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Capoeira: prática desportiva sob o som do berimbau

A maioria dos assuntos relacionados ao Direito Desportivo diz respeito ao futebol. Tal predominância se justifica em razão do inegável protagonismo desta modalidade, principalmente em território brasileiro.

Porém, não é justo que o futebol detenha esta exclusividade razão pela qual, no intuito de provocar uma análise jus-desportiva em outras modalidades e práticas desportivas, a coluna Sem Olé na Lei desta semana abre espaço para a capoeira este fenômeno cultural que é tipicamente brasileiro.

A capoeira é o único desporto que tem reconhecimento e supedâneo explícito em lei ordinária (Lei n. 12.288/2010), dentre mais de uma centena de modalidades desportivas praticadas no Brasil.

No ano de 1985, João Lyra Filho[1] apontava que no Brasil a preponderância do futebol era notória e concedia breves pausas apenas para os fandangos carnavalescos, pois os atrativos da cultura intelectual ainda não despertavam a preferência de nosso povo. Enquanto isso, atletas que remavam nas regatas de Oxford e Cambridge eram capazes de traduzir Homero, Tácito ou Plauto. Por essa razão, fazia cada vez mais sentido ao professor brasileiro o ditado nascido na França: “dis moi quel est ton loisir, je te dirai quelle est ta culture”.[2]

As dimensões continentais do Brasil proporcionam uma espetacular diversidade cultural que são peculiares em cada região do país. É bem verdade que o futebol continua a exercer uma predominância, mas, sem embargo, não se pode perder de vista a influência cultural em práticas desportivas como, por exemplo, os jogos dos povos indígenas, a capoeira e a vaquejada.

Em boa hora a capoeira foi reconhecida como desporto no Brasil, não sem antes ter sido marginalizada e até mesmo proibida. Trata-se de uma manifestação cultural de origem africana, mas com características tipicamente brasileiras.

João Lyra Filho define a capoeira como uma forma altamente complexa de combate, cuja sua origem foi desenvolvida pelos escravos fugitivos, que precisavam desenvolver alguma vantagem para enfrentar os capitães do mato que andavam armados. Uma luta sem contato físico contínuo, em que rasteiras e golpes de cotovelo inesperados, giros rápidos e rodopios súbitos confundem o adversário.[3]

Em célebre parecer dirigido ao Ministério do Esporte o jurista Álvaro Melo Filho define a capoeira[4] como uma expressão brasileira:

com plúrimas formas, fazendo uma simbiose entre desporto, defesa pessoal, cultura popular e música, tanto que, para Dias Gomes o capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta. Em sede desportiva, a capoeira caracteriza-se como modalidade que utiliza golpes, movimentos ágeis, chutes, rasteiras, cabeçadas e acrobacias em solo ou aéreas, como ocorre em todas as artes marciais.

No século XIX a prática era reprimida por policiais e magistrados, sob o argumento de se tratar de uma prática bárbara e perigosa.[5] Felizmente, os tempos persecutórios ficaram em um passado distante e no ano de 2007, a capoeira foi aclamada à condição de patrimônio imaterial brasileiro, com a chancela do Ministério da Cultura e atualmente está presente em mais de 150 países, conforme relata o Doutor em História Social, Maurício Barros de Castro.[6]

Em sua obra clássica “Introdução ao Direito Desportivo” o professor João Lyra Filho associou a capoeira ao futebol como forma de demonstrar um estado de cultura cuja sobrevivência se prolonga, de forma diluída, inclusive nos sintomas de vida “psicosocial dos pretos e mulatos”. Neste sentido, concluía o magistral professor que por meio de seus fundamentos e práticas, o desporto colocava ao vivo revelações de cultura que interessam à fixação do retrato do Brasil.[7]

O processo evolutivo de uma prática cultural em modalidade desportiva é complexo e é alvo de inúmeros preconceitos. Atualmente não se pairam mais dúvidas acerca da definição da capoeira. Entretanto, um longo caminho precisou ser percorrido, conforme ensina o professor Álvaro Melo Filho[8].

Em 1941, o Decreto 3.199, da era Vargas, estabeleceu as bases da organização dos desportos no Brasil, com a intenção de controle das atividades desportivas no país, com lastro na ideologia da identidade nacional. No art. 15 deste diploma a Confederação Brasileira de Pugilismo, entidade eclética fundada em 1933, foi considerada constituída, tendo a ela vinculado-se o Departamento Nacional de Luta Brasileira (Capoeiragem), por força de sua “natureza especial” e do ainda “número incipiente de associações” como assinalado no art. 10 do referido texto legal do Estado Novo. De acordo com Álvaro Melo Filho, este foi, de fato e de direito, o primeiro reconhecimento desportivo oficial da modalidade, onde a menção a Luta Brasileira evidencia ser este um desporto de criação nacional ou manifestação de uma expressão nacional.

No ano de 1953, o Conselho Nacional de Desportos expede a Deliberação n.º 71, de 14 de agosto de 1953, que, no seu art. 1º, outorga à Confederação Brasileira de Pugilismo competência para superintender a prática em todo o território nacional, de algumas modalidades como pugilismo, “vale-tudo”, luta livre e greco-romana, judô e a capoeira. Seria este, portanto, o segundo reconhecimento desportivo oficial obtido, sendo ressaltado pelo ilustre professor Álvaro Melo que, pela vez primeira, a modalidade capoeira é explicitamente referida como modalidade integrada no contexto da organização interna da Confederação Brasileira de Pugilismo. É relevante destacar que tal decisão ocorreu após uma exibição de capoeira no Palácio do Governo, quando o então Presidente Getúlio Vargas asseverou que “A Capoeira é o único esporte verdadeiramente nacional”.

O terceiro reconhecimento oficial da capoeira como uma modalidade desportiva, ocorreria no ano de 1972, exsurgida de ato do Conselho Nacional de Desportos, ao ratificar a fundação das Federações Estaduais de Capoeira, sob a jurisdição do Departamento Nacional de Capoeira da Confederação Brasileira de Pugilismo.

Já o quarto reconhecimento da Capoeira decorre da vinculação da Confederação Brasileira de Capoeira Desportiva (CBCD) ao Comitê Olímpico Brasileiro no ano de 1995, que a coloca como única entidade apta a dirigir, administrar e promover o desenvolvimento técnico da modalidade.

Em 2004, o quinto reconhecimento assenta-se no Ofício GM n. 408/2004, do Ministério do Esporte, autorizando a CBCD a utilizar a chancela do Ministério em todas as suas atividades institucionais, assim como para captação de recursos financeiros para empresas patrocinadoras. Neste documento, o então Ministro de Esporte, ressalta “o trabalho realizado em prol do desenvolvimento da capoeira, e em particular por se distinguir no âmbito internacional do desporto de identidade cultural e de criação nacional”.

Por fim, o sexto reconhecimento é de ordem legal e está estampado no caput do art. 22, da Lei n. 12.288, de 2010, quando explicita que “a capoeira é reconhecida como desporto de criação nacional, nos termos do art. 217 da Constituição Federal”.

Desta forma, não há dúvidas de que a capoeira está apta para usufruir de toda a chancela desportiva, com a incidência dos ditames enumerados no art. 217 da Constituição Federal e da Lei Geral do Desporto (Lei n.º 9.615/1998), sendo que todos aqueles que se entretém com a prática, definidos pela lei como torcedores, podem ser protegidos pelo Estatuto do Torcedor (Lei n.º 10.671/2003), fazendo surgir a possibilidade de um Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Capoeira e TJD´s, sem perder de vista a possibilidade de inclusão dessa prática na Lei de Incentivo ao Esporte (Lei n.º 11.438/2006) e a concessão de bolsa atleta pelo Ministério do Esporte, nos termos da Lei n.º 10.891/2004.

……….

[1] LYRA FILHO, João. Introdução à Psicologia dos Desportos. Ed. Record – 1983. p. 45.

[2] Em tradução livre: “me diga qual é o seu hobby, e eu te direi qual é a sua cultura”.

[3] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952 – p. 55.

[4] O art. 22, da Lei n. 12.288/2010, é contundente ao afirmar que “a capoeira é reconhecida como desporto de criação nacional, nos termos do art. 217 da Constituição Federal.” De acordo com Álvaro Melo Filho, deve ser destacado que a Capoeira é o único desporto que tem reconhecimento e supedâneo explícito em ditame legal, dentre mais de uma centena de modalidades desportivas praticadas no Brasil. Outrossim, importante repontar, nesse passo, que enquanto na grande maioria das modalidades desportivas o praticante domina um objeto (bola, bicicleta, barco, raquete, etc), nos «desportos de combate», entre os quais se insere a Capoeira, dominar o adversário é o fim último – o objeto é neste caso um ser que age e reage, um ser que pensa e que sente. Nos “desportos de combate” não há um elemento dinâmico (ser humano) e um elemento físico (objeto), pois existem dois elementos dinâmicos, autônomos, criativos, dispondo de uma motricidade intencional, que se opõem e confrontam até se designar um superior ao outro segundo certos parâmetros. O fato de ambos procurarem a vitória, de um procurar submeter o outro confinado pelos critérios pré-determinados, o fato de um procurar dominar o outro segundo certas regras, o fato de um ter de se superiorizar ao outro para ser declarado vencedor encontra, de fato, a sua origem no universo guerreiro.

[5] ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destrezadomestiço” à “ginásticanacional”: Narrativas Nacionalistas sobre a Capoeira. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense. p. 21.

[6] CASTRO, Maurício Barros. A Memória do Corpo na Narrativa de Mestre João Grande. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense. p. 43.

[7] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952 – p. 55.

[8] Parecer encaminhado pelo Professor Álvaro Melo Filho em setembro de 2013 ao Presidente da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Ministério do Esporte, visando a instruir ulterior decisão do colegiado do Conselho Nacional do Esporte (CNE) sobre a plausibilidade da declaração de reconhecimento da Capoeira como modalidade desportiva de criação nacional.

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