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Caso Trippier: é possível a transferência territorial de uma punição esportiva?

O Direito, de uma maneira geral, é um fenômeno altamente relacionado com as tradições, usos e costumes de uma população, devido ao seu arcabouço histórico e pela composição da sociedade. Contudo, simultaneamente, essa mesma sociedade sofre influências externas, seja pelo desenvolvimento da tecnologia, como pelo modelo econômico e exigência de evolução. Dessa forma, o Direito pode manter esse aspecto tradicional, mas sem olvidar da necessidade de atualização e adaptação à nova realidade e aos desejos dos habitantes.

Com efeito, em um mundo globalizado e digital, onde a eliminação ou redução das fronteiras é sentida por todos comumente, surge uma importante indagação: O Direito resta inerte à globalização? Evidentemente, o modelo econômico adotado mundialmente requer uma integração e aproximação dos países na construção de acordos comerciais, cooperação, tratados, entre outros. Afinal, há uma infinidade de matérias a serem alinhadas.

Ocorre que, entretanto, um dos princípios mais basilares do Direito Internacional é o da soberania, em que cada país possui sua jurisdição, que deve ser respeitada pelos demais entes, mas, ao mesmo tempo, esse princípio, até então rígido, vem sendo suavizado pelo contexto mundial. Nesse ano, nos deparamos, no âmbito do Direito Penal, com o caso Robinho, condenado pela Justiça Italiana por um crime cometido no país transalpino, quando o atleta atuava pelo Milan.

Nesse sentido, a Justiça Italiana solicitou a extradição do jogador, para que pudesse cumprir a pena no local da condenação. Sem embargo, o Brasil, soberano, não extradita nacionais, devido ao art. 5º, LI, da Constituição Federal, que impõe que nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

Desse modo, o atleta não poderia ser extraditado, mas isso não o exime do cumprimento da pena aqui. Muito embora não ser uma unanimidade dentro da doutrina e jurisprudência[1], os italianos podem pedir a transferência de execução da pena, em virtude da Lei de Imigração 13.445/2017, o que ainda será analisado, certamente, nos próximos meses pelos órgãos competentes.

Posto isso, exclusivamente no âmbito do Direito Desportivo Internacional, tema central da seção Janela Jurídica, seria possível uma transferência de uma punição esportiva aplicada em um território, por uma liga, a um jogador que atua em outro país, logo, em outra liga? Nesse artigo, destrincharemos o caso Trippier, que, decerto, apresentou aspectos muito relevantes.

De início, rapidamente, podemos indicar o artigo 12 do Regulamento sobre Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTJ)[2] para responder a pergunta do título. Esse dispositivo determina que, quando da transferência internacional do atleta, ou seja, entre Federações Nacionais distintas, qualquer proibição de até quatro jogos ou três meses imposta ao jogador pela Federação anterior, mas ainda não cumprida (totalmente) no momento da transferência, será aplicada pela nova Federação em que o jogador for inscrito.

Ao emitir o CTI (Certificado de Transferência Internacional) a associação anterior notificará a nova associação através do TMS (Transfer Matching System), uma plataforma para armazenamento de dados das transferências internacionais de jogadores de futebol, das sanções disciplinares que ainda não foram (totalmente) cumpridas.

A nova federação na qual o jogador for registrado executará qualquer sanção disciplinar superior a quatro jogos ou três meses, em que o jogador ainda não tenha cumprido (totalmente), isso somente no caso de o Comitê Disciplinar da FIFA estender sua validade para o nível internacional. Da mesma forma, ao emitir o CTI, a associação anterior notificará a nova associação através do TMS de qualquer sanção disciplinar pendente.

Sendo assim, em um primeiro momento, não há dúvidas sobre a possibilidade de extensão ou transferência territorial de uma punição imposta em um país para ser cumprida em outro. Todavia, o caso Trippier nos reserva algumas particularidades.

Para uma melhor compreensão do tema, faz-se necessário expor os acontecimentos em ordem cronológica, que terminou com uma decisão do Tribunal Arbitral do Esporte (CAS ou TAS)[3], publicada recentemente. O lateral direito Kieran Trippier, com passagem pela seleção inglesa, atuou no Tottenham Hotspurs F.C. da temporada de 2015 até o verão europeu de 2019, quando se transferiu para o Atlético de Madrid, com a expedição do CTI pela Federação Inglesa (FA) no dia 18.07.2019.

Na mesma data, a Federação Inglesa recebeu diversas notificações de casas de apostas que alertavam sobre movimentações suspeitas no mercado de apostas em relação a transferência do atleta. Duas semanas depois, a FA foi informada oficialmente pela Comissão de Apostas esportivas e de Integridade, órgão responsável pelo controle, confirmando as suspeitas e afirmando que o futebolista, quando da época dos fatos, ainda estava sob a aplicação das regras da Federação Inglesa.

Nesse contexto, a Comissão aduzia que o jogador teria violado a regra E8(1)(b), que dispunha como infração a seguinte conduta: quando um participante fornecer a qualquer outra pessoa qualquer informação relativa ao futebol que tenha obtido em virtude de sua posição no jogo e que não seja publicamente disponível naquele momento, sendo utilizada por essa outra pessoa para apostas. Posteriormente, a FA abriu investigação e solicitou que o jogador fornecesse os dados do seu telefone para o inquérito, o que foi prontamente atendido.

Ato contínuo, com o fim das investigações, a FA abriu procedimento disciplinar contra o atleta, que teve a oportunidade de se defender, com a realização de audiência, implicando, no final do procedimento em uma aplicação de suspensão de 10 semanas e uma multa de £70,000.00, no dia 18.12.2020, pelo fornecimento de informação privilegiada sobre a sua transferência, infringindo o FA Handbook.

A FA, para garantir a execução da punição, baseada no artigo 66 do Código Disciplinar da FIFA[4], que estabelece que quando a violação for considerada grave, onde consta, dentre elas, mas não exclusivamente, os casos de discriminação, manipulação de jogos e competições, as Federações, Confederações e outras entidades desportivas organizadoras de competições devem solicitar ao Comitê Disciplinar a extensão a nível mundial das sanções que foram impostas.

A sanção foi estendida e o Atlético de Madrid, preocupado com o desfalque de um dos seus titulares, apelou diante da Comitê de Apelação da FIFA, que manteve a decisão. Irresignado, o clube espanhol recorreu da decisão no TAS, com pedido de uma espécie de liminar para que a decisão da FIFA fosse provisoriamente suspensa, o que foi negado duas vezes. Portanto, na prática, o jogador acabou cumprindo a punição.

Na sua apelação, em suma, o clube madrilenho alegou que a decisão da FA era nula, por ausência de competência da Federação Inglesa, posto que o jogador não fazia mais parte do quadro FA quando foi aplicada a sanção ou do início do procedimento disciplinar. Para tanto, aduzem, com base no art. 27 do Código Disciplinar da FIFA, que os ingleses deveriam ter informado a entidade máxima do futebol sobre as suspeitas de aposta e, consequentemente, o procedimento disciplinar deveria ter sido aberto pela FIFA.

Outrossim, afirmam que o Comitê Disciplinar seria incompetente para decidir sobre o tema, pois apostas esportivas, fora do âmbito das competições, como teria sido o caso (relacionado a uma mera transferência), seria de competência do Comitê de Ética. Para tanto, afirmam que as apostas esportivas, fora das competições, é uma matéria presente no art. 26 do Código de Ética e não no Código Disciplinar.

Por fim, também rebateu a tese da FIFA de que não teria legitimidade ativa, que defendia que o clube detinha interesse legítimo em apelar da decisão do Comitê Disciplinar, o que não era aplicável ao CAS, somente ao Comitê de Apelação. Ademais, a entidade suíça suscitou que os colchoneros não obteriam qualquer benefício caso a decisão fosse invalidada ou anulada, uma vez que o futebolista já havia cumprido a suspensão. Igualmente, a entidade máxima do futebol defendia que o TAS não tinha competência para revisar uma decisão emitida pela FA.

No laudo, com aproximadamente 40 páginas, o Painel concordou que parte do pedido da apelante não poderia ser concedido, tendo em vista que a punição já havia sido cumprida. Contudo, reconheceu a legitimidade ativa e o interesse legítimo, pois havia um pedido de nulidade da sanção esportiva ou, no caso concreto, a extensão dos efeitos a nível mundial, que pela sua natureza, pode trazer danos à reputação do atleta, ainda mais quando o tema é apostas esportivas.

No mérito, a Formação Arbitral reconheceu o argumento de que não teria competência para revisar o mérito da decisão da Federação, porém isso não impedia que houvesse uma análise dos requisitos considerados fundamentais, sob a óbice do art. 66.5 do Código Disciplinar, entre eles: se a pessoa sancionada foi citada corretamente, se pôde exercer o seu direito de defesa, se foi devidamente informada sobre a decisão, se a decisão está de acordo com os regulamentos da FIFA, se a ampliação da sanção não conflita com a ordem pública ou regras básicas de conduta. O conflito com a ordem pública foi submetido à apreciação do Tribunal detalhadamente.

O CAS concluiu que o FA tinha competência, pois, no momento do fato gerador (fornecimento de informação privilegiada para aposta esportiva), o jogador estava inscrito pelo Tottenham e, portanto, dentro do sistema de regras fixados pela FA. Da mesma forma, a Federação Espanhola não possuía competência, já que o atleta ainda não estava inscrito em seus quadros quando da ocorrência do fato gerador.

Além disso, argumentaram que a FIFA, através de uma interpretação do art. 27.6 do Código Disciplinar, possuía competência subsidiária nesse caso, ou seja, somente se FA se omitisse ou se abstivesse quando da responsabilidade de investigar, processar e punir é que o órgão máximo do futebol poderia agir.

Sobre a possível competência do Comitê de Ética, suscitado pelo Atlético de Madrid, o Painel alegou que o Comitê Disciplinar tem competência para ampliar, internacionalmente, as sanções aplicadas em âmbito nacional, inclusive as éticas. Por seu turno, as infrações éticas estariam dentro do conceito de condutas graves prevista no art. 66 do Código Disciplinar, segundo a interpretação do Tribunal, pois o rol previsto nesse dispositivo não é taxativo.

Por último, descartou a exclusão da conceituação de conduta grave, alegada pelo clube, baseado no tempo mínimo previsto no art. 12 do RSTJ, já mencionado nesse artigo, porque o atleta só foi sancionado depois da transferência ao Atlético, logo, depois da emissão do CTI. Em outras palavras, esse dispositivo do RSTJ é válido somente na transferência, quando o jogador já estiver sancionado pela Federação anterior. O recurso do clube espanhol foi inteiramente desestimado pelo CAS.

Conforme o exposto, é possível que uma sanção aplicada em âmbito nacional se transfira para outro país, em outra liga. Entretanto, devem ser avaliados o momento de aplicação da sanção e do fato gerador para se estabelecer o regulamento e a competência do caso concreto. O caso Trippier é um exemplo da riqueza da discussão jurídica atinente ao tema.

O Direito Desportivo, por meio do sistema associativo do desporto, visando tutelar cada vez mais a integridade do esporte, estabelece caminhos para que não haja uma conduta infratora sem a devida investigação, processo legal e ulterior aplicação de sanção, sempre garantindo o direito à ampla defesa, não importando o território.

Crédito imagem: Getty Images

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[1] Com pedido de extradição feito, entenda o que pode acontecer com Robinho – 05/10/2022 – UOL Esporte  – última consulta: 12.10.2022

[2] RSTJ – Reglamento-sobre-el-Estatuto-y-la-Transferencia-de-Jugadores-Edicion-de-julio-de-2022.pdf (fifa.com) – última consulta: 12.10.2022

[3] TAS 2021/A/7650 Club Atlético de Madrid S.A.D. c. FIFA – Microsoft Word – Laudo 7650 (FINAL con firmas).docx (fifa.com) – última consulta: 12.10.2022

[4] FIFA-LEGAL-HANDBOOK-EDICION-SEPTIEMBRE-2022.pdf – última consulta: 12.10.2022

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