Nossa caminhada começa na Alemanha, mais precisamente em Wittenberg, reconstituindo os passos de alguém que, em 31 de outubro de 1517, resolveu colar na Catedral da cidade 95 teses com críticas ao regime de venda de indulgências promovido pela Igreja Católica.
Seu nome era Martinho Lutero. Por sua crítica ao sistema foi processado, condenado por heresia e perseguido até o fim de sua vida. Conhecido pela reforma protestante que liderou, acabou ajudando o próprio catolicismo que resolveu mudar a partir de suas denúncias.
Entretanto, sua maior contribuição para a humanidade talvez tenha sido algo que jamais imaginara: o lançamento da semente para o reconhecimento ao direito fundamental de liberdade de expressão.
Com efeito, os conflitos entre católicos e luteranos forçaram a celebração do Tratado de Ausburg em 1555, que reconheceu a livre expressão da fé em todo o Sacro Império Romano-Germânico, tornando-se o primeiro caso de positivação jurídica da liberdade de manifestação do pensamento.
Lutero consegue o que era buscado mais de um milênio antes pelo santo protetor da França: São Martinho. Reverenciado em mais de 4 mil igrejas daquele país pela ousadia de sua fé, ele pregava suas idéias sem temor, quando as trevas eram ainda bem maiores do que aquelas que pairavam na idade média.
No século XX, outro Martinho, o americano Martin Luther King, marchou pelos E.U.A. contra a segregação racial, usando a liberdade de expressão para criticar a política separatista. Foi perseguido pelo F.B.I., mas sua andança foi fundamental para que os Estados Unidos revissem seu proceder com os negros.
A base moral das posições de todos eles era Jesus Cristo, cuja vida foi marcada por defender publicamente idéias que contradiziam muitos dos costumes de sua época. Embora jamais tivesse ofendido quem quer que fosse, todos nós sabemos o destino que lhe impuseram.
Outro Jesus está em vias de ser crucificado por causa de uma declaração dada ao final de uma partida contra o Athletico Paranaense. O treinador português Jorge Jesus disse que não estava preparado para “jogar contra um árbitro” e que os membros do VAR deveriam ser punidos pelos seus erros. Por isso foi denunciado por infração aos arts. 243-F e 258 do CBJD.
Pouparei o leitor de transcrever os artigos por ser absolutamente irrelevante, já que a liberdade de expressão é um direito fundamental, garantido pela Lei Maior (art. 5º, inciso IV) a toda pessoa de se posicionar na sociedade.
Como foi a própria Constituição que o concedeu, apenas ela pode impor limites a esse direito, sendo vedado a qualquer norma infraconstitucional fazê-lo, sob pena de inconstitucionalidade. O Direito Desportivo naturalmente não foge a isso. Não importa o que diga o CBJD, ou quem quer que seja, já que a regra desportiva há que se adequar ao que diz a Carta Magna.
E a restrição feita pela Constituição ao exercício da liberdade de expressão está limitada ao inciso X, do art. 5º, ao dizer que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Então como saber se um atleta, treinador ou dirigente pode ser punido desportivamente por sua fala? Um bom teste é ver se ele poderá ser apenado noutras esferas jurídicas, como no âmbito cível e criminal, por exemplo. Se nelas a pessoa for passível de punição, poderá também ser punida desportivamente.
É assim que funciona, porque a violação à regra constitucional será a mesma, residindo a diferença apenas na natureza da sanção: de índole penal, civil, desportiva ou outra qualquer, já que todas essas normas infraconstitucionais nada mais fazem do que, em sua esfera de atuação, dar cumprimento ao comando constitucional.
É evidente que a fala de Jesus não é passível de condenação na esfera criminal ou cível. O que ele fez foi criticar o trabalho de um profissional. Porém, casos iguais aos dele entulham os tribunais desportivos, onde alguns esquecem que o direito à liberdade de expressão no esporte nunca poderia ser menor do que aquele outorgado a todas as pessoas nos demais segmentos sociais.
Falar algo que desagrade os ouvidos dos outros não necessariamente será um ato ilícito, pois esta é uma característica dos direitos fundamentais: a de prevalecerem mesmo quando conflitem com o interesse da maioria.
Daí ser importante que não apenas algum Martinho da vida se levante para defender a liberdade de expressão, mas que todos façam o mesmo coro, pois onde houver a violação do direito de manifestação de um, haverá igualmente a violação do direito de manifestação de todos. A propósito, Martin Luther king já dizia: “Nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam”.
Por sua vez, nosso Martinho (o da Vila), nas canções “Onde o Brasil aprendeu a liberdade“, “Liberdade pelo amor de Deus” e “Heróis da liberdade“, mostra como o respeito à liberdade individual no Brasil é algo a ser sempre buscado e reclamado pelo seu povo, onde o silêncio da sociedade é e será sempre a pior saída.
A questão ganha ainda maior relevância quando o que está em jogo é o direito de fazer críticas, pois elas fazem parte da democracia e são a força motriz para o aperfeiçoamento das instituições. Além disso, é sabido por todos que mesmo a crítica ácida ou a ironia, raramente violam direitos individuais.
As pegadas deixadas por Martinho Lutero e Martin Luther King mostram que ambos andaram por caminhos semelhantes. Expressaram sua crítica contra um sistema, foram perseguidos por isso, mas suas posturas foram determinantes para mudar o sistema que tanto criticaram.
É necessário que outras pessoas sigam os seus passos para que a sociedade continue em constante transformação, salvo se quisermos voltar à era de Esparta, quando adotou a tática do laconismo, que era a de impedir o povo de conversar entre si, para que a sua sociedade permanecesse estagnada.
Esporte não é Esparta. O ambiente esportivo precisa deixar-se abrir para a crítica a fim de evoluir, mas infelizmente não parece estar lá muito sensível à divergência.
Veja-se, por exemplo, as singelas críticas de Jesus a um profissional, que levaram a Associação dos Árbitros (!?) a reagir veementemente, apresentando uma notícia de infração ao Tribunal para que ele fosse denunciado. Será que a sua declaração atingiu tão gravemente a categoria da arbitragem como um todo?
O CBJD, por sinal, está cheio de artigos que punem os esportistas pelo simples fato de criticarem aqueles que estão no poder ou no exercício de alguma função de destaque.
Há muita coisa errada que precisa ser mudada.
Muito mais poderia ser dito, mas talvez seja melhor parar por aqui.
Antes que resolvam perseguir outro Martinho também.