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Caso Rafael Leão: o encontro entre a violência e o contrato de trabalho no CAS

O Direito Desportivo é incrível para os seus operadores, pois é capaz de combinar o esporte, uma paixão para muitos, juntamente com o Direito, seja processual ou material, moldado e aplicado ao caso concreto, interpretado de acordo com os fatos, mas sem se olvidar das normativas vigentes.

Nesse artigo, comentarei um pouco sobre o lado racional e o passional do esporte e do Direito, representados perfeitamente por um dos laudos mais interessantes dos últimos tempos, que somou todos os componentes necessários para uma disputa inesquecível.

Com efeito, o esporte costuma aflorar os sentimentos mais distintos em um ser humano: amor, êxtase, felicidade, angústia, tristeza e raiva. Tudo pode ser alterado em questão de segundos, bastando uma simples jogada bem sucedida ou apenas o decorrer de uma partida. Contudo, quando esses sentimentos são extravasados e se transformam em condutas que colocam em risco à integridade, física ou psicológica, de outrem, podem produzir consequências prejudiciais ao próprio torcedor, como também ao clube do coração. É a entrada do Direito no terreno de jogo.

Nesse sentido, nos últimos anos, o cenário brasileiro é bastante preocupante. Dezenas de casos de violência sofrida por jogadores e staff técnico, ameaças, agressões, atentados contra veículos de transporte das equipes, invasão aos centros de treinamento. Tudo isso, ultrapassa a esfera de torcedor e passa a adentrar o âmbito criminal, o que também gera efeitos no contrato e na relação laboral entre atletas e clubes, que é regulada pela entidade máxima do futebol quando da presença de um elemento internacional.

Conforme já explicado em outra oportunidade aqui mesmo[1], a FIFA instituiu como regra o cumprimento dos contratos, impondo mecanismos para garantir esse escopo principal, como a impossibilidade da terminação unilateral durante a temporada, sob pena de sanções esportivas a quem está terminando, ao clube (terceiro) que está induzindo a quebra contratual, bem como compensações financeiras que deverão ser pagas pelos infratores/indutores a parte prejudicada.

Entretanto, há uma exceção a estabilidade contratual, chamada justa causa. No caso da ocorrência dela, a parte que sofreu os efeitos da inexecução das obrigações poderia resolver o contrato, sem consequências de qualquer tipo (seja pagamento de indenização ou imposição de sanções esportivas). Por outro lado, quem foi inadimplente será responsável pelo pagamento de uma compensação financeira, sem prejuízo de uma sanção esportiva.

Apesar de ser de extrema importância para todos os componentes do mercado, o significado de justa causa e as condutas que dariam azo a esse tipo de terminação nunca foram esclarecidos pela FIFA em seu corpo normativo. A definição desse conceito foi sendo construída e aprimorada através das resoluções emitidas pela entidade suíça e pelo Tribunal Arbitral do Esporte (TAS ou CAS).

Nesse contexto, como é uma entidade privada de Direito Suíço, a FIFA, bem como o TAS, também localizado em solo helvético, se inspiraram no Código de Obrigações do país[2] para nortear suas decisões. Esse dispositivo, mais precisamente no artigo 337, indica que, na existência de falta grave, os empregadores ou empregados podem resolver imediatamente o contrato.

Se entende como falta grave tudo aquilo que não permite, por razões de boa-fé, exigir do terminador que se tenha que continuar no contrato. Em outras palavras, a conduta deve ser tão grave, que culmine em uma quebra de confiança que não pode ser restabelecida, inviabilizando qualquer possibilidade de permanência da relação.

Ao contrário do Direito Brasileiro, que é respaldado pelos artigos 482 e 483 da CLT[3], e semelhante à normativa privada da FIFA, o ordenamento jurídico suíço não descreveu, detalhadamente, as possibilidades do empregador/empregado para resolverem o contrato, devendo ser analisado de acordo com o caso concreto pelos órgãos decisórios da FIFA e do CAS.

Posto isso, partimos para o caso objeto do título, que envolveu um jogador português (Rafael Leão), Sporting e, posteriormente, um clube francês (Lille), ocorrido no ano de 2018. Vivendo um momento conturbado dentro de campo, o presidente da equipe portuguesa começou a ter uma relação combativa e problemática com o elenco. Por meio da imprensa e também pessoalmente, passou a questionar o esforço dos atletas, afirmando que os jogadores não tinham comprometimento e atitude.

Em reação aos atos do presidente, os atletas divulgaram uma nota rebatendo o mandatário, que, prontamente, decidiu suspender[4] os jogadores que haviam publicado a resposta nas redes sociais. No dia seguinte[5], levantou a suspensão dos atletas, mas resolveu abrir procedimento disciplinar contra os desportistas, o que durou apenas uma semana sem uma investigação e sem justificativa plausível para a sua instauração.

Diante de tamanha turbulência interna e resultados dentro de campo que não correspondiam, em maio de 2018[6], dezenas de torcedores do Sporting invadiram o centro de treinamento para ameaçar e agredir jogadores e funcionários do clube, que tiveram sérios danos físicos e psicológicos.

A partir disso, 8 jogadores do elenco buscaram rescindir os seus contratos com clube devido a existência de justa causa, em vista dos incidentes relatados. Obviamente, todos os eventos narrados ultrapassaram o mero aborrecimento e os limites daquilo que é aceitável para uma profissão notoriamente pública, que envolve a paixão de milhões. Portanto, houve uma quebra de confiança devido a perda da segurança, o que, por si só, impedia o prosseguimento da relação trabalhista, tudo em conformidade com a própria legislação portuguesa.

Ocorre que, entretanto, o caso do atleta Rafael Leão, campeão e eleito melhor jogador da última Serie A pelo Milan, foi diferente dos demais pelos fatos que serão expostos a seguir. O jogador notificou o clube informando sobre a opção pela rescisão contratual somente um mês após o ocorrido no centro de treinamento, alegando conexão entre as declarações humilhantes do presidente e a negligência na segurança do clube com as agressões sofridas pelos atletas.

Ato contínuo, no início de agosto, o jogador assina contrato com o Lille, da França, com o requerimento do Certificado Internacional de Transferência (CTI) datado no dia 31 de agosto e emissão pela Federação Portuguesa confirmada pela Federação Francesa, quatro dias depois. Nesse interregno, o futebolista ingressou com uma ação no Tribunal Arbitral do Desporto, semelhante à nossa Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) aqui no Brasil, de acordo com a cláusula arbitral, requerendo uma compensação em 390 mil euros, devido a terminação com justa causa.

Por sua vez, em sua defesa, o clube português pleiteou o pagamento da cláusula indenizatória pelo jogador devido a terminação precoce sem justa causa, que chegava ao valor de 45 milhões de euros. Todavia, mais de um mês após a apresentação da defesa, o Sporting levantou, intempestivamente, o argumento de que o Tribunal Arbitral não era competente para resolver o litígio, posto que a demanda deveria ter ocorrido no antro da FIFA.

Em maio de 2019, aplicando o princípio da competência-competência, o Tribunal reconheceu a capacidade concedida pela cláusula arbitral para dirimir o litígio e, no mérito, decidiu que o jogador havia sofrido assédio e que o clube havia violado as regras de segurança. Essas condutas provocariam, por si só, a existência de justa causa devido a seríssima quebra contratual cometida pelo clube.

Sem embargo, a conduta subsequente do jogador, demora ao notificar o empregador pela rescisão e subsequente contrato com o clube francês, demonstram que a relação com o Sporting poderia ter continuado. Sendo assim, moderando a importância requerida pelo Sporting e aplicando o princípio da proporcionalidade, condenou o jogador ao pagamento de uma quantia de aproximadamente 16 milhões de euros pela terminação contratual sem justa causa. Em contrapartida, condenou o clube ao pagamento de 40 mil euros ao jogador a título de indenização pelos danos causados pela conduta do clube durante os fatos.

Irresignado, o jogador solicitou a anulação da decisão arbitral junto à Corte de Apelação de Lisboa, alegando suspeição do árbitro escolhido pelo clube, o que foi negado pela Corte. Juntamente, interpôs apelação ante o Tribunal Constitucional Português, o que veio a ser desestimada em janeiro desse ano. Sobre essa decisão, ainda cabe recurso.

Paralelamente a isso, em novembro de 2018, dois meses após o recebimento do CTI pela Federação Francesa, o Sporting ajuizou uma demanda na FIFA para o reconhecimento da terminação sem justa causa, juntamente com a responsabilidade do Lille, na figura de indutor já explicada anteriormente, no pagamento da compensação estipulada no contrato. Outrossim, requereu a aplicação de sanções esportivas ao clube (transfer ban) e ao futebolista (seis meses com a proibição de atuar).

Em fevereiro de 2020, a Câmara de Resolução de Disputas da FIFA inadmitiu a ação alegando litispendência, em razão da identidade no objeto da demanda em relação àquela debatida no Tribunal Arbitral Português e que, apesar da inclusão do Lille – logo sem identidade de partes – não alteraria o fato de que a conduta infratora dos franceses(indução) é meramente acessória a discussão da existência de justa causa ou não, escopo da lide em Portugal.

Inconformado, o Sporting apelou da decisão e o caso chegou ao CAS[7]. Em seu extenso laudo, a formação arbitral se viu diante de um interessantíssimo debate processual e material, que eu tentarei destacar alguns pontos. Em sua apelação, o clube português tentou emplacar a tese da não existência de litispendência, posto que não havia identidade de partes, baseado em artigos do Estatuto Federal de Direito Internacional Privado (PILA em inglês) e do Código Suíço de Obrigações

Ademais, o pedido não era o mesmo, já que na demanda na FIFA, pretendia reconhecer a responsabilidade do Lille pelo pagamento da indenização, como clube indutor, segundo o artigo 17 do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[8], bem como a imposição de sanções esportivas ao atleta e ao clube francês, o que não foi e nem deveria ser alvo da lide em Portugal. Nessa esteira, a competência da FIFA estaria estabelecida pelo artigo 22 do mesmo regulamento, tendo em vista o elemento internacional (clube francês), fixação de indenização pela quebra de contrato, emissão do CTI e sanções esportivas.

Da mesma forma, defendia que, aquela altura, com a decisão favorável do Tribunal Arbitral de Portugal, que havia condenado o jogador e definido a terminação sem justa causa, deveria ser utilizado o conceito de coisa julgada pelo CAS. Desse modo, restaria apenas a resolução dos elementos que não eram objeto da outra lide. Se fossem aceitas juntamente com a configuração do Lille como clube indutor, se poderia aplicar a cláusula indenizatória em sua totalidade, o que eu antes fora moderada pelo Tribunal Português.

Pelos argumentos das defesas, podemos destacar pontos suscitados pelo clube francês, além da existência de litispendência e impossibilidade do uso de coisa julgada (ainda haviam recursos pendentes em Portugal), como a incompetência da FIFA para dirimir o conflito, que já estava sendo discutido em Portugal, e, que, o ajuizamento da demanda do Sporting na entidade suíça, que havia apresentado a defesa, mas não arguido a incompetência do Tribunal Luso, caracterizava-se venire contra factum proprium.

Outrossim, quando da emissão do ITC, nem o Sporting e muito menos a Federação Portuguesa, apresentaram qualquer objeção à expedição do documento, o que, segundo o clube francês, seria um elemento fundamental para o ajuizamento da ação diante a FIFA, conforme sua interpretação do artigo 22 do RSTP.

O Tribunal Arbitral do Esporte, após diversas questões procedimentais, em uma demanda bastante exigente e fundamentada decidiu da seguinte forma:

a) Impossibilidade da utilização da coisa julgada, já que havia recursos em andamento na Justiça Portuguesa

b) Não existência de litispendência, tendo em vista a não identicidade de partes e de matérias submetidas a apreciação da formação arbitral. Para isso, rechaçou os argumentos da decisão recorrida de que a resolução da questão sobre a responsabilidade do Lille seria acessória, uma vez que o próprio RSTP não difere nesses termos, bem como o Código Suíço de Obrigações e as decisões do Tribunal Federal Suíço dispõem justamente o contrário, impondo que a obrigação é a mesma e ambos são solidários. Para eles, a FIFA não deveria ter inadmitido o pleito do Sporting contra o Lille, em nenhuma hipótese.

c) Desestimou os pedidos de sanções esportivas ao Lille e ao jogador Rafael Leão, posto que não são impositivas e sim analisadas de acordo com cada caso concreto pela FIFA ou pelo próprio CAS

d) Sobre a questão da competência da FIFA, tendo em vista o elemento internacional (Lille), baseado no artigo 22 do RSTJ e que, a oposição ou não do clube e da Federação Portuguesa quando da expedição do CTI não é determinante para o mesmo dispositivo, reconheceu-se a competência. Igualmente, o tempo entre a terminação contratual com o Sporting e a expedição do CTI não eram suficientes para afastar o ligame entre os dois eventos e a responsabilidade do Lille como clube indutor, de acordo com o artigo 17.2 do RSTJ, uma vez que se beneficiou de uma terminação contratual prematura por parte do jogador (não pagando o valor da cláusula indenizatória), o que colocaria em risco o princípio da estabilidade contratual. Some-se a isso, o fato de logo depois o futebolista ter sido vendido ao Milan por uma quantia bem alta.

e) O jogador terminou o contrato sem justa causa, posto que tardou quase um mês para notificar o clube sobre a intenção de rescindir o contrato após os acontecimentos de invasão ao centro de treinamento e mais de dois meses em razão das declarações do presidente do Sporting. Para tanto, foi utilizado a jurisprudência do Tribunal Federal Suíço e do próprio CAS, que estabeleceram um período de reflexão curto, fixando o prazo de dois ou três dias úteis, com extensão excepcional de uns dias, para a comunicação da justa causa. Quando isso não ocorria, se presumia que a relação de emprego poderia continuar e o direito a rescisão por justa causa desapareceria.

f) A fixação dos valores devidos pelo Lille ao Sporting deveria ser decidida pela FIFA

g) A decisão final do processo em Portugal não afeta o Lille, que deve responder de acordo com o art. 17.2 do RSTJ perante a FIFA.

Conforme o exposto, o laudo arbitral foi muito didático quanto aos temas propostos, tanto de direito material quanto os processuais. Por outro lado, sobre a violência sofrida pelos jogadores, principalmente aqui no Brasil, é válido a observação sobre todos os itens aqui enfrentados. Desse modo, criou-se um precedente de grande valia, desde o ponto de vista dos jogadores, quanto para os clubes. Deve-se estar atento ao tempo de reflexão para a solicitação da rescisão por justa causa.

Podemos destacar que, não havendo a presença de um elemento internacional (terceiro clube ou jogador) é aplicada, em tese, a legislação do país do clube empregador. Contudo, com a existência de um elemento internacional, não obstante a relação trabalhista ser entre nacionais e submetida à órgãos nacionais, não exclui a apreciação da FIFA e do CAS, principalmente no que diz respeito ao player estrangeiro.

O Direito põe limites ao exagero sentimental, de vez em quando irracional e até criminoso, do Esporte e do seu público, mas sempre dentro de um procedimento e de regras pré-estabelecidas. Afinal, o Direito Desportivo é o diálogo entre os dois: a paixão e razão e assim continuará sendo, sempre à serviço de um bom funcionamento do desporto e da sociedade.

Crédito imagem: Global Imagens

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] A construção do conceito de justa causa no âmbito do futebol internacional – Lei em Campo

[2] Código de Obrigações Suíço: Microsoft Word – 220.it.doc (admin.ch) – última consulta: 06.07.2022

[3] Consolidação das Leis do Trabalho – DEL5452 (planalto.gov.br) – última consulta: 06.07.2022

[4] Presidente decide suspender jogadores do Sporting após ser criticado por atletas | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 06.07.2022

[5] Presidente do Sporting retira suspensão de 19 jogadores após atrito público – 07/04/2018 – UOL Esporte – última consulta: 06.07.2022

[6] Torcedores do Sporting invadem CT e agridem jogadores e comissão técnica  | futebol português | ge (globo.com) – última consulta: 06.07.2022

[7]CAS-2020-A-7054-Sporting-Clube-de-Portugal-v-Rafael-Alexandre-de-Conceicao-Leao-LOSC-Lille-FIFA.pdf – última consulta: 06.07.2022

[8] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 06.07.2022

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