Pesquisar
Close this search box.

Cartão vermelho para o racismo

Antes que termine o mês, este espaço no Lei em Campo abordará uma importante alteração legislativa com a vigência da Lei nº 14.532/23, sancionada em 11/01/2023 pelo atual presidente, na mesma ocasião em que foram empossadas as ministras da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas (Anielle Franco e Sônia Guajajara, respectivamente).

Citada lei altera a Lei do Crime Racial (Lei nº 7.716/89), e o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40), passando a tipificar como crime de racismo a injúria racial, além de determinar pena restritiva de direitos, cuja repercussão alcança diretamente o âmbito esportivo.

Antes de adentrar nas alterações, importante resumir como se ordenavam os crimes em questão.

A injúria racial refere-se a ofensa a um indivíduo em razão da raça, cor, etnia ou origem, enquanto o racismo corresponde à restrição de direitos a uma pessoa em razão de sua cor, etnia, origem, entendendo, até então que essa forma de discriminação atinge toda uma coletividade.

Além disso, até a vigência da lei em referência, a injúria racial, prevista no art. 140, §3º do Código Penal, dependia de representação do ofendido para que o autor do crime pudesse ser acusado pelo Estado, por meio do Ministério Público. Caso não houvesse tal representação da vítima, incorreria a decadência do crime, sendo essa a perda do direito de agir do Estado.

Por outro lado, o racismo, tipificado em lei própria (Lei nº 7.716/89), compreende crime contra a dignidade da pessoa humana, não tendo uma objetividade jurídica diretamente ligada ao indivíduo, e por isso, além de ser crime de ação pública incondicionada (ou seja, não há qualquer condição para que o Ministério Público ofereça denúncia, sendo este legítimo no seu direito de oferecer denúncia capaz de ensejar respectiva ação penal em face ao acusado), é enquadrado pelos imperativos constitucionais como crime imprescritível e inafiançável.

Em um breve contexto histórico sobre os mencionados tipos penais, o ordenamento jurídico brasileiro, em busca da democracia racial no país das miscigenações, e em linha com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tal como como “a promoção do bem de todos, sem preconceitos quanto a origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso IV, CF), bem como coadunando com o repúdio a atos de terrorismo e de racismo, imputou toda e qualquer conduta racista como inafiançável e imprescritível, por meio do mandamento constitucional disposto no art. 4º, inciso VIII, CF. Na mesma linha de austeridade como se tratam os crimes dolosos contra a vida, hediondos, de tortura, tráfico de entorpecentes, terrorismo.

Parte desse cenário, menciona-se a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o qual norteou os preceitos constitucionais citados acima.

Em 1989, aprovou-se a Lei 7.716/89 (supramencionada Lei do Crime Racial), que passou a tipificar os crimes de preconceito quanto à raça ou cor. Posteriormente, entrou em vigor a Lei nº 9.459/97, a qual alterou o art. 140, §3º do Código Penal, passando a prever o crime de injúria racial.

Em 2010, a Lei nº 12.288 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, com o objetivo de estabelecer políticas públicas para eliminação de desigualdades econômicas e sociais causadas em razão da raça.

Na sequência desses ideais, em 2014, promulgou-se a Lei nº 12.990, a qual passou a incluir ações afirmativas ao ensino superior e ao serviço público, como fruto da democracia, inferindo e impondo a necessária implementação de atuação do governo no combate ao racismo, violências raciais, verbais ou físicas.

A esse respeito, e reconhecendo o “descompasso entre o ideal civilizatório que emana das normas vigentes e as mazelas da realidade social que persistem na atualidade”, Luís Roberto Barroso, na qualidade de ministro do STF, proferiu voto (que passou a ser entendimento unanime), no sentido de que “o racismo está entranhando na sociedade brasileira, sendo herança das feridas abertas pela escravidão, nunca cicatrizadas”.

Nessa linha, em 28/10/2021, o STF passou a equiparar a injúria racial ao crime de racismo, como efetivação plena do combate ao racismo” entendendo

esta primeira ser espécie do gênero do racismo, sendo, portanto, imprescritível, tal como prescreve o art. 5º, inciso XLII, CF.

O entendimento majoritário pautou-se no reconhecimento de que não se pode permitir a “extinção da punibilidade a acusados por injúria racial”, uma vez que o “art. 5º, inciso XLII, CF estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos temos da lei”.

Em fundamento ao voto, a ministra Cármen Lúcia defendeu que “no caso de injúria racial, a vítima não é apenas a pessoa ofendida, mas toda a humanidade”, na mesma linha que o ministro Lewandowki, e Luiz Fux, os quais defenderam, respectivamente que “o racismo não se limita às condutas previstas pela Lei nº 7.716/89”, e que “a jurisprudência sobre o tema vem se desenvolvendo no sentido de conferir proteção ampla às vítimas de racismo”.

À ocasião, apenas o ministro Nunes Marques abriu divergência em face à linha de conclusão relatada pelos votos vencidos. O entendimento do voto vencido inferiu que somente o Poder Legislativo poderia estabelecer a imprescritibilidade ao crime, fundamentando a diferença crimes, sendo a objetividade jurídica da injúria racial (art. 140, §3º, CP), a honra subjetiva, e do racismo (Lei nº 7.716/89), o bem jurídico tutelado é a dignidade da pessoa humana.

Uniformemente, o Supremo Tribunal de Justiça se posicionou no mesmo sentido, através do voto proferido pelo Desembargador relator da Sexta Turma Dr. Ericson Maranho, no Agravo Regimental do Agravo em Recurso Especial (Processo nº 686.965/DF).

A partir dessa concepção, o projeto de lei voltado à política de proteção social de direitos humanos e minorias (PL 4.566/2021 – Senado e PL 1749/15 Câmara dos Deputados) foi aprovado em maio de 2022, e ratificado pela Câmara em dezembro.

A partir dos projetos de lei citados, e convergindo com o posicionamento do STF e do STJ, a Lei Ordinária em pauta (Lei nº 14.532/23) passa a inserir a injúria racial na Lei de Crime Racial (Lei 7.716/1989), e, entre outras mudanças, tipifica o crime de injúria racial coletiva.

Com a vigência da Lei 14.532/23, o Código Penal e a Lei de Racismo passam a serem alteradas. O §3º, do art. 140 do Código Penal passa a integrar a Lei de Racismo (“se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a

raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”), mantendo tão somente a redação no Código Penal, art. 140, §3º de injúria referente à religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência.

Com isso, incluiu-se o art. 2º-A na Lei de Racismo, a qual dispõe que “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”, sofrerá pena de 2 a 5 aos e multa.

O termo “procedência nacional” passou a substituir “origem”, de forma a ampliar o alcance de proteção, levando em consideração preconceitos pela região, por exemplo.

Em termos práticos, a injúria racial passa a ser tratada juridicamente como o racismo, que compreende ação penal pública incondicionada, cuja legitimidade para ajuizar ação penal compete exclusivamente ao Ministério Público, e como já mencionado, é imprescritível e inafiançável.

Com a Lei nº 14.532/23 a injúria racial passa a ser de ação pública incondicionada, de forma a submeter-se ao regime jurídico legalmente imposto, como a inafiançabilidade e imprescritibilidade. A injúria racial, passa então, a ser entendida como a intenção de ofender em razão da raça, cor, etnia ou procedência nacional (“animus injuriandi”). Ao passo que, o racismo (art. 20 da Lei nº 7.716/89) tipifica-se pela intenção de segregar, tratar de forma desigual, diminuir, impedir ou restringir direitos em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.

Referida mudança legislativa traz repercussões no esporte, impactando os infratores que incorrem nessa prática, sendo o principal impacto a severidade no tratamento dos crimes dessa natureza, notadamente pela inclusão da pena restritiva de direitos.

Para tanto, o legislador passou a tipificar especificamente o cometimento dos crimes em ambiente esportivo, segundo a disposição do §2º-A do art. 20 da Lei nº 7.716/89), o qual estabelece que “se qualquer dos crimes previstos nesse artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, pena de 2 a 5 anos, e proibição de frequência, por 3 anos a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público”.

O fim do citado texto legal menciona “conforme o caso”, o que levanta uma dúvida acerca de quais locais permite-se a restrição do acusado pela injúria

racial, se seria somente no local em específico em que o crime foi praticado (por exemplo, determinado estádio de futebol), ou se pela manifesta incontinência pública, estaria o acusado impedido de ingressar todo e qualquer ambiente de convívio coletivo.

Vale citar, ainda, a rigidez legislativa quanto à prática discriminatória, com a inclusão do art. 20-A, o qual prevê aumento da pena, de 1/3 até metade, “quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração diversão ou recreação”. Sobre isso, importante mencionar que o “animus jocandi” foi inserido como repúdio, através do instrumento legal adequado, pensado justamente para confrontar o racismo estrutural que permitiu e estabeleceu ao longo de décadas o humor e entretenimento alheio às custas de minorias ou etnias historicamente vulneráveis e prejudicadas.

Ademais, a pena do crime de injúria também poderá ser aumentada se a ofensa da dignidade ou decoro em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional for cometida por duas ou mais pessoas, além de prever também um tipo penal específico para o cometimento do crime por meio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.

A partir de agora, e a despeito de qualquer discussão acerca da forma de imposição desse entendimento, não apenas a determinação jurisprudencial já consolidada pelos tribunais superiores (STF e STJ), passa a ser formalizado e inconteste o instrumento legal que insere o crime de injúria racial como espécie do gênero do racismo, nos termos do artigo 5º, XLII, da Constituição Federal.

Além da repercussão jurídica aqui mencionada, as instituições desportivas ganham força para adotarem medidas mais rígidas no combate à discriminação, em todas as suas formas.

Ao longo dos anos, na contramão dos movimentos de luta contra a discriminação em razão de etnia, cor, origem etc., registra-se, ainda, inúmeros casos de acentuadas violências verbais no âmbito de competições esportivas, ofensas explícitas que insistem em ocorrer, e repetidamente são reportadas, denotando a fragilidade da legislação então vigentes.

Quando a ordem em uma sociedade não se estabelece espontaneamente, cabe ao Estado estabelecer medidas de forma a compelir o adequado comportamento, punindo com mais severidade condutas contrárias a isso.

Notadamente o racismo, fruto de uma enraizada questão que assola a sociedade, se ocorre com notórios atletas, em eventos de tamanha exposição midiática e em frente a grandes públicos, imagina-se, com isso, o que ainda ocorre com indivíduos sem o reconhecimento do público, que não estão respaldados pela importante influência que o esporte o insere, e que não contam com a proteção da pressão midiática e social.

Enrijecer a legislação em face aqueles que, por bem, não entenderam a importância de não se valer de questões raciais para sentirem-se superiores, seja pela violência verbal, física ou até em piadas despretensiosas, é o caminho e a reação proporcional para que, por outra via, busque efetividade no combate a essa prática odiosa.

Quanto à aludida “prática odiosa”, extrai-se do voto do Habeas Corpus nº 154.248 DF, do ministro relator Edson Fachin, a menção ao conceito dessa expressão, ao citar a escravidão e consequências até hoje existentes contra a população negra, citada no livro “Cidadania Racial” de Adilson Moreira, conforme merece ser transcrito:

“O respeito é um valor social que permite a construção de forma de sociabilidade que deve estruturar uma sociedade pluralista. A cidadania racial possui então uma dimensão moral relativa à possibilidade das pessoas se reconhecerem como indivíduos que possuem as mesmas condições de paridade de participação dentro de uma sociedade democrática.” (Cidadania Racial. Quaestio Iuris. vol.10, nº. 02, Rio de Janeiro, 2017. p. 1052-1089)

Depreende-se, dessa maneira, um importante e necessário avanço no enfrentamento antirracista no Brasil, alcançando e conferindo consequências jurídicas a qualquer um que ofenda, constranja, imponha medo ou exposição indevida a pessoas ou grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151397 https://www.conjur.com.br/dl/fachin-hc-injuria-racial-imprescritivel.pdf https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/864059971/inteiro-teor-864059981

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14532.htm

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.