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As duas mães do Brasileirão

O “Julgamento de Salomão” é uma história descrita na Bíblia (I Reis 3:16-28), onde o rei Salomão de Israel resolve o conflito entre duas mulheres que afirmavam ser a mãe de um menino. Diante do impasse, o rei pede uma espada e diz que vai dividir o bebê no meio, dando metade a cada pretendente.

Os direitos de transmissão de vários jogos do campeonato brasileiro deste ano correm o risco de terem o mesmo desfecho da decisão apregoada por Salomão. Com alguns clubes sob contrato com a Turner e outros com a Globo, há sérias dúvidas sobre qual das “mães” teria o direito de transmitir os jogos do torneio. Essa disputa pode, inclusive, chegar ao cúmulo de que se decrete a “morte” do televisionamento de algumas partidas, por conta da divisão na titularidade de direitos entre os dois grupos jornalísticos.

Como é por todos sabido, a Medida Provisória n°984 atribuiu ao clube mandante o direito exclusivo de negociar a transmissão dos jogos, alterando a Lei nº 9.615, que dizia que o direito pertencia conjuntamente a ambas as equipes.

Em que pese já tenhamos nos manifestado quanto à inconstitucionalidade dessa M.P. em nosso artigo Personal Legislator Tabajara, o fato é que esse Diploma encontra-se em vigor e precisa ser respeitado, até que sobrevenha eventual decisão judicial em sentido contrário ou acabe caducando, por expiração de seu prazo de validade.

Já na primeira rodada do campeonato tem-se um caso bem semelhante àquele enfrentado por Salomão. Palmeiras, que é o mandante e tem contrato com a Turner, enfrenta o Vasco, que possui acordo com a Globo.

Na época em que Turner e Globo celebraram seus contratos com Palmeiras e Vasco, vigorava a legislação anterior, que exigia acordo de ambas as equipes com a mesma emissora para que a partida pudesse ser transmitida.

E agora, será que a MP tem o condão de alterar essa situação? Poderia a Medida Provisória dar à Turner o direito de exibir o espetáculo? A Bíblia do direito, que é a Constituição, diz no art. 5º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. É com base nesse dogma sagrado que a Globo se baseia contra a Turner, dizendo que a M.P. não poderia violar o ato jurídico perfeito, nomeadamente os contratos que ela fez com várias agremiações participantes do campeonato brasileiro.

Ocorre que esses contratos continuam tendo a mesma eficácia que detinham antes da edição da Medida Provisória. Para entender melhor a questão, importa saber que efeitos esses contratos efetivamente geraram para a emissora carioca.

Tomemos então o caso do jogo Palmeiras X Vasco. Quando a Globo celebrou o contrato com o Vasco, ela já não detinha a prerrogativa de transmitir essa partida sobre a égide da legislação anterior. Portanto, a M.P. não suprimiu nem subtraiu direitos do contrato em questão.

Muito pelo contrário! A partir de agora, a Globo poderá transmitir jogos do Palmeiras quando ele for visitante, desde que faça um acordo com o clube mandante da partida.

Nesse sentido, é importante fazer-se uma distinção. Uma coisa é o ato jurídico perfeito. Outra coisa é o direito à transmissão de uma partida. A celebração do contrato com apenas um clube não gerava o direito à exibição do espetáculo.

A emissora só teria no máximo uma expectativa de direito, que significa uma mera esperança do titular em adquirir um direito futuramente, direito este que se incorporaria ao seu patrimônio apenas e tão somente quando o outro clube disputante da partida anuísse com a transmissão.

Como é por todos sabido, as expectativas de direito não estão imunes à incidência da lei nova, que passa a surtir efeitos imediatamente, incidindo sobre situações jurídicas que não tenham sido completamente constituídas sob o manto da norma anterior.

Entender até onde as partes podem chegar com suas pretensões ajuda a compreender o problema. Salomão, por exemplo, com toda a sua sabedoria, fez isso como ninguém. Para descobrir qual das mulheres era a mãe do bebê, propôs assassiná-lo apenas para ver quem se desesperaria com essa hipótese, o que de pronto aconteceu.

É bom saber também até onde a Globo pode chegar com sua demanda. Se já não podia e continuará não podendo transmitir a partida, sua pretensão se circunscreverá a fazer com que a Turner também não possa exibir o jogo. Tal proceder se assemelha à mulher que não contestou a decisão de Salomão, declarando que, ou ela teria o menino ou ninguém mais faria jus a tê-lo consigo.

O direito de uma pessoa só merece tutela do ordenamento jurídico se for exercido com o fim de lhe trazer alguma serventia, não podendo unicamente se prestar para prejudicar os interesses de outrem, já que isto configura abuso de direito, na forma do art. 187 do Código Civil.

Por outro lado, entre a interpretação que prive de todo efeito os negócios jurídicos e outra que lhes dê efetividade, há que se prestigiar a segunda, haja vista a necessidade de que as riquezas circulem, para que a sociedade possa funcionar e progredir.

O julgamento de Salomão nos trouxe a lição: é preferível que uma das mulheres fique com a criança, do que permitir que um bebê inocente pague pelo litígio. Da mesma forma, é melhor que ou a Turner ou a Globo exiba as partidas, do que o público fique a ver navios.

Caso contrário, quem sofrerá o golpe da espada será precisamente a parte mais frágil de todo este processo: o pobre e combalido futebol brasileiro.

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