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Assédio na arbitragem: denúncias devem provocar mudanças

O lugar da mulher é onde ela quiser. A frase, que nos últimos anos virou lema, deveria servir para mostrar isonomia de tratamento entre os gêneros, disponibilizando as mesmas oportunidades para homens e mulheres. Mas ainda não é assim. O assédio sexual no esporte ainda acontece. A árbitra assistente Patrícia dos Reis diz ter sido assediada por um instrutor de arbitragem da Federação Baiana de Futebol.

Segundo ela, tudo começou no final de 2012. Com uma carreira em ascensão no futebol baiano, ela teria recebido diversos convites para reuniões particulares com o então instrutor Belmiro da Silva.

“Ele é um ótimo instrutor, tanto no aspecto físico quanto no técnico. E no fim de 2012 ele se propôs a me ajudar a passar nos testes físicos. Me ligava dizendo que queria me encontrar, que seria bom para a minha carreira, mas tinha que ser pessoalmente. Na época eu morava em Madre de Deus, cidade da região metropolitana de Salvador. Eu ia embora para casa sempre no fim do dia, depois das 23h, e ele se oferecia para me levar em casa. E eu sempre neguei, falava que queria encontrá-lo na sede da federação. Em 2013 as coisas pioraram. Ele passou a me ridicularizar nos treinamentos. Fazia piadas de baixo calão, falava que eu era fraca. Isso durou até 2015, quando ele deixou a comissão de arbitragem”, relembra Patrícia.

No aspecto jurídico, é difícil para que as árbitras tenham respaldo. “Árbitras não têm vínculo de emprego com as federações. Então não seria na Justiça do Trabalho que elas podem entrar”, afirma Luciane Adam, advogada especialista em direito trabalhista.

De 2015 a 2017, depois que Belmiro saiu, Patrícia viu a carreira deslanchar. Entrou para o quadro de árbitras da CBF e passou a ser figura frequente nos jogos do Campeonato Baiano da primeira divisão. Tudo ia bem até Belmiro voltar para a comissão de arbitragem da Bahia.

“Só queria que ele não se lembrasse de mim”, disse Patrícia. Mas quando começaram os treinos obrigatórios, já em 2018, tudo recomeçou. Segundo Patrícia, Belmiro passou a dizer que tudo que ela havia falado era mentira. Ela era uma das mais promissoras árbitras do estado e tinha vaga quase garantida no RAP-Fifa, um treinamento para desenvolvimento das árbitras.

“Eu já estava com as passagens e tudo reservado para participar do curso. Mas perdi um treinamento obrigatório porque tinha acabado de ser contratada por uma empresa, com carteira assinada e tudo. Pedi para me passarem os exercícios, que eu faria. Fui a todos os treinamentos depois. Mas no dia 3 de outubro do ano passado, recebi uma mensagem de uma árbitra falando que eu estava fora do RAP-Fifa. Foi muito doloroso. Era o meu sonho! Mas não teve jeito, eu estava fora”, relembra Patrícia, aos prantos, sobre o momento mais duro da carreira.

Ela diz ter procurado o então presidente da comissão de arbitragem da Bahia, Vidal Cordeiro, para saber os motivos de ter sido preterida. E afirma que não obteve nem sequer uma resposta. Vidal Cordeiro diz que a escolha foi baseada nos critérios técnicos.

“Temos um treinamento, e os que mais se ausentaram do treinamento nós mantivemos fora. Não tenho como atrelar isso ao problema do assédio. Ela faltou a dois treinamentos, por isso não foi para o RAP-Fifa. Meu mandato foi de 2017 a 2019. E foi na minha gestão que a Patrícia teve as melhores oportunidades profissionais. Levamos o caso para a corregedoria da CBF, que está analisando. Mas não podia demitir o Belmiro sem ter uma comprovação do fato. Não podemos punir ninguém sem a apuração dos fatos”, argumenta Vidal.

Segundo a advogada Luciane Adam, uma vez que os árbitros não podem buscar a Justiça do Trabalho, resta, a quem se sentir assediado, buscar a esfera criminal e cível. “O que elas podem pedir depende do tipo de agressão: assédio moral ou sexual, agressão física, agressão verbal, ameaça. Pode pedir indenização por danos morais, por exemplo”, afirmou a especialista.

Foi o que Patrícia fez. “Eu acordava chorando, passava o dia inteiro chorando. Fui a várias delegacias para poder denunciar o Belmiro. Isso fez com que eu saísse do meu emprego, porque eu não conseguia me concentrar. Mas entrei na Justiça e ganhei a ação”, revela Patrícia, deixando transparecer o alívio de alguém ter reconhecido que ela estava certa.

No último dia 27 de março, a juíza Ingrid Viana Pinto da Silva, da 6ª Vara do Sistema dos Juizados Especiais de Causas Comuns de Salvador, julgou procedente o pedido de Patrícia e condenou Belmiro da Silva a pagar R$ 6 mil de indenização por danos morais.

Belmiro nega todas as acusações e afirma que Patrícia mente ao falar que ele a assediou. “Ela é dissimulada. Vive sustentando uma mentira contada em vestiário. Não houve assédio coisa alguma, o que houve foi um trabalho sério de acompanhamento com todos os árbitros emergentes em 2012. Um grupo de oito a nove árbitros cuja parte física, técnica e psicológica estávamos monitorando. Tinha reuniões durante a semana às quais ela nunca aparecia, e quando eu percebia que estava faltando, ligava, como ligava para todos, com respeito e seriedade. Não sei o que é assédio”, defendeu-se Belmiro.

Ele refuta as acusações de que tenha prejudicado a carreira de Patrícia por ela não ter não ter cedido às investidas dele.
“Não houve nada disso. Eu era um simples colaborador da Federação Baiana de Futebol e não tinha poder algum de escalar ou retirar de jogo, de colocar ou retirar do RAP-Fifa. Quero que ela prove isso na Justiça. Sempre tratei todos com o mesmo respeito, homens e mulheres”, afirmou.

Atual presidente da comissão de arbitragem da Bahia, o ex-árbitro Jaílson Macedo diz que sua gestão será baseada na transparência da escala dos árbitros e no tratamento igualitário entre homens e mulheres e diz que a Federação Baiana de Futebol tem um corregedor para apurar casos assim.

“Já falei com a Patrícia, ela voltou a ser escalada, é uma ótima árbitra. E o resto eu deixo para a CBF resolver”, disse.

Para evitar casos assim, é necessário ter mecanismos de controle, diz o advogado especialista em compliance Nilo Patussi.

“Códigos de ética e condutas são importantes ferramentas para prevenir e educar a sociedade envolvida com o esporte, assim como fazer campanhas que divulguem o que são atos de assédio sexual, divulgar possibilidades de multas e consequências, incluir campanhas contra assédio em clubes, além de criar canais de denúncia e treinamento contra assédio para os atletas e o staff dos clubes”, alertou o advogado.

O Comitê Olímpico Internacional (COI), por exemplo, tem, em sua página na internet, um formulário para que os atletas denunciem os abusos e assédios.

Procurada para falar sobre como anda o processo de Patrícia contra Belmiro na corregedoria e sobre quais mecanismos de proteção e denúncia contra o assédio sexual existem na entidade, a CBF não respondeu aos questionamentos até a publicação deste texto.

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Foto: Divulgação/FBF

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