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Caso Lassana Diarra: uma nova temporada Bosman?

Os comentários de hoje não pretendem uma análise pormenorizada do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)[1] sobre o processo do ex-atleta profissional, Lassana Diarra, mas tão somente em cima de perspectivas sobre a ementa resumida de julgamento aqui transcrita e o quanto noticiado pela mídia brasileira, comentando quais seriam as tendências normativas futuras do Regulamento de Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ).

Segundo as notícias e a ementa em nota de rodapé, a decisão do TJUE é mais um leading case no mundo do trabalho desportivo, uma vez que invalida a priori, interpartes, o art. 17 do referido RSTJ, dispositivo que trata exatamente de uma das maiores especificidades contratuais trabalhistas desportivas: a existência das cláusulas de rescisão (cláusulas indenizatórias, cláusulas penais) e a responsabilidade solidária do clube terceiro, em seu pagamento, por ser frequentemente o estimulador da ruptura do atual contrato de trabalho do jogador, este responsável conjugal de tal rompimento.

Observe-se, desde logo, que a despeito da decisão do TJUE ser entre as partes litigantes, este Tribunal detém jurisdição sobre todos os países integrantes da União Europeia (UE), firmando não apenas um precedente, mas à semelhança do Caso Bosman pode requerer ao Conselho Europeu e demais órgãos normas de orientação no espaço UE a impor vinculativamente o julgado deste leading case aos demais conflitos análogos que, porventura, virão (art. 68 do Tratado de Funcionamento da União Europeia-TFUE). Portanto, se assim for, este “Caso Lassana Diarra” tornar-se-á “uma nova Temporada Bosman de uma série” de ações da UE na circulação de trabalhadores do desporto.

Rigidamente, diante da dimensão normativa dos Tratados de Formação e Consolidação da União Europeia, as cláusulas de rescisão (indenização) nos contratos de trabalho dos desportistas, mesmo vigorando tão somente durante o prazo contratual, infringe os princípios de liberdade de circulação de trabalhadores, não discriminação, igualdade e livre concorrência na UE (arts. 18, 26, 45, 101, 102 do TFUE), exatamente por restringir a liberdade de transferência dos atletas pelas ferramentas tradicionais do Direito do Trabalho Desportivo, via coerção de um pagamento indenizatório de valores elevados, inexistindo “pedido de demissão comum consoante decorre na maioria das modalidades de emprego”, considerada esta uma violação contratual quando intentada pelo jogador trabalhador.

Entretanto, o teor desta decisão, salvo estudo mais aprofundado que descabe nesta escrita colunal simplista e sucinta, ao julgar deste modo, desconsidera o conteúdo simbiótico do contrato de trabalho desportivo, a sua especificidade, aceita genericamente no Livro Branco do Desporto anexo ao Tratado de Lisboa da própria UE, no sentido de que neste negócio jurídico contratual se aspira prioritariamente a tutela do trabalhador, porém, sem descurar dos interesses de proteção e valorização das competições desportivas, principal fonte de renda de suporte das relações laborais no desporto.

Por isso, que no estudo da ramificação do trabalho desportivo se considera o contrato de trabalho do jogador regido por uma fórmula aditiva do ordenamento jurídico estatal + a ordem jurídica desportiva, esta emana de poderes estatais e de entidade privadas do esporte, como a FIFA.

Nesses termos, o contrato de trabalho dos atletas deve priorizar o direito humano fundamental do jogador de trabalhar, mas sem aniquilar a sua principal fonte de existência que é a fortificação da competição desportiva, perfazendo-se resumidamente na sua valorização econômica, através da restrição de mercado dos praticantes a permitir um equilíbrio competitivo mínimo, evitando mudanças repentinas de elencos de clubes durante uma mesma temporada, o que refletiria também sobre a incerteza do resultado, outro pilar valorativo da competição.

As cláusulas de indenização (penal, rescisão) durante a vigência do contrato de trabalho do desportista serve de instrumento da dimensão da ordem jurídica desportiva, como comporta que auxilia na organização das competições a permitir um maior equilíbrio entre as equipes contendoras, e, por conseguinte, insufla a incerteza dos resultados (vetores maiores de valorização da indústria do esporte).

A atividade trabalhista desportiva é caracterizada pela mobilidade, por consequência a liberdade de trabalho é bem mais sagrada para a classe dos atletas trabalhadores, comparando com a maioria dos outros tipos de trabalho, que historicamente vindicam a estabilidade empregatícia.

Por ser o contrato de trabalho dos jogadores a prazo determinado com cláusulas indenizatórias, a liberdade de trabalho nesta relação resta hipotecada pela estabilidade dos termos de início e fim do contrato, ao prestígio da pacta sunt servanda, que somente pode ser cindida pelas partes mediante um pagamento de indenização, salvo obviamente as situações de resolução por justa causa. Essa sistemática histórica na relação laboral desportiva, além de ser fonte de renda para entidades desportivas é o principal mecanismo de sustentação do equilíbrio das transferências, das competições e a intensificação da incerteza de seus resultados.

Quanto à responsabilidade solidária no pagamento da cláusula indenizatória de transferência pelo “clube estimulador”, aonde o atleta vai jogar após o rompimento contratual, a sua origem se encontra na teoria do terceiro cúmplice ou doutrina efetiva das obrigações externas, matéria originária no Direito Civil anglo-saxão e francês, aderido pelo art. 608 do Código Civil brasileiro para os contratos de prestação de serviços com pactuação formal – a escrito. A sua inserção também se demonstra consolidada no trabalho desportivo do sistema jurídico de alguns países, como Brasil (art. 28, § 2o, da Lei n. 9.615/98; art. 86, § 2o, da Lei n. 14.597/23) e Portugal (art. 26.o da Lei n.o 54/2017), no mesmo rumo do art. 17 do RSTJ da FIFA, uma das vigas da especificidade do labor desportivo, mais uma diferenciação da esmagadora maioria dos demais tipos de trabalhos.

Nessa esfera do contrato de trabalho do desportista, diante das referências normativas e da decisão do TJUE no caso Lassana Diarra, o melhor aprimoramento seria a subsistência das cláusulas de indenização de transferência de maneira não abusiva, com redutores a cada ano (temporada) de contrato cumprido pelos atletas e somente enquanto perdurar o prazo contratual laboral, algo já fincado pelo caso Bosman e outros posteriores, mas desde que não se necessitasse de ordem judicial para a liberação dos documentos de transferência do jogador trabalhador pelas federações nacionais (Certificado Internacional de Transferência-CIT, Transfer Matching System-TMS, sistema eletrônico de controle de contrato laboral dos jogadores da estrutura da FIFA). A mera manifestação de vontade (requisição de demissão para transferência) perante os órgãos federativos, nos casos de não existir resilição contratual (celebração de acordo dos contratantes para a cessação do contrato laboral desportivo) deveria ser o suficiente, restando o conflito indenizatório ao Poder Judiciário, Entidades Árbitrais ou Órgãos Extrajudicias de Resolução de conflitos, a exemplo da Dispute Resolution Chamber da FIFA.

O contrário do sobrescrito continuaria a violar as normas principiológicas de formação da UE supracitadas, podendo o litígio sobre montantes indenizatórios tramitar judicialmente por violação do pacto contratual, o que já decorre normalmente na prática cotidiana dos dissídios. Todavia, em muitos casos, o jogador para obter os documentos de transferência (confirmação com o TMS e o CIT), resguardando a sua livre circulação de trabalhador, somente consegue por decisão e mandado judicial.

Em suma, enquanto o Conselho, os demais órgãos da UE e o Tribunal Belga, julgador do conflito originário, não tomem decisões de melhores adequações no caso Lassana Diarra, a tendência é que a FIFA mantenha o seu art. 17 do RSTJ sem muitos escrúpulos, sempre a espera de submissão pontual a mandados judiciais fundados neste novo precedente. Neste plano a FIFA já pré-avisa que está à espera do feixe final de decisões do Tribunal da Bélgica. Aguarda-se os episódios desta nova temporada…

Crédito imagem: Getty Images

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[1] Ementa do caso em idioma do julgamento escrito: ARRÊT DE LA COUR (deuxième chambre) 4 octobre 2024 ( *1 ) «Renvoi préjudiciel – Marché intérieur – Concurrence – Réglementation instituée par une association sportive internationale et mise en œuvre par celle-ci avec le concours de ses membres – Football professionnel – Entités de droit privé investies de pouvoirs de réglementation, de contrôle et de sanction – Réglementation relative au statut et au transfert des joueurs – Règles relatives aux contrats de travail conclus entre des clubs et des joueurs – Rupture anticipée d’un contrat de travail par le joueur – Indemnité imposée au joueur – Responsabilité solidaire et conjointe du nouveau club – Sanctions – Interdiction de délivrer le certificat international de transfert du joueur et de l’enregistrer tant qu’un litige lié à la rupture anticipée du contrat de travail est pendant – Interdiction d’enregistrer d’autres joueurs – Article 45 TFUE – Entrave à la liberté de circulation des travailleurs – Justification – Article 101 TFUE – Décision d’une association d’entreprises ayant pour objet d’empêcher ou de restreindre la concurrence – Marché du travail – Recrutement des joueurs par les clubs – Marché des compétitions de football interclubs – Participation des clubs et des joueurs aux compétitions sportives – Restriction de la concurrence par objet – Exemption » Dans l’affaire C‑650/22. Eur-lex: acesso ao direito da união europeia. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62022CJ0650&qid=1395932669976>. Acesso em: 07 out. 2024.

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