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Caos no Chile parou com o futebol e mandou disputa para os tribunais

O Chile convulsionou.

No dia 18 de outubro, um movimento contra o aumento de passagem no transporte público acordou a população para um problema muito maior. A desigualdade social parou o país.

Como na América Latina, o crescimento econômico no Chile também deu uma forte desacelerada. A estagnação freou a esperança de um salto social, e vendo que a distância entre ricos e pobres se tornava insuperável, a classe média se revoltou contra essa realidade.

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O país entrou em guerra. Nem a agenda social proposta pelo governo conservador de Sebastian Piñera esfriou os protestos.

A crise atingiu o esporte chileno. Jogadores e torcedores também passaram a protestar. A bola não poderia continuara rolar. O campeonato parou.

Em votação, clubes decidiram acabar o campeonato há 3 rodadas do fim. Uma decisão inédita na história do futebol chileno. A  Universidad Católica foi declarada campeã (líder isolada e merecida), mas sem rebaixamentos e acessos. Um problema: as divisões inferiores foram ignoradas. E isso já está gerando uma disputa jurídica.

Entenda com Cauan Biscaia, jornalista brasileiro que vive no Chile.

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SEM JUSTIÇA NÃO HÁ PAZ: FUTEBOL CHILENO TERMINA UM ANO CAÓTICO COM POLÊMICAS E REVIRAVOLTAS

Quarenta e sete dias se passaram desde o apocalíptico 18 de outubro, data que marcou o início de um movimento social histórico no Chile. Depois da tempestade de conflitos, que ainda conserva rajadas no convívio rotineiro até hoje, a propagação das demandas por justiça, igualdade e dignidade expandiu as vozes dos protestos para chegar até o futebol. Já nos primeiros dias da convulsão social fomos testemunhas de um feito inimaginável para qualquer terceiro-mundista, fanático por futebol, e utópico da paz nos estádios: arquirrivais tremulando suas cores no mesmo canto, na mesma festa, sintonizados no mesmo clamor popular. Ver os barras bravas do Colo-Colo e Universidad de Chile juntos com a massa de manifestantes na Plaza de la Dignidad (ex-Plaza Baquedano) foi histórico também, emblemático para reforçar o cenário de unidade que tomou conta do país. Como um vírus avassalador, os chilenos se contagiaram e promoveram um carnaval de quase 2 milhões de pessoas só em Santiago, aderindo vários atores encorparam a resistência às injustiças: jogadores, torcedores e o bom senso.

Depois de suspender por 1 mês a (eterna) décima-segunda rodada da Primeira Divisão, e do futebol profissional em geral, a Associação Nacional de Futebol Profissional (ANFP) ignorou os riscos, acreditou numa volta à paz instável e duvidosa, e decidiu, no dia 22 de novembro, retomar as atividades com dois jogos em uma sexta-feira à tarde. O problema é que muitos jogadores já haviam manifestado o seu apoio às demandas populares, e decretaram, respaldados parcialmente pelo Sindicato de Futebolistas Profissionais (SIFUP), uma greve simbólica que alimentou a teoria de um encerramento antecipado de todos os campeonatos, algo jamais ocorrido no Chile desde o seu primeiro torneio em 1933. As organizadas também ameaçaram retaliação, uma mais pesada e ameaçadora no caso de bola rolando em plena convulsão social. Jogavam nesse dia, sem público, Deportes Iquique e Unión La Calera, com o Iquique na zona de rebaixamento um ponto atrás da Universidad de Chile. Esta que para muitos, autêntica merecedora de uma série B. Ironicamente, e quiçá sem nenhuma intenção de camaradagem com os seus rivais, a Garra Blanca, organizada do Colo-Colo, invadiu o estádio Bicentenario de La Florida, trocou farpas com Carabineros, e pisou no gramado para dizer “pó pará!”. Durou apenas 1 hora e 22 minutos a volta à normalidade no futebol chileno, jogadores se recusaram a continuar, e pela quinta vez a ANFP induziu o coma nos seus torneios. O futebol chileno já não tinha mais sentido de vida pra 2019.

Os dirigentes tiveram que agir rápido, o calendário se apertava e ainda tinha a Copa Chile por terminar no meio do caminho. Todo um trabalho de 10 meses exigia campeões, ascendidos e rebaixados, classificados para torneio internacionais e cotas de transmissão por distribuir. O regulamento da ANFP, em conjunto com a Federação Do Futebol Chileno, deixa claro no seu capítulo II que qualquer decisão não contemplada na carta-magna futebolística deve ser votada em um Conselho Extraordinário de Presidentes, e foi isso que aconteceu uma semana depois dos distúrbios no Estádio Bicentenário. Com 42 votos contra 5, mais uma abstenção (votos de times da primeira divisão valem por dois), os mandatários dos clubes determinaram o precoce final da temporada, e em uma resolução insólita, decretaram o fim do campeonato com a Universidad Católica campeã (líder isolada e merecida), mas sem rebaixamentos e acessos. Em outras palavras: ignoraram a existência de uma série B e C para simplesmente fingir que nada aconteceu do décimo-sexto lugar para baixo.

“Mais que pressão política, foi uma pressão causada pela convulsão social que influenciou na decisão de terminar o campeonato antecipadamente. Os jogadores e torcedores já manifestavam sua postura de não dar seguimento ao torneio, e era algo previsível. O maior absurdo que fizeram (ANFP e presidentes que votaram pela suspensão do campeonato) foi decretar a Universidad Catolica campeã e não Santiago Wanderers e San Marcos, que eram líderes nas suas divisões. Sabíamos que era algo complicado falar de rebaixamentos porque ainda tinham pontos por serem disputados, e os times envolvidos queriam jogar a sua sorte. Porém, esta decisão de terminar sem acesso e descenso acabou beneficiando a Universidad de Chile e a Universidad de Concepción, times que fizeram uma péssima campanha em 2019 e mereciam ser rebaixados” , conta a jornalista Viviana Toro, da Rádio ADN.

Justamente o Santiago Wanderers, time da pitoresca e socialmente engajada cidade de Valparaiso, claramente prejudicado pela decisão, foi quem alçou o punho mais alto na demanda por justiça esportiva. Vendo o seu ano desperdiçado com um título e acesso não reconhecidos, mesmo depois que a ANFP descaradamente publicou na sua rede social uma foto parabenizando o bicampeonato da Catolica, os dirigentes porteños afirmaram o compromisso de lutar até a última instância para colocar o Wanderito na Primeira Divisão. Um grupo de torcedores se adiantou e apresentou um recurso de proteção na Corte de Apelações para anular o sufrágio do Conselho de Presidentes, e logo depois o presidente do clube, Rafael Gonzalez, declarou que “infelizmente, não houve conosco a mesma justiça que tiveram com a Primeira Divisão, portanto, vamos analisar todas os antecedentes sem descartar nenhuma possibilidade”. Mario Oyes, presidente da Corporação Santiago Wanderers (no Chile rege o sistema de Sociedades Anônimas para os clubes de futebol), foi enfático ao dizer que “vamos recorrer ao TAS (Tribunal Arbitral do Esporte) e até a justiça comum se necessário. Os jogadores e a torcida do Santiago Wanderers vem primeiro lugar”

“Os dirigente do Santiago Wanderers já tomaram a decisão de apelar ao TAS, caso não revoguem a votação do Conselho de Presidentes. Além disso, um grupo de torcedores abriu um processo na para interpor um recurso de proteção na Corte de Apelações e uma ordem para invalidar a votação na ANFP, e isso é algo que a FIFA não gosta (misturar esporte com justiça comum). Por esse motivo que a ANFP chamou os clubes para uma reunião extraordinária de presidentes, e com certeza irão buscar uma solução para a situação de Santiago Wanderers e San Marcos, para assim acatar a justiça esportiva que estão pedindo”, explicou Viviana Toro, natural de Valparaiso.

Foi então que os atores dessa rebelião, jogadores e torcedores, se reuniram e protagonizaram uma manifestação digna de celebração de campeonato mundial. Milhares de wanderinos coloriram Valparaiso em verde, e entre eles estava também o elenco do clube, ídolos como Enzo Gutiérrez, Juan Carlos Soto, Kevin Valenzuela, levaram suas famílias e marcharam com seus torcedores pedindo por justiça. A torcida organizada do Wanderers, Los Panzers, foi além na sua lealdade e prometeu uma peregrinação até Santiago para pressionar os portões da ANFP. São 116km, distância suficiente para amedrontar os políticos do futebol e forçar uma revogação da votação. Pediam campeonato com 18 times, Wanderers e La Serena (segundo colocado da B) na elite, San marcos de Arica na segunda divisão, único detentor da vaga solitária que entrega a Associação para o acesso à Primera B. “Sem justiça não há paz”, gritam em uníssono os torcedores de todos os times. Já não tem mais jeito, a cartolagem terá que ceder.

Tudo indica que até o final dessa semana os mandatários oficializam a suspensão da votação do dia 29, e consolidam um campeonato com 18 clubes para 2020. Inclusive, já é certo que isso aconteça, e o presidente da ANFP, Sebastián Moreno, já adiantou que a decisão oficial será um mero protocolo para confirmar o que todos já sabem, com algumas modificações. Wanderers sobe automaticamente por ser o campeão, e a décima-oitava vaga será decidida em uma liguilla ainda sem conformação, mas provavelmente reunindo 4 equipes, algo que passe longe de ameaçar a 14ª colocada, Universidad de Chile. Com tantas arestas sociais por ajustar no meio de tantas demandas, o futebol refletiu exatamente o que acontece atualmente no Chile: gente insatisfeita se organiza, reclama, e o poder cede, aos pouco e a contra-gosto, com falhas e absurdos, mas cede.

Resolvido o assunto dos campeões, ascendidos e descendidos, a próxima missão é definir os representantes do Chile na Libertadores 2020. Universidad Catolica e Colo-Colo já possuem o Chile 1 e Chile, o Palestino vem logo atrás como Chile 3, e a Chile 4 ainda vai dar pano pra manga. Essa vaga pertence ao campeão da Copa Chile, mas como esse caminho curto pra Libertadores também encerrou antecipadamente, no meio de uma semifinal, mais times se animam nesse clima demandas. Unión Española, Universidad de Chile e Unión la Calera são os envolvidos, e a ANFP não cogita entregar vagas por “secretaria”, somente dentro de campo, possivelmente a princípios de janeiro do ano que vem.

Saem às ruas estudantes, professores, profissionais da saúde, caminhoneiros , taxistas, feministas e artistas, a sociedade chilena comum em geral, que descobriu no lema “do povo unido jamais será vencido” uma razão para lutar contra 30 anos de descontentamento. Transformações que refletem resultados de esperança por um país renovado, na sua geração, nos seus costumes e na extinção do seu conformismo sequelado pela ditadura. Quando tem eco, tem sismo. Tremem os de cima da pirâmide, encurralados por tanta aliança feita nesses 47 dias. É o futebol mais uma vez ilustrando o comportamento da humanidade em toda a sua anatomia social.

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