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Atleta que se recusa a cumprir as suas obrigações por motivo religioso

A atividade desempenhada pelo atleta profissional de futebol se dá, obrigatoriamente, de maneira formal mediante a celebração de um contrato de trabalho, com período de duração mínimo de 3 meses e máximo de 5 anos. Após o registro do referido contrato na respectiva entidade de administração do desporto terá início o vínculo desportivo.
Em que pese se tratar de uma relação de emprego, existem peculiaridades que envolvem a própria prática desportiva e diferem o atleta profissional de um trabalhador comum. A própria Lei Pelé afirma que o contrato do atleta é um Contrato Especial de Trabalho Desportivo.
No ano de 2016 o sítio de internet “Globoesporte.com” apresentou a seguinte manchete: “Religião deve obrigar Londrina a fazer revezamento de goleiros em 2016”, na qual informava que a escolha da religião Adventista pelo goleiro Vitor, titular absoluto do Londrina, poderia obrigar o clube a ter dois goleiros revezando na posição durante o ano. Como os adventistas não podem trabalhar ou fazer qualquer atividade do pôr do sol de sexta-feira até o pôr do sol de sábado, ele deveria desfalcar a equipe em treinamentos previstos para o sábado e, principalmente, na Série B do Campeonato Brasileiro.
Em que pese o calendário ainda não ter sido divulgado, o fato é que as partidas do campeonato da série B, geralmente ocorrem nas terças e sábados.
E nesta situação, quais são as implicações dessa situação no contrato de atleta? O clube é obrigado a aceitar essa condição? Poderá ser aplicada a pena de justa causa ao atleta?
O artigo 35 da Lei Pelé enumera quais são os deveres dos atletas. A saber:

– Participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas;

– Preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;

– Exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.

Não se trata de um rol exaustivo de deveres, tendo em vista que o atleta profissional, além dos deveres inseridos no artigo 35 da Lei Pelé, também deve observar a obediência, diligência e fidelidade, esta última entendida como respeito ao caráter ético da relação contratual.
Até mesmo fatores extracampo podem afetar o regular desempenho da atividade do atleta, ou seja, o atleta poderá ser punido em razão de conduta praticada fora do período em que está à disposição do empregador, fato este que raramente poderia afetar a vida de um trabalhador comum.
Desta forma, conclui-se que, ao contrário do que ocorre com os demais trabalhadores celetistas, o atleta profissional, além dos deveres inerentes ao desempenho da atividade desportiva, possui obrigações “extracampo”, envolvendo sua alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, descanso, prevenção de lesões, restrição de uso de medicamentos, dentre outras.
Logo é plenamente possível a aplicação da pena capital (justa causa) em razão de desídia do atleta nos treinos ou pela insubordinação e indisciplina caracterizados por comportamentos que impliquem em baixa produtividade/rendimento ou risco de lesão.
Contudo, insta ressaltar que é direito fundamental de toda pessoa não ser obrigada a agir contra a sua própria consciência e contra princípios religiosos. Logo, em tese, não seria lícito obrigar-se cidadãos a professar ou a rejeitar qualquer religião, ou impedir que alguém entre ou permaneça em comunidade religiosa ou mesmo a abandone.
O direito de liberdade de consciência e de crença deve ser exercido concomitantemente com o pleno exercício da cidadania. A Organização das Nações Unidas – ONU -, na sua célebre DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, assim prevê. Verbis:

ARTIGO 18. Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

No intuito de conferir interpretação ao dispositivo em comento, a própria ONU editou a DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE INTOLERÂNCIA E DISCRIMINAÇÃO BASEADAS EM RELIGIÃO OU CRENÇA (Resolução nº 36/55):

Art. 1º. Ninguém será sujeito à coerção por parte de qualquer Estado, instituição, grupo de pessoas ou pessoas que debilitem sua liberdade de religião ou crença de sua livre escolha.

Art. 6º. O direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença incluirá as seguintes liberdades:
[…]

h) OBSERVAR DIA DE REPOUSO e celebrar feriados e cerimônias de acordo com os preceitos da sua religião ou crença.

Nesse sentido também é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que ingressa no sistema pátrio nos termos do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Verbis:

Artigo 12. Liberdade de Consciência e de Religião

[…]

2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.”.

Interessante observar a disposição contida no artigo 26 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Verbis:

Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer opinião.

Por força do disposto no § 2º, do art. 5º, da Constituição Federal, tais tratados internacionais integram o Direito pátrio tal como se aqui originariamente positivados. No Brasil, a Constituição Federal, de 1988, consagrou, de forma inédita, que os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (art. 5°, § 2°).
Contudo, tais princípios devem ser aplicados com enorme cautela quando se trata de atleta profissional.
É importante, nessa hipótese, verificar se houve uma conversão para determinada religião no curso do contrato de trabalho, ou se era uma situação pré-existente à celebração do contrato de trabalho.
Isso porque, se o empregador já era conhecedor dessa situação ocorre, na hipótese, o consentimento tácito, razão pela qual não poderá alegar posteriormente o descumprimento do contrato.
Contudo, se a conversão à determinada religião que impede o atleta de exercer qualquer atividade aos sábados, ocorreu após a celebração do contrato, tal fato poderá ensejar a aplicação da pena capital em razão de não observância dos deveres enumerados no artigo 35 da lei Pelé.

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