Foi campanha da Nike.
Seria mais fácil para vocês se eu não fosse tão rápida?
Seria mais simples se eu parasse de vencer?
Vocês ficariam mais confortáveis se eu fosse menos orgulhosa?
Vocês gostariam que eu não tivesse trabalhado tão duro?
Ou apenas não corresse?
Ou escolhido outro esporte?
O Comitê Olímpico Internacional e a World Athletics provavelmente responderiam sim a essas perguntas da campanha publicitária da empresa com a atleta Caster Semenya. Afinal, não teriam que explicar como o atletismo nos Jogos de Tóquio começou sem a participação de um dos maiores nomes da modalidade. Semenya, ouro no Rio-2016 (assim como outras atletas de destaque do atletismo), foi proibida de competir por conta de ser quem ela é. Nesse caso, Tóquio não tem despertado “o melhor de nós”.
Explico.
O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) considerou que as normas da Federação Internacional de Atletismo (IAAF) para regular a participação de mulheres com desenvolvimento sexual diferente (DSD) são “discriminatórias”, mas mesmo assim “necessárias, razoáveis e proporcionais” para preservar a integridade do atletismo feminino. Você leu bem: “discriminatórias”, mas “necessárias”.
Sim. Tem um problema aí.
O caso
Caster Semenya tem hiperandrogenismo. O hiperandrogenismo é um problema endócrino caracterizado pelo aumento da ação dos andrógenos — hormônios masculinos, como a testosterona.
Para a World Athletics (Federação Internacional de Atletismo), isso gera vantagem competitiva às mulheres que competem, o que fere a “necessária igualdade” entre competidores.
A caso coloca mais uma vez em confronto alicerces da prática desportiva: a igualdade na competição e o combate à discriminação. As entidades de prática esportiva, por meio do controle antidopagem, sempre se preocuparam em coibir práticas manifestamente qua contrariam a lealdade das competições.
No entanto, a proteção de direitos humanos não se separa do jogo e, no caso de variações biológicas, como no caso de Semenya, cumpre entender que “igualdade” precisa ser protegida.
A decisão da Justiça
A bicampeã olímpica dos 800 metros decidiu lutar na Justiça pelo direito de competir do jeito que ela é. E perdeu.
O Tribunal Federal Suíço (SFT), última instância da cadeia jurídica do esporte, concluiu que a exigência de submeter certas atletas a intervenções cirúrgicas ou medicamentosas como pré-condição para competir não constitui uma violação da política pública suíça, e manteve decisão do TAS sobre regulamentações de testosterona.
Agora, como que a Corte Suiça reconhece uma decisão da lex sportiva que não está em conformidade com os direitos humanos? Repetindo: direitos universais não se separam do jogo, jamais.
Caster Semenya e todas as mulheres com desenvolvimento sexual diferente (DSD), cujo organismo produz mais testosterona do que o considerado normal para o gênero feminino biológico, precisam ser medicadas para reduzir os níveis do hormônio no organismo. Do contrário, são proibidas de disputar provas oficiais nas distâncias entre 400 e 1.500 metros.
As entidades esportivas determinam que as atletas com hiperandrogenismo façam a ingestão de hormônio antagônico, encontrado nos contraceptivos. Isso faz com que o nível de testosterona baixe. Ou seja, uma espécie de “doping às avessas”.
Foi isso que o próprio TAS entendeu, em 2019, como sendo “necessário, razoável e proporcional” para preservar a integridade do atletismo feminino. Mesmo considerando as normas “discriminatórias”.
Agora, se as características não medicamentosas dão vantagens aos atletas, isso faz parte da lógica do esporte competitivo. Superar os desafios através de treino e do desenvolvimento das habilidades.
Já se questionou a altura de Usain Bolt e a envergadura de Michael Phelps? Ou elas foram celebradas e explicadas cientificamente como elementos que ajudam nos feitos desses gênios do esporte?
O regulamento em vigor – reconhecido pelos Tribunais – permite que mulheres que não desejam reduzir seus níveis de testosterona possam participar na categoria feminina de quaisquer eventos não internacionais e nos eventos internacionais ditos “não restritos”. Possibilita também que essas mulheres possam disputar na categoria masculina e em eventual categoria intersex.
Esse caminho tem provocado reações fortes da comunidade mundial, Relatoria Especial da ONU para o Direito à Saúde conclamou as organizações esportivas a implantarem políticas de acordo com as normas de direitos humanos e a não introduzirem políticas que forcem mulheres a passarem por procedimentos médicos desnecessários e irreversíveis para participar de competições femininas.
No campo do direito internacional dos direitos humanos, os Princípios de Yogyakarta estabelecem que os Estados devem garantir que todos os indivíduos possam participar de esportes sem discriminação em razão de orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais.
A organização Human Rights Watch publicou uma carta aberta ao presidente da Federação de Atletismo sustentando que essa nova regulamentação é discriminatória e promove violações de direitos humanos internacionalmente protegidos, incluindo o direito à privacidade, à saúde, à integridade do corpo, à dignidade e à não discriminação.
Entidades exigirem que determinada pessoa modifique suas condições naturais para se adequar a um pseudo-padrão me parece uma afronta aos direitos fundamentais.
Ninguém sabe o que pode acontecer.
Se os níveis de testosterona estão sendo regulados para o esporte feminino, eles também podem ser para os homens?
Os regulamentos tratam os homens de forma diferente. Os atletas com níveis de testosterona acima do normal podem se submeter a exames para demonstrar que se trata de uma questão genética, e eles então recebem uma carteira que lhes permite competir sem o risco de punição por doping.
Mais uma vez esporte esquece sua natureza igualitária e mulheres são as vítimas.
Histórico de agressão
Os testes de “verificação de sexo” fazem parte de capítulos tristes da história do esporte já há bastante tempo.
Na década 1930, o desempenho esportivo e a aparência física de algumas atletas passaram a chamar a atenção dos organizadores dos eventos, já que rompiam com o estereótipo da mulher frágil e incapaz de obter resultados expressivos. O discurso era de que “homens pudessem estar competindo na categoria feminina”.
Foi a partir dessa ideia que se instituiu a sistemática dos primeiros testes de “verificação de sexo” na década de 1960. No Campeonato Europeu de Atletismo em 1966 e nos Jogos Pan-americanos em 1967, todas as atletas foram submetidas a inspeções visuais em procedimentos que ficaram conhecidos como “paredões de nudismo”.
Tem um vídeo aqui que deve ser visto.
Nos Jogos da Commonweatlh disputados na Jamaica em 1966, a situação ficou ainda mais grave e invasiva. As atletas foram submetidas a exames ginecológicos manuais.
A situação absurda gerou protesto forte da comunidade esportiva, de coletivos de defesa das mulheres e Comitê Olímpico Internacional acabou por extinguir os testes visuais ainda na década de 1960. Mas a vigilância continuou e ele passou a adotar o teste de cromatina conhecido como Teste de Barr, o qual envolvia uma análise celular para identificar se a pessoa tinha formação cromossômica XX ou XY.
No entanto, atletas com síndromes que atingiam a formação cromossômica (síndromes como de Klinefelter, Turner ou insensibilidade androgênica) desafiavam as bases do Teste de Barr. Organizações de direitos humanos também se posicionaram e denunciavam o caráter discriminatório desses testes.
Então, os Testes de Barr foram substituídos pelo teste genético conhecido como SRY (sex-determining region), que focava a análise em uma região específica do cromossomo Y. Este último teste perdurou até 1999, quando o COI cedeu às pressões e extinguiu de forma oficial a sua política de testes dessa natureza.
E agora?
A World Athletics entende que as atletas intersexo, como Semenya, que têm os cromossomos masculinos XY em vez dos femininos XX, são 7,1 a cada mil atletas de elite, ou 140 vezes mais do que a população geral, com uma presença mais no pódio. E defende o caminho tomado.
— As regras atuais da World Athletics não são nada que alguém pudesse inventar do nada — diz Joanna Harper, especialista em atletas intersexo e transgênero da Universidade Loughborough, no Reino Unido. — As regras são deselegantes e desajeitadas — diz Harper, que apoiou o caso de Semenya na World Athletics. — Mas eu acho que é uma solução razoável para um problema extremamente complicado.
Semenya também se manifestou quando saiu a decisão:
“Estou muito decepcionada com essa decisão, mas me recuso a permitir que a World Athletics me drogue ou me impeça de ser quem eu sou. Excluir atletas do sexo feminino ou colocar nossa saúde em risco apenas por causa de nossas habilidades naturais coloca a entidade no lado errado da história”, disse Semenya em comunicado.
Essa é uma discussão importantíssima. E vale tanto para atleta DSD como para transgênero, e todo aquele que sofre violação a direitos fundamentais no esporte.
É preciso avançar na proteção de Direitos Humanos.
Mas se olhamos para trás, nos próprios testes de verificação de gênero, percebemos que, embora as entidades esportivas ainda imponham critérios de participação em nome de uma competição “supostamente justa”, as pressões exercidas por atletas e organizações de direitos humanos têm promovido diálogos que ocasionam certa abertura da Lex Sportiva (regras do esporte) aos direitos humanos.
Por isso a participação de todos, de atletas e coletivos globais, ajudam na pressão por mudanças nas regras do esporte. Agora, esse caminho será acelerado quando houver uma conscientização coletiva (e isso passa sempre por educação ) de que o esporte não se separa jamais da proteção de direitos humanos. E quando ha conflito entre regulamento interno e direitos humanos, só há um caminho possível.
Afastar mulheres da competição em função de uma característica natural em nome da igualdade esportiva, é contrariar a essência da própria igualdade, protegida por todas as cartas de Direitos Humanos e pela própria Carta Olímpica.
Não existe esporte longe dos Direitos Humanos. Não existe justiça sem respeito ao que a pessoa é. E o esporte precisa ser motor da transformação social escrita por Leminski… (como lembrou o advogado Vinícius Calixto em coluna no Lei em Campo)
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além
(Trecho do poema “Incenso Fosse Música”, de Paulo Leminski)
Crédito imagem: Getty Images
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