O The Guardian, importante portal jornalístico britânico, publicou uma matéria sobre os Jogos Olímpicos de Inverno, que serão realizados na China neste ano. Jules Baykoff, jornalista que assina a matéria, faz um apontamento importante, que merece nossa reflexão: o esporte nunca é simplesmente esporte.
É claro que este não é um debate novo. O esporte desempenha diferentes papeis, a depender do foco da análise daquele que o observa. Há toda a questão que engloba aspectos de saúde, de desenvolvimento intelectual e outras nuances identificadas numa análise do impacto do esporte no indivíduo.
Há também a questão política que envolve a análise do esporte. A noção da necessidade da criação de regras especificas para o esporte não vem de uma vontade de fomentar a prática do esporte, mas de uma necessidade do Estado de controlar o esporte para fins políticos.
Essa necessidade ressalta-se, não foi observada exclusivamente no Brasil; após a Segunda Guerra Mundial, muitos países perceberam no esporte um importante papel no desenvolvimento das nações. Nas palavras de Álvaro Melo Filho “o desporto é, a par dos conflitos bélicos, o evento que maior visibilidade transmite dos Estados no contexto internacional”. Havia, desde então, grande interesse de demonstrar o poder dos Estados através de sucesso nas competições desportivas.
O esporte tem papel fundamental quando analisado sob o olhar do soft power, o poder exercido pelos Estados para além dos aspectos militares. As fontes de poder estão em constante mutação; a popularização do conceito de soft power demonstra que há, e sempre houve, diversas formas de manifestação de poder que não são necessariamente de cunho militar.
É por isso que é importante analisar os megaeventos esportivos com um olhar que leve em conta os aspectos que ultrapassam questões meramente desportivas. E aqui, voltamos à matéria do The Guardian e às Olimpíadas de Inverno.
A China é acusada de violações a direitos humanos há décadas. As recentes notícias sobre os abusos chineses, tais como abusos de direitos humanos contra uigures e outros muçulmanos turcos na província de Xinjiang (que a Human Rights Watch chama de “crimes contra a humanidade”, o caso de Peng Shuai, o tricampeão olímpico no tênis que acusou um político chinês de alto nível de coerção sexual, não são casos isolados.
Os desrespeitos recorrentes aos direitos humanos fizeram com que Estados Unidos, Austrália, Grã-Bretanha e Canadá realizassem um boicote diplomático às Olimpíadas de Inverno; esses países não enviarão representantes de seus governos à China para o evento.
A gravidade das violações da China aos direitos humanos é um conflito colossal com a Carta Olímpica. A Carta Olímpica define regras para a organização dos Jogos Olímpicos e o impulsionamento do Movimento Olímpico. A própria Carta Olímpica define Movimento Olímpico como conjunto de ações globais (portanto algo concreto) envolvendo entidades e indivíduos no sentido de colaborar para a promoção dos valores do Olimpismo Moderno. Pierre de Coubertin definia Olimpismo como uma filosofia de vida; união do corpo e mente através do esporte, cultura e educação.
Em sua introdução, a Carta Olímpica define seus princípios: “O Olimpismo é uma filosofia de vida que exalta e combina num conjunto harmônico a qualidades do corpo, a vontade e o espírito. Ao associar o esporte com a cultura e a educação, o Olimpismo se propõe a criar um estilo de vida baseado na alegria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e no respeito pelos princípios éticos universais. O objetivo do Olimpismo é colocar sempre o esporte a serviço do desenvolvimento harmônico do homem com o fim de favorecer o estabelecimento de uma sociedade pacífica e comprometida com a manutenção da dignidade humana”.
As Olimpíadas de Pequim são muito mais do que esporte. São o palco da celebração do uso do esporte como manifestação de poder tendo como plano de fundo todos aqueles que já sofreram e sofrem com os abusos aos direitos humanos que comete seu país anfitrião, ao completo arrepio da Carta Olímpica.
Crédito imagem: Reuters
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