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Autonomia das entidades desportivas e afastamento de seus dirigentes

Por Rodrigo Santos

As entidades de administração do desporto no Brasil são “pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo” (art. 16 da Lei 9.615/98). Em geral, essas entidades são constituídas sob a forma de associações.

Associações civis são pessoas jurídicas de direito privado, sem finalidade econômica, formadas por indivíduos que comungam de interesses ou objetivos comuns. O Código Civil (lei 10.406/2002) trata das associações nos artigos 53 a 61. Tais entidades são registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (art. 120 e segs da Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/73). As associações têm origem no direito romano[1].

Uma associação civil rege-se por seu estatuto. Para as associações, “os estatutos constituem a lei orgânica da entidade[2]. O Código Civil traz no art. 54 alguns temas que devem obrigatoriamente ser tratados pelo estatuto. Enumera, ainda, temas de competência privativa da assembleia geral (art. 59). A alteração dos estatutos, todavia, é disciplinada nos artigos 59 e 60.

Especificamente quanto às associações desportivas, aí incluídos os clubes e as entidades de administração do desporto, a Constituição Federal assegurou autonomia quanto à organização e funcionamento (art. 217, I).

Por muito tempo se discutiu se a autonomia estampada na Constituição Federal autorizaria uma livre organização dessas entidades, longe do quadro normativo estabelecido no Código Civil e nas demais leis do país. O Supremo Tribunal Federal, apreciando ação direta de inconstitucionalidade movida contra o art. 59 do Código Civil em sua redação original, debateu o tema, orientando-se no sentido de que a autonomia dessas entidades era limitada, devendo ser obedecida a legislação estatal (ADI 3.045-1). Em outras palavras, “a autonomia é autodeterminação dentro da lei[3].

Assim, a autonomia das entidades desportivas pode ser conceituada como “a faculdade de que gozam as entidades desportivas dirigentes e as associações de se autogovernar e se organizar[4]. Essa autonomia engloba o chamado autogoverno, que, na lição de Luís Roberto Barroso[5], “significa o poder de escolha dos próprios dirigentes e de seus membros” e, logicamente, a possibilidade de destituí-los.

O artigo 59 do Código Civil, em sua redação original, previa a competência privativa da assembleia geral para eleger e destituir os administradores da entidade (inc. I e II), aprovar as contas (inc. III) e alterar o estatuto (inc. IV), estabelecendo ainda elevados quóruns para a aprovação da destituição de administradores e alteração dos estatutos. Essa redação engessava profundamente as associações, motivo pelo qual, com a edição da Lei Lei 11.127/2005, optou-se por deixar à critério do estatuto a forma de deliberação, bem como o quórum, além de retirar a atribuição de eleger administradores e aprovar as contas.

Assim, hoje, ao menos duas matérias são de competência privativa da assembleia geral: a destituição de administradores e a alteração dos estatutos. Segundo o Ministro Celso de Mello:

“o preceito consubstanciado no art. 59 do Código Civil constitui norma de ordem púbica, impregnada de caráter imperativo, destinada a estabelecer um sentido de ordem e de disciplina jurídicas no seio das associações, com o objetivo de viabilizar o respeito à vontade majoritária dos associados (sempre que se não obtiver o necessário consenso em torno de matérias de alta relevância, como o são aquelas referidas na regra em questão).

No fundo, a assembleia geral possui uma vocação genuinamente democrática, pois representa, enquanto órgão máximo de deliberação colegiada, o instrumento de concretização, por excelência, do princípio democrático, cujo alcance – embora permitido realizar, como função precípua que lhe é inerente, a vontade majoritária dos associados – também representa fator de preservação dos interesses das correntes minoritárias, obstando, quanto a estas, que se pratiquem atos configuradores de abuso de poder”

(voto do Min. Celso Mello na ADI 3.045-1)

Assim, a destituição de administradores das associações é ato de competência privativa da assembleia geral extraordinária (AGE), “especialmente convocada para esse fim” (art. 50, I, c/c parágrafo único). Cabe à AGE o “poder de deliberação sobre matérias de relevo evidente para a vida, o funcionamento e a consecução de objetivos para os quais essas associações e entidades desportivas foram concebidas[6].

Nos últimos anos, todavia, dirigentes de entidades desportivas têm sido afastados do cargo sem qualquer deliberação da assembleia geral das respectivas entidades. Em alguns casos, a título de “afastamento cautelar”, opera-se uma verdadeira “destituição branca”. Citarei três casos para ilustrar o que aqui é dito.

Recentemente um Presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) foi afastado do cargo por ordem da Comissão de Ética da entidade, órgão estatutário. A decisão da comissão de ética foi publicada no dia 06/06/2021 e o afastamento teria duração de 30 (trinta) dias, posteriormente ampliado em mais 60 (sessenta) dias. Em seguida, foram aplicadas penas de suspensão, agora sim, referendadas pela assembleia geral da entidade. O Presidente jamais retornou ao cargo.

Não faz muito tempo o Presidente da Confederação Brasileira de Handebol (CBHb), acusado de assédio sexual, foi punido pelo Conselho de Ética do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) a uma suspensão de 02 (dois) anos, pena que equivalia, na prática, a uma destituição, já que teria que se afastar do cargo cujo para não mais voltar, pois o seu mandato expiraria antes do fim do cumprimento da pena. Inconformado, obteve liminar na justiça fluminense assegurando-lhe o retorno ao cargo. Por pressão do COB, ante o corte de repasse dos recursos da lei Agnelo-Piva, renunciou ao cargo.

Mais recentemente, o Presidente da Confederação Brasileira de Skate (CBSK) foi apenado com suspensão pela World Skate, federação internacional à qual é filiada a CBSK. Os limites dessa suspensão ainda são objeto de polêmica, tendo a imprensa veiculado que o COB estaria impedindo o pleno exercício das funções, supostamente por entender que a suspensão aplicada teria efeitos também na relação entre COB e CBSK. Aparentemente haverá corte de recursos da lei Agnelo-Piva, tal como no caso narrado no parágrafo anterior.

O primeiro exemplo citado ilustra uma realidade na qual órgãos estatutários têm usurpado a competência privativa da assembleia geral das entidades desportivas. Os dois últimos exemplos citados são mais graves ainda, pois o órgão sancionador pertence à estrutura de outra pessoa jurídica de direito privado, o que se choca com a autonomia conferida pela Constituição Federal (art. 217, I).

É descabida a alegação de que os sujeitos sancionados, no caso, Presidentes de entidades, aceitaram sujeitar-se a essas regras estatutárias ao assumir o cargo. É que a norma do art. 59 do Código Civil é de ordem pública, cogente.

Diante desse quadro, entendemos que punições a dirigentes de entidades desportivas regularmente eleitos só podem ser impostas por meio de deliberação da assembleia geral da entidade por eles presidida.  A mesma lógica se aplica aos afastamentos cautelares. De outro modo, o afastamento cautelar poderia servir a uma “destituição branca” desses dirigentes, a fim de burlar a competência da assembleia geral.

Crédito imagem: CBF

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Rodrigo Santos – Advogado (desde 2007). Doutorando em Direito. Mestre em Direito (2014). Procurador-Geral de Justiça Desportiva do Futebol em Pernambuco (2018-atual).

[1] PETIT, Eugene. Tratado elemental de Derecho Romano. Buenos Aires: Albatros. 1954. Pág. 222.

[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte Geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pág 287

[3] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 4. São Paulo, Saraiva. pag. 88

[4] BASTOS, Celso Ribeiro e GANDRA MARTINS, Ives. Comentários à Constituição do Brasil, 8o vol., Ed. Saraiva, são Paulo, 1998, p. 745

[5] BARROSO, Luís Roberto. “Autonomia desportiva, autonomia da vontade e liberdade de associação: Inconstitucionalidade da mudança compulsória da sede da Confederação Brasileira de Futebol.” In: Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pag. 570.

[6] Voto do Min. Celso Mello na ADI 3.045-1.

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