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Caso Lassana Diarra: uma nova temporada Bosman? – Parte II

A complexidade do Caso Lassana Diarra merece mais alguns comentários na sequência dos escritos colunais da semana passada, sem exaurimento do tema, tendo em vista que a proposta espacial da coluna não é necessariamente a manifestação cognitiva e exauriente, pois, por vezes, serve apenas de reflexão para o leitor e de futura redação de aperfeiçoamento para o próprio colunista.

O princípio da liberdade de trabalho é também previsto no art. 15o da Carta de Direito Fundamentais da União Europeia (CDFUE) (como o Brasil não é/pode ser país integrante da UE, ilustra-se internamente com o art. 47o, n. 1, da Constituição da República Portuguesa-CRP, componente da UE, ordem jurídica bem próxima, cujo idioma oficial é o português), coadunando-se com o princípio da livre circulação de trabalhadores no espaço comunitário europeu, até se destaca muito a força do sistema UE na quebra das cláusulas de transferência após o encerramento do contrato laboral desportivo, promovido pelo acórdão Bosman, algo que os Estados, individualmente, não teriam conseguido, pela limitação territorial de suas jurisdições.

Por outras palavras, aquilo que o princípio da liberdade de trabalho não conseguiu, o princípio da livre circulação de trabalhodores conquistou, uma verdadeira libertação dos trabalhadores desportivos com a extinção contratual por decurso regular do prazo, como deve ser (em termos de Brasil representou o fim da norma do passe, contida na revogada Lei n. 6.354/76).

Outra prospectiva do sistema jurídico internacional eleva, de maneira mais ampla, a valorização dos princípios da liberdade de trabalho e da livre circulação de trabalhadores, “a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório” da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), modernizada pela Declaração de Filadélfia, mais precisamente esmiuçada em suas Convenções Fundamentais ns. 29 e 105. O livre exercício de labor detém guarida básica ainda no art. 23o da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e no art. 6o do Pacto Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU).

Costumam-se esquecer o art. 6.1. “Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas” da Convenção Americana de Direito Humanos (CADH) a intensificar os referidos textos normativos supramencionados. Em termos de ordem comunitária da América do Sul, o art. 2o, n. 2, d) da Declaração Sociolaboral do Mercosual determina a aplicação dos princípios e direitos fundamentais do trabalho pelos países integrantes, assim como o seu art. 8o reprisa a eliminação do trabalho forçado e obrigatório.

Consoante o afirmado na coluna da semana passada, rigidamente, mesmo perante a ordem universal de direitos humanos, de normas internacionais, iuscogens, e o comunitarismo incipiente da América do Sul, existem valores relevantes para o prestígio da livre circulação e liberdade de labor dos trabalhadores desportivos, que não estão alheios a esta gama normativa.

Entretanto, vale asseverar que parece lúcido do acórdão Lassana Diarra[1] a concentração decisória sobre a invalidação “da possibilidade de interdição de transferência, inscrição por um novo clube contrante de um jogador, por este não ter quitado solidariamente os valores da cláusula indenizatória do vínculo contratual anterior extinto”. Logicamente, nesta dimensão, depreende-se que a existência de responsabilidade solidária sobre a cláusula indenizatória desportiva pode enfraquecer, mas é possível que ela continue a subsistir, desde que não represente entrave ríspido à transferência de um atleta quando não quiser mais, de nenhum modo, permanecer vinculado ao contrato atual, restando a mitigação dos valores compensatórios e a sua respectiva cobrança solidária da nova entidade empregadora contrante.

Nesses moldes, a decisão do TJUE, as futuras orientações do Conselho e demais órgãos da UE devem continuar permitindo a subsistência das cláusulas indenizatórias de transferência e a sua responsabilidade solidária sobre empregadoras desportivas contraentes, se houver rompimento contratual antes do termo (prazo) final, embora de forma bem mais mitigada, pois de agora em diante está afirmada a violação da liberdade de circulação de trabalhadores desportivos e a livre concorrência no respectivo setor econômico, que nem precisa ser retratada de forma tão abusiva perante os mecanismos do art. 17 do Regulamento e Status de Transferência de Jogadores (RSTJ) da FIFA. A propósito, esta norma federativa deve mesmo passar por reformulações e talvez “a parte II da nova temporada Bosman” não seja assim como tanto já se propala, aguarda-se com muita expectativa…

Crédito imagem: Getty Images

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[1] Ementa do caso em idioma do julgamento escrito: ARRÊT DE LA COUR (deuxième chambre) 4 octobre 2024 ( *1 ) «Renvoi préjudiciel – Marché intérieur – Concurrence – Réglementation instituée par une association sportive internationale et mise en œuvre par celle-ci avec le concours de ses membres – Football professionnel – Entités de droit privé investies de pouvoirs de réglementation, de contrôle et de sanction – Réglementation relative au statut et au transfert des joueurs – Règles relatives aux contrats de travail conclus entre des clubs et des joueurs – Rupture anticipée d’un contrat de travail par le joueur – Indemnité imposée au joueur – Responsabilité solidaire et conjointe du nouveau club – Sanctions – Interdiction de délivrer le certificat international de transfert du joueur et de l’enregistrer tant qu’un litige lié à la rupture anticipée du contrat de travail est pendant – Interdiction d’enregistrer d’autres joueurs – Article 45 TFUE – Entrave à la liberté de circulation des travailleurs – Justification – Article 101 TFUE – Décision d’une association d’entreprises ayant pour objet d’empêcher ou de restreindre la concurrence – Marché du travail – Recrutement des joueurs par les clubs – Marché des compétitions de football interclubs – Participation des clubs et des joueurs aux compétitions sportives – Restriction de la concurrence par objet – Exemption » Dans l’affaire C‑650/22. Eur-lex: acesso ao direito da união europeia. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62022CJ0650&qid=1395932669976>. Acesso em: 07 out. 2024.

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