não se separa da proteção de direitos humanos. Nem o esporte.
Crédito imagem: The Guardian
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