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As comportas do Direito

Por Pitágoras Dytz

O Direito, especialmente o de tradição romano-germânica, tem muitas fontes – doutrina, princípios gerais, costumes, jurisprudência, lei. E, não desconhecendo a máxima de que toda regra comporta exceções, o que nos permite dizer que um bom lobby – e aqui não há nada de menoscabo nesse tipo de atuação política – pode transmutar em direitos o que não passava de interesse segmentado e, com a devida chancela, Direito, talvez nenhuma outra seja capaz de conter os arroubos dos indivíduos ou grupos de interesses quanto a lei.

Então que, no esteio da catástrofe que assola o Rio Grande do Sul, de efeitos profundos e ainda de todo incalculáveis, em mais um rompante, Renato Portaluppi, ou Renato Gaúcho, propôs que os campeonatos de futebol das séries A e B deste ano não resultassem no rebaixamento dos quatro últimos colocados da Série A permaneçam na elite, à qual se integrariam, no ano de 2025, os quatro mais bem colocados no certame da Série B de 2024[1].

Não se discutem as razões que motivaram a proposta feita pelo treinador da equipe gaúcha, que se entende razoável do ponto de vista moral e, em certa medida, até sob a óptica dos princípios gerais de Direito, e com muito mais lastro no campo da Política do que propriamente do jurídico. E não se pode dizer que foi incabível, afinal, se a proposta de suspensão do campeonato brasileiro – que também defendi, Parem o Brasileirão – ganhou corpo entre grande parte dos clubes de futebol, por que não iniciar um movimento com o objetivo que meu conterrâneo tornou público? Faz parte do engajamento que figuras públicas como ele têm legitimidade para buscar e são capazes de gerar. Como se diz no Rio Grande, ‘a tenteada é livre’.

No entanto, o Direito – a lei especificamente – está aí não propriamente para impedir arroubos como esses que, em geral nascidos no calor ou no rescaldo das tragédias, por mais bem intencionados que sejam, mirando um benefício poderiam causar estragos maiores caso lhes fosse dada livre vazão. O Direito serve então de comporta para conter seu ímpeto, agindo onde os diques falharam na repulsa das vagas que a subida dos rios criou.

E foi visando evitar viradas de mesa, ou tapetões, especialmente na Justiça Esportiva, as quais permitiam que clubes que não tinham conseguido o resultado dentro de campo tivessem o direito de permanecer na primeira divisão do campeonato por meio de artimanhas jurídicas, que nasceu a restrição legal às mudanças de regulamento e à desconsideração dos resultados de campo. Quem não lembra da alteração de regulamento de 1992, quando, ao invés de dois, a CBF permitiu que os dozes mais bem colocados da 2ª divisão subissem para a elite do futebol brasileiro, ou de 1996, quando a virada de mesa beneficiou o Fluminense, no qual Renato Portaluppi jogou, ou mesmo de como se chegou à Copa João Havelange, em 2000, seus pródromos e efeitos? Foi para tentar colocar fim a esse estado de coisas que a Lei Pelé previu, no seu então art. 89 – que ganhou um parágrafo único depois da edição da MP nº 671, de 19 de março de 2015, a obrigatoriedade de que, nas hipóteses de haver mais de uma divisão, nos regulamentos das competições que organizassem, as entidades de administração dessem concretude ao chamado princípio do acesso e do descenso, devendo-se observar sempre o critério técnico.

Em 15 de maio de 2003, esse dever atribuído às entidades ganhou nova faceta, transformando-se em um direito expresso do torcedor. Foi nessa data que entrou em vigor a Lei nº 10.671, o chamado Estatuto do Torcedor, que previa ser um direito do torcedor que a participação das entidades de prática desportiva em competições organizadas pelas entidades de administração da modalidade se desse exclusivamente em virtude de critério técnico previamente definido, valendo destacar que essa lei estabelecia que o regulamento da competição, no qual o critério técnico deveria estar definido, fosse publicado sessenta dias antes do início da disputa (art. 9º, caput, c/c art. 5º, § 1º, I), tornando-se definitivo até 45 dias antes daquela data, marco a partir do qual, salvo exceções, estava vedada qualquer alteração.

Regra semelhante foi inserida na Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023, art. 193, já não mais como direito do torcedor, mas como uma garantia de direitos das entidades esportivas que participam dos campeonatos. Em certa medida, um relevante passo atrás em termos de proteção legal, especialmente no que tange ao torcedor na condição de consumidor, o que pode desafiar uma alegação de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, uma vez que o direito dos consumidores é valor protegido constitucionalmente.

Cabe acrescentar, entretanto, que além de não constar mais entre o rol de direitos do torcedor-consumidor, o propalado art. 193 traz outras mudanças em relação à regra prevista no art. 89 da Lei Pelé quais sejam a de que, diferentemente do que ocorria no diploma anterior, agora a regra vale para todas as competições e não somente para as realizadas regularmente e que tenham mais de uma divisão, e a vedação ao convite (ex vi do § 2º do art. 193).

Aparentemente em respeito à autonomia que lhes é conferida, o legislador não estabeleceu qual seria esse critério, estipulando apenas que, uma vez estabelecido no regulamento, a decisão fosse respeitada. Contudo, a fixação desses limites retira das entidades o direito de agirem plenamente, e mesmo sob a alegação de que gozam de autonomia para organizarem a si e às suas competições, não é afastada nem mitigada. Logo, qualquer alteração no regime de classificação que redundasse numa mudança do resultado de acesso e descenso entre as divisões do campeonato nacional de futebol seria ilegal, ainda que precedida de uma modificação no regulamento de competições, resultado da decisão dos clubes envolvidos e, como tal, poderia ensejar uma nova atuação do Poder Judiciário, tal como a que ocorreu a pedido do Gama e que resultou no impedimento fático da CBF organizar o campeonato de 2000, levando o extinto Clube dos 13 a fazê-lo, dando nascimento à famigerada Copa João Havelange, com seus módulos coloridos e regras incompreensíveis, mas que, uma vez reconhecida pela confederação de futebol, legitimou a participação de clubes não apenas no campeonato nacional do ano seguinte, cuja organização voltou às suas mãos, mas também a validação de sua participação em torneios continentais.

Mas ainda que a proposta do treinador tricolor não tenha ganho tração e angariado apoio relevante, a questão relacionada à possibilidade de se ter o descenso de um clube por outro critério que não seja o resultado obtido dentro de campo – um critério estritamente técnico – ainda paira no ar, uma vez que o art. 135, XI, do Regulamento Geral de Competições da CBF/ 2024 (RGC/2024[2]) o previu como uma das sanções por infringência ao próprio regulamento. E com o agravante de que, segundo o § 4º do mesmo artigo, por ter caráter administrativo, e em conformidade com o sistema associativo do futebol e os termos do Estatuto da CBF, tal penalidade poderá ser aplicada pela entidade independentemente das sanções que venham a ser cominadas pela Justiça Desportiva com base no CBJD.

Por mais dedicado que seja o esforço e ainda que haja um filólogo que diga que Nebrask quer dizer Caneca e não Nebraska e dê a vitória àquele e não a este[3], não há qualquer espaço para que se conceba que, diante da previsão legal contida no art. 89 da Lei Pelé, repetida, com alterações, no art. 193 da Lei nº 14.597, de 2023, seja permitido à entidade organizadora da competição estabelecer o descenso como punição por infração administrativa, uma vez que isso contraria o critério técnico estabelecido pelo próprio regulamento. Nem mesmo a submissão da questão aos órgãos da Justiça Esportiva resolveria a falha, uma vez que, por imposição legal, leia-se: art. 49 e seguintes da Lei Pelé, tal previsão não se insere no rol de competências ou possibilidades, notadamente em se tratando de imposição de sanções disciplinares – ainda que administrativas, as quais, em virtude dos princípios da estrita legalidade e tipicidade, estão taxativamente arroladas no art. 50 dessa lei – ainda em vigor –, rol que não comtempla a previsão de descenso como forma de punição por infrações relacionadas às competições esportivas. Sequer o recurso às hipóteses do art. 47 e 48 daquela lei solucionaria a questão a favor da entidade organizadora. Por certo que o descenso de uma entidade por infração a uma regra regulamentar importará no acesso de uma entidade que não atendeu o critério técnico previamente estabelecido, relacionado ao resultado de campo, o que reforça a ilegalidade da previsão regulamentar.

Por outro lado, ao atribuir natureza administrativa à previsão sancionatória com vistas a conferir-lhe um verniz de legalidade, a CBF retira eventuais demandas relacionadas ao tema do rol daquelas ‘protegidas’ pelo diferimento à ação do Poder Judiciário (§§ 1º e 2º do art. 217 da Constituição Federal de 1988), sendo incabíveis quaisquer punições administrativas caso a entidade prejudicada recorra às barras judiciais, tal como ocorre com os arts. 137 a 141 do indigitado regulamento geral de competições[4], disposições que se reputa contrárias à Constituição Federal e que nem na melhor das hipóteses ou da disposição de juristas à Rabelais, seria possível ver de forma distinta.

Não é demais lembrar que previsões como essas reavivam a possibilidade de uma nova virada de mesa, tal como as vistas no passado, especialmente se considerarmos que, tal como noticiado recentemente, a CBF alterou o regulamento para incluir como hipótese de sua infração atos de violência praticados por torcedores da equipe (art. 79), criando, por ato privado, uma hipótese de responsabilidade integral, o que, associada à previsão do inciso XI do art. 135 do RGC/2024, é um prato cheio para o tapetão, uma comporta aberta para [mais um] abuso de direitos em prol não da melhor prática esportiva ou do Esporte, mas unicamente do monopólio autocrático incapaz de autocrítica, cabendo às comportas do Direito transformarem-se em barreiras contra o rebaixamento de direitos e garantias de atletas, clubes, torcedores, e de árduas conquistas históricas, antes que se vão por água abaixo, arrastados pelo caudal de arroubos e pretensas boas intenções.

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Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte

@pitagoras_dytz

[1] Disponível em: https://ge.globo.com/rs/futebol/times/gremio/noticia/2024/05/20/renato-gaucho-propoe-brasileirao-sem-rebaixamento-em-meio-a-tragedia-no-rs-sobem-os-quatro-e-nao-cai-ninguem.ghtml.

[2] Disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202404/20240412205335_972.pdf.

[3] ASSIS, Machado de. A Sereníssima República. Disponível em www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000239.pdf.

[4] Disponível em: https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202404/20240412205335_972.pdf.

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