A semana que passou escancarou um problema que o futebol insiste em não olhar com atenção que ele exige. Os choques de cabeça provocaram susto, dor, uma fratura no crânio de Raúl Jimenez e uma pressão para mudar o protocolo de concussão do esporte.
Depois de um choque entre Jimenez e o zagueiro brasileiro David Luiz, o atacante do Wolverhampton foi levado para um hospital e imediatamente operado. Havia uma lesão no cérebro. Segundo o jornal “The Sun’, existe chance dele não voltar a jogar e citou o exemplo de Ryan Mason, meio-campista inglês que também sofreu a mesma lesão durante um jogo do Chelsea, em 2017. Ele foi operado assim como Jimenez, mas encerrou a carreira aos 26 anos.
De todos os jogadores envolvidos em choques no fim de semana, apenas Jimenez não voltou para o campo. Todos os outros foram rapidamente atendidos – inclusive o brasileiro David Luiz – e voltaram para o jogo. Mas a que preço? O futebol não respeita a concussão e esquece de olhar exemplos que outros esportes já apresentaram de como é possível diminuir o risco de sequelas.
O protocolo do futebol é falho. Tanto que a IFAB, que cuida das regras do jogo, enfim, começou a discuti-lo em outubro de 2019 e em janeiro deste ano criou um grupo de trabalho dedicado à concussão cerebral, afirmando que “testes preliminares” com substituições temporárias poderão começar em 2021.
O que é concussão
A concussão cerebral é a perda de consciência num intervalo curto de tempo, e acontece logo após um traumatismo craniano.
De difícil diagnóstico, ela caracteriza-se por microlesões, que não são visíveis, mas que apresentam sintomas característicos. E como o diagnóstico é complicado, muitos atletas que sofrem concussão voltam ao jogo, o que é um problema sério.
São vários os exemplos no futebol. Álvaro Pereira na Copa de 2014, o goleiro Karius, do Liverpool, na final da Liga dos Campeões de 2018? e a lista é longa de jogadores que não poderiam voltar a campo se fosse colocado em prática um protocolo eficaz de combate à concussão.
Em função do risco de repetidas microlesões provocarem uma lesão cerebral grave, vários esportes criaram protocolos obrigatórios para concussão visando proteger a saúde do atleta.
Concussões entre atletas profissionais dominaram as manchetes esportivas nos últimos anos. Na NFL, na NHL, no futebol.
As duas primeiras ligas adotaram protocolos de concussão nos últimos anos.
A NHL introduziu novas regras em 2011 que exigem que os jogadores deixem o banco e se dirijam a uma sala silenciosa para serem avaliados por um médico após receber um golpe na cabeça. A NFL deu um passo adiante em 2013, exigindo que um jogador com uma suposta concussão recebesse autorização do médico da equipe e de um neurologista independente antes de voltar a jogar.
Brigas jurídicas melhoraram a segurança dos atletas
A NFL só criou um protocolo obrigatório e eficaz depois de perder uma batalha jurídica bilionária para atletas diagnosticados com a chamada ETC (encefalopatia traumática crônica), doença causada pelos golpes que os atletas recebem na cabeça ao longo da carreira. No Canadá, a morte de uma jovem de 16 anos que jogava rúgbi criou protocolo de concussão obrigatório para quase todos os esportes.
No futebol, ainda não se tem caso de atletas que processaram entidades ou clubes por lesões causadas no cérebro pelo jogo. Mas, nos últimos anos, esses tipos de lesões aumentaram. O esporte ficou mais físico.
Segundo levantamento do Dr Jorge Pagura, presidente do Comitê Médico e de Combate à Dopagem na CBF, o número de concussões diagnosticadas tem se mantido no mesmo patamar nos últimos anos. Isso mostra que, realmente, o atual protocolo ainda pode ser deficiente para uma lesão que pode causar danos irreversíveis no cérebro. Trauma na cabeça é a segunda lesão mais frequente no Brasileirão por três anos seguidos.
Esporte evolui também com a ciência
É sempre importante repetir que o esporte vive em constante evolução e transformação. Mas essas só se manifestam quando provocadas. A provocação pode aparecer como forma de aprimorar o jogo, de deixá-lo mais interessante, mais justo, ou mais seguro para quem joga. E ela aparece de diferentes maneiras, a partir de processos judiciais, de tragédias, mas também do entendimento científico e humano de que o esporte precisa proteger a saúde de quem pratica. Esse entendimento é fundamental no Direito Esportivo. E aos organizadores do jogo.
O futebol precisa evoluir, ele anda atrás de esportes como basquete, rúgbi, futebol americano e outros quando o assunto é lesão na cabeça. O protocolo da FIFA, seguido pelas federações nacionais não ataca o problema de maneira eficaz. A ciência tem mostrado que não cuidar de concussão pode gerar doenças graves.
Um estudo que mostra como o futebol afeta a saúde dos atletas precisa servir para acelerar uma mudança necessária.
Pesquisa mostra que futebol afeta saúde de atletas
Um artigo publicado pela revista New England Journal of Medicine, uma das publicações científicas mais prestigiadas da área da medicina, trouxe levantamentos importantes, e surpreendentes. A repercussão será gigante, uma vez que foi o primeiro estudo feito com uma grande amostragem de ex- atletas de futebol. Foram 7676 ex-atletas e 23000 controles.
O trabalho comparou a taxa de mortalidade entre ex-atletas de futebol na Escócia com a população em geral, num trabalho retrospectivo, feito de trás para frente.
Neste estudo, os pesquisadores concluíram que:
- nos atletas o risco de morte por doenças degenerativas é 3,5 vezes maior do que no não atleta;
- para Esclerose Lateral Amiotrófica 4 vezes;
- para causas diretamente relacionadas a Alzheimer foi 5 vezes maior;
O único dado positivo para o atleta é que a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares é 20% menor do que a da população geral.
O Dr. Hermano Pinheiro, um especialista e estudioso nessa área de concussão no esporte, com pós-doutorado pela USP, diz que “o trabalho não foi possível encontrar essa associação das doenças aos traumas na cabeça, uma vez que não foram realizadas autópsias para estudo anatomopatológico nos cérebros. Essa é a única maneira de se diagnosticar a Encefalopatia Traumática Crônica. Mas quem conhece o contexto das concussões cerebrais no futebol atualmente desconfia disso”.
Os dados da pesquisa trazem números muito parecidos com as pesquisas feitas nos Estados Unidos com os ex-jogadores de futebol americano. Por conta da concussão, a NFL perdeu um processo bilionário que garantiu indenização a jogadores vítimas de uma doença gerada por choques de cabeça, a chamada ETC (encefalopatia traumática crônica). Depois disso, ela criou um protocolo eficiente para diminuir riscos de lesões.
Como é no futebol
Hoje o futebol brasileiro segue o protocolo da FIFA. E ele não ataca de maneira efetiva o problema.
Depois dos repetidos casos de choque na Copa de 2014, a FIFA passou uma orientação sobre o que fazer em lances como esse. Aqui é importante destacar: é uma diretriz, não é um protocolo obrigatório como nos esportes americanos.
Ela diz que o médico da equipe é que vai determinar a continuidade do atleta, mas do lado de fora do campo. São três minutos de atendimento dentro do gramado, e o jogador precisa ser levado para fora de campo. O prejuízo técnico – jogar com um menos – também acelera o atendimento e não ajuda numa avaliação mais correta.
Ele tem um tempo muito curto para diagnosticar a perda de consciência, o andar desnorteado do atleta e fazer as perguntas-chave. Depois de analisar tudo isso, o médico precisa decidir se o atleta tem condição ou não de continuar. Se o médico constatar algo anormal, no vestiário um novo exame deve ser feito, e dura cerca de 10 minutos.
A conclusão é de que a determinação do futebol ainda deixa jogadores em risco, e segundo especialistas, precisa ser aprimorada.
É preciso agir.
O episódio com Jimenez provocou uma grande reação na Premier League. O técnico do Manchester City, Pep Guardiola, disse que a liga precisa ter um protocolo claro para quando há um choque de cabeças ou concussão. Já o goleiro brasileiro Ederson defende que deve haver substituições automáticas para jogadores com concussão.
O esporte muda a partir de provocações. A provocação pode aparecer como forma de aprimorar o jogo, ou de melhorar a segurança de quem joga. E ela pode aparecer a partir de processos judiciais, de tragédias, mas também do entendimento científico e humano de que o esporte precisa proteger a saúde de quem pratica. Esse entendimento é fundamental no Direito Esportivo, no esporte e na vida.
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