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Aspire Academy, um oásis esportivo sob o sol de Doha

Por Ricardo Garcia Horta

A escolha do Qatar como país sede da Copa do Mundo de futebol de 2022 representou, destarte, a “cereja do bolo” de um projeto iniciado em meados do ano 2000 pelo país, que passou a utilizar o esporte como instrumento de comunicação e propaganda estatal – ora, não seria segredo nenhum que o esporte representa a principal ferramenta econômica, social e política existente no mundo!

Assim, o Estado qatari concluiu que, para desempenhar um papel satisfatório em competições esportivas internacionais, como ao sediar uma Copa do Mundo da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), precisaria contar com um material humano de maior qualidade para a construção de uma equipe nacional mais competitiva.

Isso seria algo pouco provável, uma vez que se trata de um país pequeno que dispõe de aproximadamente 3 milhões de habitantes, conhecido por suas fartas reservas petrolíferas e sem qualquer tradição esportiva.

Uma das soluções foi a construção da Aspire Academy[1], financiada pelo então Emir Hamad Bin Khalifa Al-Thani e a família real qatari, com início em 2004, meio ao deserto de Doha.

Desde sua abertura, em 2005, até o presente, foi oferecido a algo em torno de 6000 jovens, além de educação em tempo integral, a oportunidade de desfrutarem de um centro de treinamento esportivo inovador e invejado internacionalmente. Além do futebol, o projeto promove o desenvolvimento do atletismo, squash, tênis de mesa e esgrima, preocupando-se, também, no apoio a outras federações esportivas do Qatar, como a de golf, ginástica, tiro ao alvo, dentre outras.

Sob o pretexto de promover a formação de atletas e cidadãos, ou ainda preparar a próxima geração de campeões do Qatar por meio da excelência esportiva, somada ao intercâmbio cultural de treinadores, professores e outros profissionais contratados do mundo todo, a Aspire Academy vem sendo motivo de muitas discussões.

Além da formação de profissionais da saúde como médicos, enfermeiros, e ainda professores e engenheiros, o centro de treinamento apresenta resultados expressivos no cenário esportivo qatari. Destacam-se, dentre diversos atletas profissionais: Mutaz Essa Barshim – ouro no salto em altura nas olimpíadas de Tóquio, prata no Rio e em Londres, além de um tricampeonato mundial; Abdulla Al-Tamimi – 21 do ranking da Professional Squash Association e; Ashraf El-Seify – representante do país nas olimpíadas de Tóquio e Rio, na modalidade arremesso de martelo.

No entanto, as conquistas mais exaltadas pela Aspire dizem respeito ao sucesso no futebol. 70% do elenco da seleção do Qatar na Copa do Mundo FIFA 2022, o mesmo grupo campeão da Copa da Confederação Asiática de Futebol – AFC (2019), tiveram sua formação lá, bem como o fato de que muitos atletas já seguiam a metodologia e filosofia do técnico Félix Sanchez, desde muito jovens. Vale ressaltar que o técnico espanhol foi contratado pela Aspire em 2006 e desde então acompanhou de perto todo o desenvolvimento do futebol qatari. Em outras palavras, é possível afirmar que sem a Aspire Academy, não haveria uma seleção qatari de futebol competitiva.

Por outro lado, ao ser apresentada como um projeto social, a Aspire Academy possibilita que o Qatar desrespeite regras da FIFA, como o impedimento das transferências de atletas menores de idade entre clubes internacionais, uma vez que a entidade não é um clube de futebol, mas sim um centro de treinamento esportivo.  Ademais, tem-se a fundamentação do artigo 19 do Regulamento de Transferência de Atletas da FIFA que fixa as condições relativas às transferências de atletas menores.

Nesse sentido, configura-se a ideia de que o projeto estaria recrutando jovens pelo mundo para treiná-los e, eventualmente, oferecer a possibilidade de nacionalização.

Ainda com relação ao futebol, convém recordar que, em 2004, o Qatar já estimulava a nacionalização de atletas profissionais de futebol com o intuito de tentar qualificar-se para a Copa do Mundo de 2006. Hoje, 10 dos 26 atletas da seleção de futebol (ou quase 40%) não nasceram no país.

Nesse sentido, o Tribunal Arbitral du Sport – TAS delibera a expressão nation shopping ao se referir à prática de nacionalização do atleta estrangeiro que, em um primeiro momento, é integrado a um campeonato nacional, geralmente de pouca expressão ou pouco evoluído do ponto de vista técnico, em troca de remuneração valiosa e, em função da decorrência do tempo de sua residência no novo país, tal atleta estaria apto a adquirir uma nova nacionalidade.

Esse fenômeno, ainda que possa ser confundido como um dos reflexos da globalização do esporte, a meu ver, ofende o conceito da legitimidade do atleta ao defender a camisa da nação adotiva, em nome dos valores do esporte e da representação nacional.

Desse modo, embora sejam formalmente elegíveis para defender uma nação esportiva, tais atletas não mantêm vínculos reais de proximidade com a mesma ou até não possuem qualquer identificação com o referido país – podendo ser rotulados de “mercenários do esporte”.

É de rigor fazer a ressalva que a aquisição ou modificação da nacionalidade esportiva estariam facilitadas por regras e dispositivos de direito comum, entretanto adaptadas aos atletas de alto rendimento, com o objetivo específico de atraí-los para um determinado território.[2]

Tal prática mostrou um resultado positivo no handebol, uma vez que o Qatar, ao sediar o mundial em 2015 e contando com o “auxílio” de uma legião de atletas estrangeiros (dos 17, apenas 4 haviam nascido no país), alcançou a fase de quartas de final da competição – um feito inédito até então.

Logo, seria possível concluir que o Qatar por meio de seus projetos de desenvolvimento esportivo, tais como a Aspire Academy, estaria promovendo, na verdade, a desnaturação das competições entre seleções?

Não penso que é o caso. Na verdade, acredito que o Qatar está buscando, a qualquer custo, transparecer ao mundo a imagem de uma nação globalizada, rica e preocupada com o desenvolvimento de sua sociedade como um todo.

Em sua estreia na Copa, a seleção qatari se mostrou frágil perante a modesta equipe do Equador e foi derrotada em 2×0. Agora, deverá se recuperar perante as seleções de Senegal e Holanda, seus próximos oponentes, caso queira sonhar com a classificação para a segunda fase da competição e justificar o investimento gigantesco no esporte, ao longo dos últimos 20 anos.

Já fora dos campos, o objetivo do Qatar e do Sheik Hamad Bin Khalifa Al-Thani não será atingido tão cedo, provavelmente, visto que as ofensas a diversos Direitos Humanos e Universais no país (tais como a liberdade de expressão, igualdade de gênero e o respeito a integridade da pessoa humana) é nítida, perceptível e reprovada pela grande maioria dos demais participantes ou espectadores da competição.

É preciso destacar, ainda, a existência de fortes indícios e relatos que fundamentam a ideia de que o direito do país de sediar a Copa do Mundo de 2022, teria sido garantido através da implementação, por parte do Qatar, de uma ampla rede de tráfico de influência e pagamento de propina.

Crédito imagem: getty images

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Ricardo Garcia Horta é advogado, bacharel em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); atualmente é aluno do Mestrado no Núcleo de Direito Desportivo pela mesma universidade e; mentorado FUTJUR na área de Transferências e Contratos no futebol.

[1] https://www.aspire.qa/home

[2] NICOLAU, Jean. Direito Internacional Privado do Esporte, São Paulo, Quartier Latin. 2018. pg 76.

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