Horário nobre: o que Chelsea, Tottenham e as fábricas têm a ver com o sábado de futebol inglês?
Na última semana, já conversávamos que a popularização e a difusão do esporte – no Brasil e no mundo – tornou inevitável o avanço do profissionalismo. Para um sem-número de praticantes, a transição da recreação para o alto rendimento fez com que a atividade se tornasse, verdadeiramente, um trabalho.
O “pensando o esporte” vai abordar alguns dos caminhos trilhados ao longo dessa profissionalização. Como ela aconteceu? Quem são os seus sujeitos?
No caso do futebol, uma das várias (e plurais) histórias que nos contam o início desse processo remete à Inglaterra do século XIX, onde, no auge da Revolução Industrial, antigas fábricas reuniam dezenas, se não centenas, de pessoas em um mesmo espaço. Nesse cotidiano, muito embora o dia a dia de homens e mulheres se resumisse à permanência nas linhas de produção por doze, quatorze, dezesseis horas, a conquista de pequenos períodos de “tempo livre” por meio de normas de proteção ao trabalho permitiu o acesso desses trabalhadores à prática esportiva¹.
O futebol, até então restrito à elite política e econômica da época, passaria a ser praticado nas ruas, ou até mesmo nos pátios fabris. Daí que não seja de se espantar que grandes clubes do futebol inglês como o Chelsea e o Tottenham Hotspur tenham se desenvolvido em regiões de alta industrialização².
Em lugares em que as fábricas utilizavam processos de fabricação mais complexos e, portanto, necessitavam de maior capacitação de trabalhadores, a alfabetização repercutiu no aumento do número de torcedores das equipes ali estabelecidas, já que essas pessoas se tornavam consumidores do produto esportivo veiculado por jornais e revistas. Além disso, aumentos salariais permitiam que muitos desses, até então à margem dos estádios, pudessem finalmente comprar ingressos para assistir às partidas de suas equipes.
Se prestarmos atenção, veremos que a relação entre o cotidiano do trabalho e esporte é tão próxima que as folgas conquistadas pelos ingleses nas tardes de sábados deram origem ao tradicional horário do futebol bretão, sagrado até hoje³.
Não apenas na Inglaterra de Manchester e Liverpool, mas também em toda a Europa e na América Latina, o futebol das fábricas criou laços entre pessoas dentro e fora dos pátios de produção. São exemplos de outros países o Bayer Leverkusen, criado pelos empregados da empresa farmacêutica de mesmo nome, o PSV, dos empregados da Phillips, o Saint-Étienne do grupo Casino, o Sochaux, dos funcionários da montadora Peugeot, ou a Juve, abastecida pelos da Fiat⁴.
Pessoas que, ao conquistarem maiores períodos de descanso, melhores salários e maior capacitação técnica, contribuíram para o surgimento de equipes centenárias e passaram a se reconhecer umas nas outras pelas cores das suas camisas. Nesse contexto, o futebol, mais do que uma afirmação de direitos, se tornava um elemento de identidade. E o Brasil nessa história? Falamos sobre isso na próxima semana.
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¹ AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
² ALVITO, Marcos. The ball is round. Capítulo 3: uma vida bem mais esplêndida – o futebol industrial e a Grã-Bretanha da classe trabalhadora, 1888-1914. Ludopedio Website, 3 fev. 2017. Disponível em: https://goo.gl/vMMRoX
³ ALVITO, Marcos. The ball is round. Capítulo 3: uma vida bem mais esplêndida – o futebol industrial e a Grã-Bretanha da classe trabalhadora, 1888-1914. Ludopedio.
⁴ CAMPOS DE MORAES, Guilherme. Futebol – a religião leiga do trabalhador.