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Bolsa-atleta nos esportes coletivos: uma limitação à proteção do atleta de alto rendimento e o diferente tratamento jurídico para seus beneficiários

Por Carolyne Ferreira de Souza

  1. Introdução

O atleta profissional é titular do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, modalidade contratual prevista pela Lei 9.615/98, a Lei Pelé, para o exercício laboral de tal atividade que possui inúmeras particularidades. Entre elas, a que discutiremos aqui é o seguro de vida e acidentes pessoais.

Entretanto, o atleta beneficiário do bolsa-atleta, em regra, não é titular de Contrato Especial de Trabalho Desportivo, não sendo, portanto, alcançado por todas as particularidades dessa modalidade contratual que a lei prevê, gerando diferenças que impactam juridicamente aos atletas, especialmente quando falamos em esporte coletivo.

Nesse sentido, analisaremos a seguir tal situação sob a ótica legal, doutrinária e jurisprudencial buscando soluções para tal conflito.

  1. Seguro de vida e acidentes pessoais para atletas

O esporte de alto rendimento exercida pelo atleta profissional o sujeita a constantes lesões pelo exercício da própria atividade, sendo objeto do direito ao seguro de vida e acidentes pessoais, sendo contratado pela entidade de prática desportiva empregadora.

Como prevê a lei no artigo 45: “As entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos”.

A lei menciona que o objetivo da contratação de tal seguro é proteger o atleta dos riscos da atividade, de modo que se ele se lesionar, terá a estabilidade de doze meses recebendo o valor médio de sua contratação.

O valor do seguro deve equivaler a uma remuneração anual do jogador empregado e ocorrendo o acidente deve ser liberado para o próprio atleta acidentado ou ao beneficiário por ele indicado no contrato de seguro e enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização, a entidade de prática desportiva empregadora será responsável por custear as despesas médico-hospitalares e os medicamentos necessários para a recuperação do atleta.

Tal direito, contudo, está previsto como uma especificidade do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, que de acordo com a Lei 9.615/98, é o que caracteriza a atividade do atleta profissional juntamente com a remuneração pactuada.

Entretanto, nas inúmeras modalidades esportivas em prática no Brasil, nem todos os atletas exercem suas atividades mediante a formalização de um Contrato Especial de Trabalho Desportivo, sendo muitos deles beneficiários da Bolsa-atleta, que acaba diferenciando aspectos muito relevantes da contratação desses atletas.

  1. O vínculo esportivo do bolsa-atleta

A Bolsa-Atleta foi instituída pela Lei 10.891/2004, sendo destinada prioritariamente a atletas de alto rendimento em modalidades olímpicas e paraolímpicas, sem prejuízo da análise de demais modalidades para tal recebimento.

A lei classifica os atletas beneficiários como categorias de base, estudantil, atleta nacional, atleta internacional, atleta olímpico ou paraolímpico e atleta pódio. O PLS nº 68 de 2017, em tramitação e conhecido como a Nova Lei do Desporto, reforça tais elementos e prevê ainda que:

Art. 47. O Poder Público fomentará a formação, desenvolvimento e manutenção de atletas em formação e de rendimento por meio de auxílios diretos denominados “bolsa”.

Parágrafo único. O beneficiário das bolsas dispostas no caput não possui vínculo de qualquer natureza com o órgão ou entidade concedente, assim como não mantém relação de trabalho ou de emprego com a organização esportiva com a qual mantenha vínculo esportivo e, se possuir idade igual ou superior a dezesseis anos, filia-se ao Regime Geral de Previdência Social como contribuinte individual, na hipótese de o valor de sua bolsa superar o do salário mínimo (grifo meu).

Complementando a informação da presente Lei 10.891/2004 que prevê no artigo 2º-A que “a concessão da Bolsa-Atleta não gera qualquer vínculo entre os atletas beneficiados e a administração pública federal”.

A lei, portanto, deixa clara a ausência de vínculo empregatício e a descaracterização com a entidade concedente, e com a organização com a qual se mantém o vínculo esportivo, se limitando, portanto, a um vínculo esportivo.

Contudo, apesar de se tratar apenas de um vínculo esportivo que não gera maiores obrigações como de natureza trabalhista, permanece configura a característica do alto rendimento. Entendo que o objetivo da bolsa-atleta é fomentar a prática do esporte rendimento, sendo importante para este fim, contudo, em alguns casos, como em esportes coletivos como o futebol feminino, se misturam as atletas devidamente contratadas com um Contrato Especial de Trabalho Desportivo e as beneficiárias da Bolsa-atleta. Nesse contexto, todas passam pelo mesmo tipo de treinamento, estão sob as mesmas exigências, porém, algumas, além de alcançarem a diferença salarial, estão protegidas pelo vínculo empregatício e pelas particularidades decorrentes dele, como o anteriormente mencionado seguro de vida e acidentes pessoais.

  1. A desproteção do atleta beneficiário do bolsa-atleta frente à atividade de alto rendimento

O benefício da bolsa-atleta não gera Contrato Especial de Trabalho Desportivo, logo, não há contrato de trabalho para este atleta, somente o termo de concessão do benefício devido à descaracterização do vínculo pela própria lei.

Nesse sentido, o Tribunal Superior do Trabalho afirma:

I- AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. JOGADOR DE FUTSAL. RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO DE EMPREGO. O Tribunal Regional negou provimento ao recurso ordinário interposto pelo Reclamante, sob a tese de que: (…) ainda que o Reclamante tenha atuado como jogador de Futsal por intermédio da segunda Ré (Fundação Municipal de Esportes de Paranaguá), e tenha se submetido aos treinamentos e disciplinas impostos a todos os integrantes da equipe, auferindo, inclusive, haveres pecuniários que eram rateados entre os atletas a título de ‘bolsa-auxílio financeiro’, como evidencia o documento de fls. 76/84, inexistiu qualquer vínculo de emprego entre as partes, já que o desporto não-profissional se caracteriza pela inexistência de contrato de trabalho (fl. 132) O aresto colacionado a fl. 153, oriundo do TRT da 4ª Região, por outro lado, registra: ” EMENTA: VÍNCULO DE EMPREGO. JOGADOR DE FUTSAL. Comprovada a prestação de serviços pelo reclamante como atleta profissional e preenchidos os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT, deve ser reconhecido o vínculo de emprego mantido entre as partes, posto que a ausência de contrato formal não descaracteriza o vínculo alegado, nos moldes do art. 28 § 1º da Lei Pelé (Lei 9.615/98. Assim, a tese é divergente daquela adotada no acórdão recorrido. Agravo de instrumento a que se dá provimento, para determinar o processamento do recurso de revista, observando-se o disposto na Resolução Administrativa nº 928/2003.

II – RECURSO DE REVISTA. JOGADOR DE FUTSAL. RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO DE EMPREGO. A jurisprudência deste Tribunal Superior é no sentido de que o futebol de salão não é, no Brasil, modalidade profissional. Já o art. 28 da Lei 9.615/98, com redação anterior à dada pela Lei 12.395/2011, é expresso em exigir a formalização do contrato de trabalho  para  que  se  caracterize o  vínculo  empregatício  do  atleta.

Assim, embora, no caso, o Tribunal Regional tenha reconhecido a presença dos elementos caracterizadores da relação de emprego nas atividades do Reclamante, a ausência de formalização expressa do contrato de trabalho impede o reconhecimento do vínculo empregatício. Recurso de revista de que se conhece e a que se nega provimento.

Em 2019, das vinte e três atletas da Seleção Feminina de Futebol, dezessete recebiam bolsa-atleta. Por mais importante que seja o incentivo nesse caso, é evidente que existe uma diferença no esporte coletivo, uma vez que seis atletas de fato possuíam Contrato Especial de Trabalho Desportivo.

Na hipótese de uma dessas atletas sofrer uma lesão, ela não terá o mesmo nível de proteção que suas colegas contratadas. Não será alcançada pela estabilidade, uma vez que não houve seguro de vida e acidentes pessoais contratado em favor dela e seu vínculo empregatício não será reconhecido.

No caso hipotético não poderíamos falar em “equiparação”, uma vez que para que a CLT prevê a equiparação salarial, que no caso de atletas não é cabível pois varia o valor de mercado não havendo um paradigma. Além disso, o requisito de “mesmo empregador” estaria descaracterizado porque neste caso apenas se configura empregador para quem de fato é empregada, e a beneficiária do bolsa-atleta não é.

A jurisprudência mencionada fala em “desporto não profissional” dizendo que ele se caracteriza pela inexistência de contrato de trabalho. Nesse sentido, questiona-se: a atividade exercida pelas atletas do exemplo anterior não seria profissional?

Acerca disso, Rafael Teixeira Ramos menciona:

No Brasil há uma estrondosa obscuridade na Lei 9.615/98 entre competição desportiva profissional e praticante desportivo profissional, pois na definição de um e outro existem confusos conceitos entre o que é competição desportiva profissional e praticante desportivo profissional, pois na definição de um e outro existem confusos conceitos entre o que é competição desportiva profissional e atleta profissional (RAMOS, 2021, p. 51).

Álvaro de Melo Filho, por sua vez, afirmou que “Andou certo o legislador ao deixar a latere o desporto para centrar-se no atleta, pois o profissional ou não profissional não é o desporto, e sim o praticante ou a sua organização” (MELO FILHO, Álvaro apud RAMOS, 2021, p.51).

O atleta pode, portanto, ser profissional praticante de uma modalidade não profissional, uma vez que a profissional é caracterizada pela existência de remuneração e Contrato Especial de Trabalho Desportivo firmado entre as partes (art. X, Lei 9.615/98).

Um ponto importante a ser analisado sobre tal questão é acerca da prática desportiva formal e não formal.

“Atualmente a prática desportiva reside em uma estrutura dualista, pautada no desporto formal e não formal. Assim é o sistema brasileiro com alguns incrementos divisores, mas com o primado dual de prática desportiva formal e não formal” (RAMOS, 2021, p.53).

Sobre o desporto formal, Rafael Teixeira Ramos contextualiza ainda essa diferenciação da seguinte forma:

  1. Desporto de rendimento = Desporto de alto rendimento = competição (art. 3º, III, §1º, da Lei Pelé)
  2. Desporto de rendimento profissional (futebol) (arts. 3º, §1º, inc I, 94, da Lei Pelé) ≠ Desporto de rendimento não-profissional (art. 3º, §1º, inc II, 28-A, prática do desporto federado para competições internacionais e do ciclo olímpico, mas sem contrato de trabalho) ≠ Desporto de formação, Desporto de categoria de base com o intuito de formação profissional (arts. 3º, inc IV, da Lei Pelé, inserido pela recente Lei n. 13.155/2015). (RAMOS, 2021, p. 54)

As atletas do exemplo mencionado anteriormente não se classificam no desporto não formal, uma vez que o desporto não formal seria desporto educacional, de participação, terapêutico, ressocializador, desporto saúde, lazer em geral e desporto como preservação do meio ambiente.

No caso em tela, em tese, seria o desporto formal sendo de rendimento não profissional, ou seja, a prática do desporto federado, mas sem contrato de trabalho.

Contudo, como observamos, essas profissionais exercem o desporto formal em um mesmo contexto que outras atletas exercem o desporto profissional caracterizado pelo vínculo empregatício.

Não é preciso se limitar ao exemplo da seleção brasileira, uma vez que atualmente tal situação é realidade em clubes brasileiros e acontece no próprio futebol feminino, restando então um evidente desequilíbrio, pois há uma coletividade exercendo a mesma atividade, no mesmo local, para a mesma entidade de prática desportiva, porém algumas sendo de fato contratadas como atletas profissionais de alto rendimento e outras sendo beneficiárias da bolsa-atleta como estímulo ao esporte de alto rendimento.

  1. Conclusão

O atleta beneficiário do bolsa-atleta possui um incentivo que gera vínculo esportivo com a instituição onde ocorrem seus treinamentos e através de quem realiza competições, sem, contudo, poder se considerar vínculo empregatício conforme demonstra a jurisprudência e prevê a própria lei que instituiu o bolsa-atleta.

Apesar da compreensão de que se trata de um benefício com o objetivo de fomentar o esporte de alto rendimento, como lidar com o benefício da bolsa-atleta sendo usado como meio de não contratação do atleta profissional através do Contrato Especial de Trabalho Desportivo nos moldes da Lei 9.615/98 e da CLT?

Quando existe um grupo de atletas no esporte coletivo, por exemplo, praticando o mesmo esporte, contratadas com o mesmo fim, como tratar essa diferença? Considerando que, apesar da caracterização legal e doutrinária das diferenças entre o não profissional e o não profissional, na prática podemos observar atividades idênticas em contextos contratuais tão diferentes.

O princípio da primazia da realidade diz que “no direito do trabalho valem mais os fatos do que o constante de documentos” e que “são privilegiados, portanto, os fatos, a realidade, sobre a forma ou a estrutura empregada” (MARTINS, 2020, p.63).

Desse modo, pela interpretação do princípio da primazia da realidade, as atividades exercidas são idênticas, afinal, na situação analisada, tratando-se de esporte coletivo, não há como diferenciar treinamento, disputas e conquistas dos atletas, que podem, inclusive, facilmente ser vistos em fotos e jogos disputando juntos, porém, juridicamente enquadrados em contextos muito diferentes.

Sem dúvida é menos oneroso manter um atleta beneficiário da bolsa-atleta e não precisar sustentar os custos do vínculo empregatício como empregador, mas o atleta, quando lesionado, resulta desprotegido, pois não há contrato, vínculo e seguro de vida e acidentes pessoais que o proteja.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


Carolyne Ferreira de Souza. Advogada, especialista em Direito Desportivo e Direito do Trabalho, Mestranda em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Diretoria do GEDD São Judas.

Referências

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. (4ª Região). Acordão. Relator: Fernando Eizo Ono. Julgamento: 29/10/2014. Publicação: 31/10/2014. Processo: RR – 431-08.2011.5.09.0411

Dependência do Bolsa Atleta marca Seleção Brasileira de Futebol. Época Negócios. Jun. 2019. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/06/epoca-negocios-dependencia-do-bolsa-atleta-marca-grupo-da-selecao-feminina-de-futebol.htmldas>

MARTINS, Sergio Pinto. Manual de Direito do Trabalho. 13ª ed. 2020. São Paulo, Saraiva Jur.

RAMOS, Rafael Teixeira. Curso de Direito do Trabalho Desportivo: As relações especiais de trabalho do esporte. 1ª ed. 2021. Bahia, Juspodivm.

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