Por Pedro Gurek
Aproximadamente sete anos depois, o projeto que instituiu a Lei 14.597/2023 (Lei Geral do Esporte – LGE) foi finalmente sancionado e passou a vigorar na data da sua publicação, dia 15 de junho de 2023.
Trata-se de um importante marco legislativo para a prática desportiva no país, sobretudo porque buscou condensar em um único diploma legal todas as regras pertinentes ao setor, revogando o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/03) e a Lei do Bolsa-Atleta (Lei 11.438/06); e alterando alguns dispositivos da Lei Pelé (Lei 9.615/98) e Lei de incentivo ao Esporte (Lei 11.438/06).
Mesmo com muitos vetos, é inegável que a nova legislação traz importantes inovações para a prática desportiva no país, entre elas a criação do Sistema Nacional do Esporte (Art. 11), repasse de recursos públicos federais provenientes de loterias (Art. 34), obrigações de conformidade e integridade (Art. 58), direitos de transmissão (Art. 160), de imagem (Art. 164, § 4°), fair play financeiro (Art. 188) e crimes relacionados ao cenário esportivo – estes últimos, serão objeto de análise a seguir.
Antes, porém, é necessário especial destaque aos bens jurídicos protegidos pela LGE, partindo do principal que é autonomia esportiva (art. 26), do qual decorrem os demais (ordem econômica esportiva, integridade esportiva e a cultura e paz no esporte).
A autonomia esportiva, ou lex sportiva, diz respeito ao sistema transnacional formado por entidades que organizam o esporte, contemplando um compilado de regras[1] e regimentos aplicáveis às diversas modalidades esportivas em nível local, nacional e internacional, como, por exemplo, a Carta Olímpica elaborada pelo Comitê Olímpico Internacional[2].
Basicamente, é um sistema jurídico privado, transnacional, independente do direito estatal para sua produção e reprodução (CAMARGOS, 2015, p. 15), no qual se identificam três tipos de regras: regras do jogo, regras associativas e de competição (CHAPELLET, 2010, p. 42), garantindo a universalidade do desporto.
É a partir da compreensão da autonomia esportiva como bem jurídico transnacional que derivam a ordem econômica esportiva e a integridade no esporte, impondo aos gestores a submissão às regras de gestão corporativa, conformidade legal e regulatória, de transparência e de manutenção da integridade e da prática e das competições esportivas (art. 58).
Surge, assim, a Corrupção Privada no Esporte (Art. 165), crime próprio, destinado ao representante de organização esportiva privada, que exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida para favorecer a si ou terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou de omitir ato inerente às suas atribuições, cujo preceito secundário foi estabelecido com dois a quatro anos de reclusão e multa.
Como a corrupção caracteriza um crime bilateral de tipicidade diversa, a conduta recíproca, ou seja, aquela praticada pelo corruptor (que oferecer, prometer, entregar ou pagar vantagem indevida), será punida com as mesmas penas (Art. 165, parágrafo único).
Nessa linha, considerando que a LDE revogou o Estatuto do Torcedor, o delito em questão não se confunde com os artigos 41-C e 41-D, daquele diploma, também conhecidos como corrupção desportiva, os quais se tornaram conhecidos por serem objeto de imputação das denúncias na Operação Penalidade Máxima.
Agora, todos os tipos penais da legislação revogada (incluindo-se, aqui, a fraude desportiva prevista no art. 41-E) constam, com a mesma redação, nos artigos 198, 199 e 200 da LGE, integrando o rol de crimes contra a Incerteza do Resultado Esportivo.
Deste modo, malgrado os referidos tipos penais tenham sido revogados, as denúncias que apuram os esquemas de manipulação no Campeonato Brasileiro permanecem em tramitação, por força do princípio da continuidade normativo-típica, haja vista que as mesmas condutas continuam previstas no ordenamento jurídico, ainda que em outro diploma legal.
Algo semelhante ocorreu com o antigo artigo 41-B, do Estatuto do Torcedor, o qual foi transportado para a LGE, no rol de crimes contra a paz no esporte (art. 201), porém com redação ampliada e adaptada aos novos cenários do futebol.
Em resumo, o delito apresenta a mesma estrutura típica (i.e., promover tumulto, praticar ou incitar violência), acrescentando como condutas puníveis a invasão das dependências do VAR ou participação em brigas de torcida (Art. 201, inc. III).
Como novidade, a LGE tipifica os crimes contra as relações de consumo e a propriedade intelectual praticados no âmbito desportivo. A partir de agora, a venda, o fornecimento, desvio ou facilitação da distribuição de ingressos em valor superior ao preço impresso no bilhete, comumente praticada por cambistas, será punida com penas de um a quatro anos de reclusão e multa (arts. 166 e 167); enquanto o uso indevido de símbolos oficiais (emblemas, marcas, mascotes etc.), como ocorre em falsificações ou réplicas (art. 169), terá a punição de dois a quatros anos de reclusão e multa.
Outrossim, as práticas de marketing de emboscada por associação (art. 170) e marketing de emboscada por intrusão (art. 171) também foram criminalizadas. A primeira ocorre quando empresas utilizam os símbolos da competição (ex. Copa do Mundo, Olímpiadas), dando a impressão de que estão associadas ao evento ou são aprovadas pela organização; já a segunda, ocorre quando a publicidade é realizada em local proibido, como, por exemplo, no perímetro de acesso dos torcedores ao estádio.
Aqui, ressalvando-se apenas a conduta delineada no art. 169 da LGE, que se procede mediante ação pública incondicionada como os demais delitos anteriormente descritos, o rol de crimes contra a propriedade intelectual das organizações esportivas (seção III) somente se procede mediante representação da organização esportiva titular dos direitos violados (ex vi do art. 172).
Basicamente, na perspectiva criminal, estes são os pontos de maior relevância para o momento, cujo destaque se faz sem a pretensão de exaurir o tema, pois, o que se espera, é o fomento à discussão, uma vez que, cada vez mais, o esporte enquanto entretenimento e desporto, demanda a atuação para além do direito desportivo, constituindo temas multidisciplinares.
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Pedro Gurek é sócio do Sade & Gritz Advogados. Especialista em Direito Penal Econômico e Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia (ICPC – Instituto de Criminologia e Política Criminal).
Referências.
[1] CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. A Constitucionalização do Esporte no Brasil: Autonomia Tutelada – Ruptura e Continuidade. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição, Universidade de Brasília, 2017.
[2]CHAPPELET, Jean-Loup. The autonomy of sport in Europe. Strasbourg: Council of Europe (EPAS), 2010.
[1] Resolução A/69/L.5 da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), Carta Internacional da Educação Física e Esporte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco), Convenção Internacional contra o Doping no Esporte e própria Constituição Federal, no art. 217, inc. I.
[2] Regra 1, 1, Carta Olímpica: “Sob a autoridade suprema e liderança do Comité Olímpico Internacional, o Movimento Olímpico abrange organizações, atletas e outras pessoas que concordam em ser guiadas pela Carta Olímpica. O objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo pacífico e melhor pela educação dos jovens através do esporte praticado de acordo com o Olimpismo e seus valores”