Nos últimos dias veicularam notícias sobre o andamento da transformação do Cruzeiro Esporte Clube em Sociedade Anônima do Futebol.
Para esta Coluna, muito além das especulações dos avanços do clube, como a realização do estatuto social para migração do novo regime jurídico, ou quais serão os futuros investidores, interessa desenvolver os aspectos legais detidos no modelo societário escolhido pelo Cruzeiro, previsto agora na Lei nº 14.193/21.
Sinteticamente, a lei da Sociedade Anônima do Futebol fundamenta-se em três pilares: a estrutura societária e a forma de financiamento da SAF; as regras de transparência e governança a serem seguidas; e o tratamento tributário específico.
Até a promulgação da Lei 14.193/21, as associações desportivas podiam adotar modelos empresariais, conforme as disposições do Código Civil. A Lei Zico (Lei nº 8.672/1993) facultava a transformação dos clubes em sociedades empresariais, tornando-se obrigatório com a vigência da Lei Pelé, voltando a ser facultativo na faculta Lei nº 9.981/2000 (através da Medida Provisória nº 39), e por fim, a faculdade para obtenção retornou com a Medida Provisória nº 79 da Lei nº 10.672/2003.
Importante ressaltar que o tipo societário específico às especificidades das atividades do futebol adveio com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol. Por esta razão, designa-se marco legal, já que sua redação foi construída respaldando todas as particularidades do futebol, e suas distintas relações jurídicas.
A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) possui instrumentos capazes de conferir maior sustentabilidade na gestão do clube, permitindo maior segurança quanto aos controles orçamentários, em contraponto ao atual formato de clubes associativos, além da capacidade de atrair investimentos e financiar suas dívidas.
Exemplos que ocorreram em grandes clubes do exterior, como o Bayer de Munique, o clube de futebol figurou como o controlador da SAF, detendo a totalidade das ações emitidas pela nova sociedade, permitindo, em um segundo momento, a entrada de novos sócios acionistas, como no exemplo citado, Adidas e Allianz. A entrada de parceiros econômicos ocorre com emissão de ações pela SAF, o que não é possível no formato de associação civil.
Segundo relatam as informações, o Cruzeiro pretende instituir a SAF através da cisão de seu departamento de futebol. Dessa forma, todas as questões relacionadas à administração e à gestão profissional do futebol (exploração econômica de ativos, de formação de atleta profissional e outras atividades conexas ao futebol) ficarão sob responsabilidade da SAF, que não assumirá as dívidas contraídas pelo clube associativo, que por sua vez, permanecerá titular de seus próprios ativos, como nome, marca, símbolo e patrimônio, com a opção de integralizá-los na SAF, a depender do modelo optado pelo clube.
De acordo com o art. 2º da Lei 14.193/21, além da cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do patrimônio relacionado à atividade futebol, a Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF, ou pela iniciativa de pessoa natural, jurídica ou fundo de investimento.
Para deixar os torcedores do clube mineiro otimistas, destaca-se que a constituição da SAF permite a atração de investidores e novas formas de obtenção de recursos por meio da emissão de debêntures ou valor mobiliário. Debêntures são títulos de crédito privado, onde a sociedade anônima emite um título de dívida para determinados beneficiários, que passam a ter um direito de crédito com a companhia, mediante uma escritura de emissão, de ações ou de investidores, além de permitir a emissão de títulos, com a regulação da Comissão de Valores (CVM).
A constituição da SAF também abre a possibilidade de pessoas físicas, pessoas jurídicas e fundos de investimentos fazerem parte da gestão do time.
Em linha com as mudanças pretendidas por um clube que busca a sua reestruturação e adequação às boas práticas de gestão, a Lei nº 14.193/21 impõe regras que visam a inserção da Sociedade Anônima do Futebol em um ambiente de Governança Corporativa e Conformidade, como a instituição do Conselho de Administração e Conselho Fiscal, os quais constituem órgãos de existência obrigatória e funcionamento permanente, e cujos integrantes não poderão compor o qualquer outro órgão de administração, deliberação ou fiscalização, ou órgão executivo de outra SAF.
Em vista a garantir a integridade, não é permitido compor o Conselho de Administração atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente, treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com o clube, pessoa jurídica original ou SAF, árbitro de futebol em atividade. Além das regras para afastar possível conflitos de interesses, os membros do Conselho de Administração não poderão receber remuneração, caso este integre outro órgão eletivo, ou de administração, deliberação ou fiscalização do clube ou pessoa jurídica original que seja acionista da SAF.
Outras disposições da SAF que valem destacar são os procedimentos que visam à transparência, como a obrigatoriedade de informar e manter atualizado em seu site a composição dos membros do Conselho de Administração, Conselho Fiscal, diretoria, credores (caso o clube ou a pessoa jurídica original esteja em recuperação judicial, extrajudicial ou Regime Centralizado de Execuções), bem como descrição das informações gerenciais e ações de responsabilidade social, como o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social.
Os administradores da SAF responderão pessoalmente por eventual descumprimento das regras acima citadas. A esse respeito, a Lei nº 14.193/21, determina que os diretores deverão ter dedicação exclusiva à administração da SAF, e em seu art. 11prevê a responsabilidade objetiva e solidária dos administradores da SAF, alcançando o patrimônio pessoal, quanto às obrigações relativas ao repasse definido no art. 10º, sem prejuízo de responderem, pessoal e solidariamente, o presidente do clube ou o sócio administradores da pessoa jurídica original que constituiu a SAF pelo pagamento aos credores decorrente dos valores que a SAF tenha transferido.
A esse respeito, a SAF, em regra, não se responsabiliza¹ pelas obrigações do clube ou da pessoa jurídica original que a constituiu, contraídas antes de sua constituição, com exceção quanto às atividades relacionadas ao seu objeto social, transferidas na forma do art. 2º, §2º, da Lei nº 14.193/21.
Ainda assim, o clube ou a pessoa jurídica original se responsabiliza² pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da SAF, através das receitas próprias, além das receitas transferidas pela SAF, quando constituídas exclusivamente por destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF, de acordo com plano ratificado pelos credores no Regime Centralizado de Execuções, ou, por destinação de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.
Salienta-se que durante o tempestivo cumprimento de suas obrigações financeiras, a SAF não poderá sofrer constrição ao seu patrimônio ou em suas receitas, seja por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie, em débitos anteriores à constituição da SAF.
A Lei nº 14.193/21 criou condições para que os Clubes, sem prejuízo das suas atividades associativas e futebolísticas, pudessem regularizar e organizar suas finanças, passado, mediante gestão profissional e responsável capaz de gerar receitas a partir das referidas atividades de forma que permita a quitação das obrigações financeiras contraídas no passado, a partir dos percentuais a serem destinados pela SAF ao Clube, art. 10, I e II, preservando o fluxo de caixa da SAF.
É importante que não se confunda o “clube-empresa” da SAF. Cada conceito derivou do seu respectivo projeto de lei, dentre os quais, o primeiro objetivou soluções para quitação das dívidas dos clubes, enquanto a SAF, além desses aspectos, também enfatizou um sistema de regras de governança, estabelecendo formas de votação da sociedade, a influência do clube e seus dirigentes na empresa e o funcionamento de Conselho Fiscal e de Administração, além da criarem formas de financiamento, como a previsão de emissão de debêntures com regras especiais.
Os benefícios da SAF são variados, e alcançam todos da cadeia do futebol. Os dirigentes passam a contar com ferramentas de gestão modernas, baseadas na análise de riscos, os patrocinadores se alinham a uma marca que pauta a sua gestão em regras de Compliance e Governança.
Em termos de competitividade, como ocorre em todo mercado, a concorrência gera melhoria no setor. Ainda que os clubes não modifiquem o seu regime jurídico para a SAF, terão que se adequar aos critérios mínimos de governança se quiser competir com os que vierem a alterar, e permanecerem sob a égide do sistema.