Mais cedo nesta semana se noticiava que o ex-técnico do Cruzeiro Esporte Clube, Felipe Conceição, ingressou com um processo extrajudicial na Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), requerendo a descrição da real forma de cessação do seu contrato de trabalho com o referido ex-clube empregador.
O referenciado ex-clube empregador afirma que houve um comum acordo sobre o contrato de trabalho do ex-treinador, ainda no vestiário, após a derrota no último jogo em que este atuou, devendo-se registrar na rescisão federativa um distrato.
Por outro lado, o ex-técnica afirma que está sofrendo uma coação para simular a assinatura de uma extinção contratual por acordo das partes (distrato), mas que na verdade sofreu uma dispensa sem justa causa, e, portanto, requer à CNRD o reconhecimento do verdadeiro tipo de terminação do contrato, pois as consequências jurídicas são mais vantajosas ao ex-treinador, a despeito de uma demora no registro de sua rescisão federativa com o Cruzeiro poder impedi-lo de trabalhar por outro clube, como o Clube do Remo que o pretendo contratar.
Um pretenso distrato entre as partes provocaria, atualmente, dupla vantagem para a equipe mineira, que além de reduzir os custos com a quitação de verbas rescisórias sobre um distrato, não entraria na nova limitação federativa de inscrição de apenas dois técnicos no campeonato brasileiro da série B, já que o término de contrato por acordo dos contratantes não contabiliza para esta restrição (art. 29 do Regulamento Específico da Competição – Campeonato Brasileiro Série B – 2021).
Sobre o consentimento em distrato, manifestou-se no livro recém lançado em março deste ano de 2021 pela Editora Juspodivm, “Curso de Direito do Trabalho Desportivo” (em segunda tiragem), que reproduzir-se-á em uma sinopse a seguir.
A dissolução do contrato de trabalho por acordo das partes (distrato), seja nas relações desportivas, seja nas demais relações de trabalho, deve ser com o livre e idôneo consentimento do empregado desportivo, não podendo ser viciado por coação, dolo, fraude, erro ou ignorância, estado de perigo e lesão (arts. 138 a 165, do CC).
No campo trabalhista os vícios de consentimento demonstrados acima absorvem mais força diante dos princípios laborais da proteção, da indisponibilidade dos direitos e da norma mais favorável, conjugadamente à característica da alteridade, assunção dos riscos do empregador na relação empregatícia.
O limiar entre à anuência livre e a aquiescência viciada do empregado em um termo de distrato com o empregador se desenha bastante tênue. Geralmente, um trabalhador aspira a extinção do seu vínculo empregatício se tiver a oportunidade de um posto de trabalho melhor ou em virtude de aposentadoria.
Raramente, um empregado deixará o emprego por acreditar que possui um vasto mercado de trabalho a seu favor, o que poderia ser no caso de um hipersuficiente, ou seja, um pouco mais comum no contrato de trabalho desportivo.
A apreciação do livre consentimento de um treinador subordinado em um contrato de distrato deve ser sempre temperada, ponderada no caso concreto para se realizar a mais lapidada interpretação (casuística, tópica). Em decisão recente, o Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região sustenta essa posição acima.[1]
No contrato de trabalho desportivo ou de qualquer outra natureza, não pode haver distrato para camuflar, fraudar a verdadeira espécie de dissolução do contrato. Se há uma rescisão indireta ou dispensa imotivada, se revela vício de consentimento por coação, lesão e fraude compelir o treinador a celebrar o distrato com a finalidade de o empregador se eximir dos ônus das verbas rescisórias e também para se livrar da limitação do registro federativo de técnicos no mesmo campeonato brasileiro das séries A e B.
O vício na livre anuência ainda pode ocorrer apenas em relação a uma das cláusulas do termo de distrato, o que não o invalida por inteiro, mas apenas a cláusula maculada pela nulidade, se assim for possível sem prejudicar a continuidade contratual.[2]
Existir no contrato de trabalho desportivo a possibilidade de distrato para a sua terminação já caracteriza uma mitigação da assunção dos riscos pelo empregador desportivo, assim como ocorreu para qualquer relação empregatícia, após a Reforma Trabalhista.
Para ser válida a extinção do vínculo empregatício por acordo das partes, ela não pode existir para fraudar outra espécie de dissolução contratual (despedida indireta ou dispensa sem justa causa), o livre consentimento do treinador empregado (ou subordinado) também não pode estar viciado seja para o ato de distrato ou relacionado a uma cláusula específica, sob pena de violação à indisponibilidade dos direitos laborais mínimos, à norma mais favorável, à proteção da parte hipossuficiente.
No trabalho desportivo, como reiteradamente já discorreu este autor, aceita-se uma maior partilha dos riscos da atividade econômica entre empregado e empregador (uma de suas especificidades), conforme já ocorre na própria previsão do distrato.
Contudo, permitir acordos ilimitados para a cessação contratual pode ser estímulo a violação do livre consentimento (arts. 138 a 165, do CC), à liberdade de trabalho desportivo (art. 5°, XIII, da CF/88 usque art. 27-C, III, da Lei n. 9.615/98-Lei Pelé), fraude no tipo de cessação contratual e transposição acentuada dos riscos econômicos para o empregado desportivo, afronta aos princípios trabalhistas supramenciados, além de transgressão aos princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva que também regulam os contratos de trabalho.
Caso o ex-treinador estivesse subordinado por um contrato de natureza civil e não trabalhista, uma dita coação para assinatura de um distrato configurar-se-ia um vício de consentimento (arts. 138 a 165, do CC), bem como uma infração às cláusulas gerais de função social dos contratos e da boa-fé objetiva acima expressados.
A respeito do resguardo de direito humano fundamental da liberdade de trabalhar, recorde-se que o processo extrajudicial na Divisão Trabalhista da CNRD permite uma liminar em tutela de urgência sobre a desvinculação desportiva (art. 21 do Regulamento da CNRD), o que liberaria o ex-técnico a contrair um novo registro federativo pelo Clube do Remo.
Nada obstante, enquanto o poder executivo da CNRD é apenas extrajudicial (via sanções disciplinares no sistema federativo CBF), no Poder Judiciário Trabalhista uma decisão liminar ou definitiva geraria uma execução sob o império da ordem jurídica, que por meio de mandado judicial determinaria um assentamento momentâneo de liberação do Felipe Conceição para permitir o seu trabalho pelo Clube do Remo ou outra equipe qualquer.
Em síntese, resta saber se a CNRD terá sensibilidade para as questões de contratação subordinada desportiva, sem abdicar das especificidades do labor desportivo, mas ao mesmo tempo sem aviltar a função tuitiva (de proteção) mínima que deve permear as relações de trabalho no desporto.
……….
[1] EMENTA: ATLETA PROFISSIONAL – JOGADOR DE FUTEBOL – RESCISÃO CONTRATUAL MEDIANTE ACORDO – VÍCIO DE VONTADE – RECONHECIMENTO DA RESCISÃO INDIRETA – CLÁUSULA COMPENSATÓRIA DESPORTIVA E VERBAS RESCISÓRIAS – PAGAMENTO DEVIDO. Atleta profissional de futebol. Rescisão contratual mediante acordo. Vício de vontade reconhecimento da rescisão indireta. Cláusula compensatória desportiva e verbas rescisórias devidas. Reconhecido o vício de vontade do obreiro ao firmar termos de rescisão contratual consensual sob ameaça de não ter sua passagem de retorno à cidade natal paga pelo clube reclamado, reputa-se inválido o ato rescisório, convertendo-se o distrato em dispensa antecipada e sem justa causa. Destarte, devidas as verbas inerentes à dispensa imotivada (13° salário e férias mais 1/3 proporcionais), além do valor relativo à cláusula compensatória desportiva. (TRT 22ª R. – RO 0001013-04.2017.5.22.0001 – Relª Liana Chaib – Dje 08.01.2019 – p.117). (grifos nossos).
[2] Exatamente o que poderia ter sido realizado no caso Fred entre Clube Atlético Mineiro x Cruzeiro Esporte Clube. Verificar em RAMOS, Rafael Teixeira. Curso de direito do trabalho desportivo: as relações especiais de trabalho do esporte. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 222-224.