Por Alice Maria Salvatore Barbin Laurindo e Beatriz Chevis
O futebol feminino está cada vez mais presente no dia a dia do esporte e do direito, finalmente galgando o seu devido espaço de divulgação. Com efeito, na esteira da inédita repercussão dada à Copa do Mundo de 2019, os campeonatos nacionais passaram a ser cada vez mais assistidos e comentados, havendo inclusive a transmissão das partidas por grandes emissoras de televisão e por plataformas de streaming. No âmbito jurídico, foram realizados diversos eventos e webinars interessantes sobre o tema, em suas mais variadas facetas. No entanto, para aqueles amantes do futebol feminino, ainda falta um espaço para analisar de forma mais constante os reflexos da modalidade sob o olhar do direito desportivo. Diante disso e da necessidade de desmistificar o mercado em questão, este artigo procura apontar algumas das discussões atinentes às transferências de futebol feminino, sem, no entanto, buscar esgotá-las – visto que poderão ser exploradas de forma mais exauriente em futuras oportunidades.
Conforme determinação da Circular n. 1.601 da FIFA, a partir de 2018 a utilização do Transfer Matching System (“TMS”) também passou a ser obrigatória para as transferências internacionais no futebol feminino. Desde então, a entidade máxima de administração do desporto tem divulgado periodicamente relatórios a respeito das transações realizadas, amparando algumas importantes conclusões sobre o tema.
Em linhas gerais, pode-se constatar que o mercado do futebol feminino, ainda que permaneça discreto em comparação ao do futebol masculino, encontra-se em ascensão. Com efeito, nos últimos meses foram noticiadas pela imprensa diversas transferências paradigmáticas no cenário da modalidade. Como exemplo, pode-se citar a contratação pelo Chelsea Football Club de Pernille Harder, atleta multi-campeã e recém nomeada como melhor jogadora da UEFA Champions League (2019-2020) após a sua atuação pelo Verein für Leibesübungen Wolfsburg. A referida transação rendeu ao clube alemão quantia superior a 300 mil euros, tornando-se, pois, o recorde do futebol feminino[i]. Na mesma fila também se inseriram as transações internacionais envolvendo as atletas Lucy Bronze, Alex Morgan, Karina Saevik, entre tantas outras[ii].
Sob essa perspectiva, é curioso notar que, apesar da pandemia de COVID-19 e das suas consequências econômicas para o esporte como um todo, houve, até outubro de 2020, um crescimento de cerca de 36% das transferências internacionais de futebol feminino quando em comparação ao mesmo período em 2019[iii]. Já no que tange à participação do Brasil nesse mercado, a Diretoria de Registro, Transferência e Licenciamento (“DRT”) da Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”) formalizou a ocorrência de 42 transferências internacionais com envolvimento de um clube brasileiro durante o ano de 2020, sendo o número de transações que acarretaram na vinda de jogadoras ao futebol brasileiro maior do que o das que acarretaram em saídas[iv].
Outra característica interessante a ser destacada aparece no fato de que a maior parte das transferências de futebol feminino são feitas de forma gratuita. Com efeito, em 2020 foram relatadas pela FIFA apenas 18 transações onerosas[v]. As razões para essa fenômeno são várias, no entanto importância especial deve ser atribuída à quantidade expressiva de operações envolvendo atletas livres, isso é, de jogadoras que não possuíam contrato vigente com outra agremiação esportiva. A esse respeito, no ano de 2019, 86,3% das transferências internacionais de futebol feminino contaram com atletas sem contrato vigente[vi]. Consequentemente, em razão da ausência de vínculo com o antigo empregador, não existe um transfer fee.
Para além dos impactos econômicos óbvios enfrentados pelos clubes em decorrência da gratuidade das transferências, tal particularidade também enseja reflexos na órbita dos direitos de formação. Diferentemente do que ocorre no mercado do futebol masculino, ainda se observa uma aplicação tímida do mecanismo de solidariedade internacional[vii] no naipe feminino, o que demonstra uma necessidade de maturação da modalidade nesse sentido. Tanto isso é verdade que, em 2019, a FIFA assinalou o repasse de menos de 2 mil dólares para os clubes formadores, centralizados em apenas duas transferências.
Além disso, aponta-se que, em consonância ao artigo 22 do Regulations on the Status and Transfer of Players (“RSTP”), não há no futebol feminino a aplicação de training compensation[viii]. Já na óptica do mercado brasileiro, não existem quaisquer registros publicizados de repasse aos clubes formadores, seja no que se refere ao mecanismo de solidariedade nacional ou à indenização por formação, previstos no art. 29 da Lei n. 9.815/98.
Por fim, em contrapartida ao que seria esperado de um produto em desenvolvimento, os dados disponibilizados pelas entidades administradoras do esporte demonstram que o futebol feminino tem se aproveitado das transferências como forma de se reinventar e de se adaptar ao cenário atual – sobretudo diante do fato de que a crise sanitária atingiu os campeonatos ao redor do mundo de forma diversa.
Nesse contexto, o instrumento da transferência temporária de atletas ganhou notável relevância como forma de viabilizar a participação em temporadas esportivas de locais menos afetados pela pandemia. É dizer, portanto, que a variação das janelas de transferências e dos intervalos de competição tem servido como estímulo para o fluxo de empréstimos, com vistas a compatibilizar o interesse esportivo inerente à participação em campeonatos com o equilíbrio financeiro dos clubes cedentes. Isso sem se olvidar, no entanto, que, nos termos do artigo 10 do RSTP da FIFA e do artigo 35, §5º do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (“RNRTAF”) da CBF, tal transação só é possível para jogadoras profissionais[ix], de modo que a sua aplicação no âmbito do futebol feminino ainda é, de certa forma, limitada.
Com base no exposto, os resultados servem para comprovar que, em que pesem os desafios enfrentados, fato é que os números marcam o caminhar constante da modalidade em prol de um desenvolvimento que respeite as suas especificidades, ou seja, os seus contornos, as suas diferenças e as suas limitações. Afinal, a despeito do baixo número de transações onerosas, ou que resultem em pagamentos de mecanismos de solidariedade, os valores absolutos envolvidos nas transferências do futebol feminino praticamente dobraram entre 2019 e 2020[x] – mesmo diante da atual crise pandêmica. Dessa forma, a mensagem que fica é a de que o mercado de transferências de futebol feminino é atividade peculiar que deve ser entendida à luz de suas características próprias, havendo a possibilidade e, mais do que isso, a necessidade, de análises jurídicas mais profundas de tais particularidades.
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[i] CHRISTENSON, Marcus. Chelsea Women sign Pernille Harder from Wolsfburg for world record fee. 01 de setembro de 2020. Disponível em < https://www.theguardian.com/football/2020/sep/01/chelsea-women-sign-denmark-striker-pernille-harder-from-wolfsburg >.
[ii] CHRISTENSON, Marcus. Women’s transfer window summer 2020 – all deals from Europe’s top five leagues. 22 de julho de 2020. Disponível em < https://www.theguardian.com/football/ng-interactive/2020/jul/22/womens-transfer-window-2020-wsl-frauen-bundesliga-femminile-serie-a-d1-feminine-primera-iberdrola >.
[iii] FIFA. International transfer market snapshot. June – October 2020. International transfer market snapshot. June – October 2020. 05 de outubro de 2020. Disponível em < https://resources.fifa.com/image/upload/international-transfer-market-snapshot-june-october-2020.pdf?cloudid=pubedm6pulq6eodl7kpg >.
[iv] CBF. Raio-X do Mercado 2020: transferências já movimentaram R$ 1,5 bilhão. 01 de outubro de 2020. Disponível em < https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/index/raio-x-do-mercado-2020-transferencias-ja-movimentaram-r-1-5-bilhao#:~:text=Do%20in%C3%ADcio%20de%202020%20at%C3%A9,Transfer%C3%AAncia%20e%20Licenciamento%20da%20CBF> .
[v] FIFA. International transfer market snapshot. June – October 2020. International transfer market snapshot. June – October 2020. 05 de outubro de 2020. Disponível em < https://resources.fifa.com/image/upload/international-transfer-market-snapshot-june-october-2020.pdf?cloudid=pubedm6pulq6eodl7kpg >.
[vi] FIFA. GLOBAL TRANSFER MARKET REPORT 2019 – WOMEN PROFESSIONAL FOOTBALL. 22 de janeiro de 2020. Disponível em < https://resources.fifa.com/image/upload/global-transfer-market-report-2019-women.pdf?cloudid=dm3mxtl95tjrufvuohwn >.
[vii] Trata-se de instituto previsto, no âmbito internacional, no artigo 21 do RSTP e que estabelece a destinação de cinco por cento do valor envolvendo transferências internacionais onerosas às entidades de prática desportiva responsáveis pela formação da atleta.
[viii] Trata-se de compensação devida ao clube formador nos termos do artigo 20 do RSTP e em razão da assinatura do primeiro contrato profissional de atleta ou de transferência internacional que ocorra até seu aniversário de vinte e três anos.
[ix] Interessante ressaltar, neste ponto, que o conceito de atleta profissional diverge a depender do ordenamento jurídico em análise, havendo, inclusive, dissonância entre os requisitos do ordenamento brasileiro e os dos regulamentos da FIFA.
[x] FIFA. International transfer market snapshot. June – October 2020. International transfer market snapshot. June – October 2020. 05 de outubro de 2020. Disponível em < https://resources.fifa.com/image/upload/international-transfer-market-snapshot-june-october-2020.pdf?cloudid=pubedm6pulq6eodl7kpg >.
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Alice Maria Salvatore Barbin Laurindo é estudante na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Atua em direito desportivo no escritório Tannuri Ribeiro Advogados. É coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro da IB|A Académie du Sport.
Beatriz Chevis é advogada associada do CSMV Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e conselheira do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da USP. Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Universitária Paulista de Esportes.