Como é sabido, a transmissão das partidas de futebol pela rádio é uma tradição do esporte brasileiro, passada de pai para filho, de geração para geração. Comumente, é fácil encontrar torcedores com a rádio no ouvido em pleno estádio, visualizando as imagens e sentindo a emoção através de uma narração incomparável. No entanto, com a iminente aprovação da Lei Geral do Esporte, há uma promessa de afetação drástica na maneira como se vivencia o esporte bretão.
Antes de expor a proposta do Projeto de Lei 1153/2019, faz-se necessário explicar a normativa vigente aqui no Brasil. A Lei Pelé (9.615/98)[1], mais precisamente no artigo 42, dispõe sobre o direito de arena, que pertence às entidades de prática desportiva, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.
Posteriormente, em função da Lei do Mandante (14.125/21), houve significativa alteração na normativa, com a introdução do artigo 42-A, que estabeleceu que pertence à entidade de prática desportiva de futebol mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo. Ocorre que, todavia, a legislação continuou silente quanto às transmissões de rádio, que não se encaixam no conceito de imagens, logo os operadores de rádio não deviam pagar para transmitir as respectivas partidas de futebol.
Contudo, esse silêncio foi rompido pelo projeto da Nova Lei Geral do Esporte[2] que, nos artigos 159 e 160, inclui a possibilidade e o direito de exploração comercial da difusão de imagens e sons em eventos esportivos, que pertenceria às organizações esportivas mandantes que se dedicam à prática esportiva.
Muito embora o termo som não ser o correto e não definir com precisão a atividade de uma rádio, uma vez que ela não se utiliza dos sons de uma partida ou do estádio exatamente, se abriu uma possibilidade de cobrança, pelo clube mandante, dos operadores de rádio pela transmissão dos jogos.
Nesse sentido, é válido mencionar que as operadoras de rádio já se insurgiram contra essa possibilidade,[3] alegando que essa mudança poderá acabar com um dos veículos de comunicação históricos do país, além de deixar milhões de ouvintes desamparados, sem o direito de acompanhar as partidas, perdendo, portanto, o interesse na modalidade. Sendo assim, como efeito, se perderia também arrecadação para os clubes, tanto em termos de patrocínio, como em vendas de artigo, devido a diminuição do engajamento do torcedor.
Sem embargo, a exploração comercial dos direitos de retransmissão pela rádio não chega a ser uma novidade e, normalmente, é praticada pelos principais países e competições do mundo. Nesse contexto, podemos destacar que o Estatuto da FIFA[4], no seu artigo 66 e 67, fixa que a entidade máxima do futebol, as federações nacionais e as confederações serão as proprietárias originais de todos os direitos de competições e outros atos emanados, cabendo a elas a autorizar a distribuição de imagens e sons, outros dados e eventos de jogos de futebol, guardada suas jurisdições.
Igualmente, a UEFA também determina em seu Estatuto[5] a competência nesse sentido, detidamente nos artigos 47 e 48. A entidade europeia explora todos os direitos que detém ou pode partilhar com terceiros, como direitos de propriedade de qualquer tipo, propriedade intelectual e direitos para transmissões audiovisuais e sonoras por imagem ou suporte de dados de qualquer tipo (incluindo todos os meios transmissão de imagens de computador, com ou sem som, como Internet, serviços on-line ou similares, já existentes ou não).
Ato contínuo, isso inclui a produção, duplicação, disseminação e difusão de imagens, som ou suportes de dados de qualquer tipo pela UEFA ou por terceiros autorizados. Para tanto, a entidade, sozinha ou com terceiros, terá direito de constituir ou operar empresas, para as quais pode fazer uso de quaisquer entidades legais autorizadas pela Legislação Suíça. Por fim, a UEFA e as federações membros terão a exclusividade direitos de transmissão e uso, bem como autorização para transmissão e uso, por imagem, som ou outros suportes de dados, de qualquer tipo.
Trazendo para a realidade fática dos eventos internacionais, a Copa do Mundo do Catar já foi vendida pela Globo (detentora dos direitos para o Brasil) para sete emissoras de rádio.[6] Da mesma forma, nos últimos Jogos Olímpicos, sediado por Tóquio, os direitos de transmissão de rádio também foram adquiridos pela Globo.
Sobre as Ligas domésticas nos principais países europeus, podemos extrair que a grande maioria explora a transmissão de rádios, evidentemente em valores muito inferiores àqueles cobrados das redes de televisão. Podemos citar diferentes tipos de implementação, na Holanda, Inglaterra e Alemanha deu-se através da ausência do Estado e de legislação, através de regulamentos privados. Por outro lado, Espanha e Itália tiveram influência de normativas estatais. Ressalte-se que, em alguns países há uma negociação coletiva e centralizada na figura da Liga, como também exclusividade para os meios de comunicação locais.
A propósito, a Espanha sofreu um dos processos mais complicados para a exploração comercial da atividade da rádio em partidas de futebol, com várias reviravoltas e decisões judiciais. Em um certo momento, Laliga chegou, inclusive, a vetar o acesso, a circulação e participação dos profissionais de rádio. Outrossim, a Lei Geral de Comunicação Audiovisual (Lei 7/2010), precisamente no artigo 19, estabeleceu um pagamento de uma compensação pelos prestadores de serviços de rádio, que cobrisse somente os custos de manutenção para que pudessem ter livre acesso aos estádios e aos recintos para retransmitir, ao vivo, os eventos esportivos que neles ocorressem.
O montante da compensação financeira seria fixado por acordo das partes. Em caso de divergência sobre o referido valor, caberá à Comissão do Mercado[7] de Telecomunicações resolver o conflito por meio de resolução vinculante. O que acabou ocorrendo, se chegando a um valor módico de 85 euros por estádio, partida e operadora, elevada, em 2015, para 100 euros.
Na contramão do que acontecia na Espanha no ano de 2011, o Parlamento Europeu editou uma resolução[8] sobre a dimensão europeia do esporte, ressaltando seus aspectos socioeducativos e a sua imprescindibilidade para a sociedade e desenvolvimento do cidadão, que definia, em seus parágrafos 52 a 54 os seguintes pontos:
52) considerou-se que os eventos desportivos de grande importância para a sociedade devem ser acessíveis ao público da forma mais ampla possível; instou os Estados-Membros que ainda não o fizeram a tomarem medidas para garantir que os operadores de radiodifusão e televisivos, sob a sua jurisdição, não transmitam esses eventos com base em critérios de exclusividade
53) Reconhece o direito dos jornalistas de acessar e informar sobre eventos desportivos organizados de interesse público, a fim de salvaguardar o direito do público de obter e receber notícias e informações independentes sobre os acontecimentos desportivos
54) Requereu a Comissão e os Estados-Membros a protegerem os direitos de propriedade intelectual sobre os conteúdos desportivos, respeitando, sempre, o direito do público a ser informado
Retornando-se ao território ibérico, irresignada com a quantia de compensatória, Laliga recorreu ao Supremo Tribunal querendo aumentar esse valor e questionando a constitucionalidade do artigo de lei mencionado diante dos princípios constitucionais de liberdade de empresa e do direito à propriedade. A questão foi remetida ao Tribunal Constitucional no final de 2018. Afinal, qual princípio é mais importante: o direito à informação ou à propriedade? A transmissão de uma partida inteira seria informação ou entretenimento?
De uma parte, o direito à informação foi defendido pelas rádios e corroborado pela espécie do Ministério Público na Espanha, posto que o esporte tem uma clara dimensão social e coletiva, ao mesmo tempo que contribui para o desenvolvimento de valores humanos e culturais próprios da sociedade. Dessa forma, os prestadores de serviços de comunicação têm função primordial nisso e, sobretudo, para o acesso à informação necessário aos cidadãos.
Ademais, o alegado direito de propriedade sobre a transmissão da rádio dos jogos de futebol não era um direito consolidado, uma vez que, na Espanha, nunca havia sido explorado ou vendido por LaLiga e pelos clubes de futebol filiados. Some-se a isso, o fato de, ao contrário do direito à informação, os direitos de propriedade e a liberdade de empresa não serem direitos fundamentais.
Por outro lado, Laliga sustentava que a não exploração da rádio era contrária ao direito de propriedade e eventualmente à liberdade de negócios, em seu aspecto referente à liberdade de contratação, porque, ao permitir o livre acesso das operadoras de rádio aos estádios para transmitir ao vivo os eventos esportivos, limitava-se a compensação econômica que poderia ser recebida pelos titulares dos direitos de transmissão, ou seja, os próprios clubes.
Em outras palavras, a disposição legal que permitia às rádios o acesso aos estádios para a transmissão do evento ao vivo, de forma gratuita e integral, privava os organizadores, titulares dos direitos de exploração, de uma parte essencial, que era a sua utilização econômica. Por seu turno, as empresas de rádio percebiam receitas com publicidade, captando um maior número de ouvintes, baseados na retransmissão das referidas partidas de futebol.
A questão ainda não foi dirimida pelo Tribunal Constitucional e está longe de ser simples, posto que é difícil definir o que se configuraria informação: é um jogo inteiro, é uma entrada de 3 minutos ou comentários acerca da partida? Uma partida integral de futebol é uma informação necessária ou um entretenimento? Qual o motivo de críticas se em países vizinhos e em competições internacionais já se adota esse sistema?
Contestar as perguntas parece ser um exercício profundo de análise de princípios de direito. Entretanto, não devemos replicar tudo o que ocorre na Europa, pois possuímos nossa própria cultura e nossa própria história. Além da falta de participação de um órgão que pudesse representar os veículos de rádio quando da elaboração do projeto de lei, a exploração econômica das transmissões de rádio traria muito mais malefícios que benefícios.
Nesse contexto, é impositivo expor que a rádio em um país com dimensões continentais como o nosso consegue abraçar o total de população, inclusive os excluídos pela tecnologia da televisão, seja por falta de energia elétrica ou por sinal de televisão, inclusive ausência de acesso à TV a cabo, que, como é notório, ainda faz parte da nossa sociedade, onde quase 11% da população vive na linha de pobreza extrema, com menos de 200 reais ao mês.[9]
Além disso, explorar comercialmente as transmissões das rádios poderia inviabilizar sua atividade, quebrar o sistema, deixando milhares de desempregados e, ao mesmo tempo, não traria benefícios significativos aos clubes. Outro ponto importante é que, se adotado esse regime, se desprezaria a história construída por esse veículo tão importante da nossa comunicação e crescimento da modalidade, deixando milhões de pessoas sem poder acompanhar o próprio clube e, portanto, sem consumir a marca, de alguma forma. Se perderia o principal ativo de qualquer clube: o torcedor.
Conforme o exposto, a realidade mundial nem sempre pode e deve ser aplicada por nós. A discussão sobre os artigos aqui expostos deveria ser mais ampla e abarcar os órgãos de imprensa, principalmente os de rádio. Chegar a um denominador em comum seria fundamental para evitar discussões jurídicas, logo judicializações que prejudiquem e vulnerem o direito à informação dos consumidores do espetáculo e torcedores dos times, como acabou ocorrendo na Espanha. Aguardaremos, ansiosamente, os próximos desdobramentos.
Crédito imagem: Tiago Caldas/Náutico
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[1] Lei Pelé – L9615 – Consolidada (planalto.gov.br) – última consulta: 13.07.2022
[2] Projeto da Nova Lei Geral do Esporte – prop_mostrarintegra (camara.leg.br) – última consulta: 13.07.2022
[3] ‘Pouco inteligente, inadequada e inoportuna’, diz advogado sobre a Nova Lei Geral do Esporte | Jovem Pan– última consulta: 13.07.2022
[4] Estatuto FIFA – FIFA_Statutes_2022-ES.pdf – última consulta: 13.07.2022
[5] Estatuto UEFA – 20210420_Regulations_UEFA_Statutes_ 2021_en.pdf • Visualizador • Documents UEFA – última consulta: 13.07.2022
[6] Globo vende a sete rádios os direitos de transmissão da Copa do Qatar – 20/06/2022 – UOL Esporte – última consulta: 13.07.2022
[7] El acceso de las radios a los partidos de fútbol | ctxt.es – última consulta: 13.07.2022
[8]Resolução do Parlamento Europeu – EUR-Lex – 52012IP0025 – EN – EUR-Lex (europa.eu) – última consulta: 13.07.2022
[9] No segundo ano de pandemia, mais 7,2 milhões de pessoas são ‘engolidas’ pela pobreza no Brasil – InfoMoney – última consulta: 13.07.2022