Hoje o Júri-história vai entrar num caso que movimentou o futebol brasileiro no final de 2016. Muito se comentou sobre ele – imprensa, clubes, jogadores. Afinal, ele poderia mudar a classificação final do Campeonato Brasileiro de 2016. O que pouca gente sabe sobre o caso do zagueiro Victor Ramos é que não houve sequer um julgamento.
Resumindo a questão. O caso trata basicamente de uma alegada inegibilidade do zagueiro Victor Ramos para participar do Campeonato Brasileiro de 2016 pelo Vitória.
O problema seria a inscrição irregular do zagueiro.
Victor estava registrado pelo Monterrey, do México, quando foi emprestado em 2015 para o Palmeiras. O empréstimo se tornou válido com a confirmação do ITC (o certificado internacional de transferência exigido pela FIFA) da federação mexicana para a CBF.
Porém, antes do fim do acordo com o Palmeiras, o Vitória acertou com o Monterrey um novo empréstimo para contar com o zagueiro em 2016. O acerto foi celebrado após o fim da “janela de transferências” internacional de atletas. Ou seja, aquele ITC permaneceu no Brasil, não retornando ao México na saída do jogador do Palmeiras.
A CBF considerou a transferência como sendo nacional, portanto, válida. O Bahia, adversário do Vitória no futebol baiano, entendeu que a transferência era internacional, já que o vínculo principal continuava com o time mexicano, e entrou com pedido no STJD de inscrição irregular do jogador no estadual. A entidade não levou o caso adiante e arquivou processo sem julgamento de mérito.
Em 1° de dezembro de 2016, o Internacional enviou notícia de infração à Procuradoria Geral do STJD. Ele pediu para fazer parte no processo do Bahia para investigar essas supostas irregularidades na inscrição do zagueiro. O clube gaúcho queria que o tribunal reabrisse o caso para punir o clube baiano com a perda de pontos nas partidas em que o zagueiro havia atuado no Campeonato Brasileiro. Se Victor Ramos estivesse mesmo irregular e o clube baiano fosse punido, o Internacional escaparia do rebaixamento.
O Internacional alegava justamente que a transferência de Victor Ramos não cumpria as normas do Transfer Matching System (TMS), que regulamentam as transferências internacionais no futebol.
Uma semana depois, o STJD arquivou o pedido do Internacional alegando que não havia provas de que a inscrição era irregular. E mais, no dia seguinte, a CBF enviou um ofício ao STJD afirmando que os documentos usados pelo clube no processo eram adulterados (mais tarde a Justiça comum comprovou que o Internacional não adulterou os documentos).
O Internacional garantiu a autenticidade dos documentos e entrou com um pedido de reexame do caso no STJD. Dessa vez foi o procurador-geral do STJD, Felipe Bevilacqua, que decidiu arquivar a notícia de infração e não abriu processo.
Portanto, não houve apreciação e julgamento de mérito pelo STJD do pedido do Bahia/Internacional sobre a inscrição do zagueiro. Isso é fundamental para entender por que esse é um caso sem julgamento.
Sem caminhos jurídicos no Brasil, o Internacional decidiu levar o caso para a Corte Arbitral do Esporte, o CAS/TAS, que fica em Lausanne, na Suíça.
O Internacional usou o art. 58, parágrafo primeiro, do Estatuto da Fifa para defender a jurisdição do CAS, já que ele seria parte integrante dos regulamentos da CBF. Assim, a Corte Arbitral funcionaria como uma espécie de instância recursal contra decisões proferidas pelo STJD.
Além disso, o clube gaúcho argumentou que decisões proferidas pelo procurador-geral do STJD não estão sujeitas a nenhuma apelação no ordenamento brasileiro e, portanto, seriam, de acordo com o Código do CAS, no art. R47, uma decisão a ser avaliada pelo CAS.
Já a CBF e o Vitória tiveram como tese principal de defesa o argumento de que o “arquivamento” do procurador do STJD não poderia ser entendido como decisão do STJD. Portanto, não poderia ser possível uma avaliação do Tribunal Arbitral.
O artigo 136 do CBJD prevê possibilidade de apelação contra decisões proferidas pelo “Tribunal Pleno do STJD” se assim dispuser o regulamento internacional. Esse artigo NÃO fala em decisões do procurador-geral do STJD.
O caso foi analisado pelo CAS no dia 4 de abril de 2017. Às margens do lago Léman, e com os Alpes suíços como cenário, o Painel do CAS decidiu o futuro do campeonato brasileiro, que estava prestes a começar.
O Painel entendeu que, por força desse artigo 136 do CBJD, ele poderia analisar questões proferidas por órgãos judicantes brasileiros. Esses estavam elencados no art. 3 do mesmo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (quais sejam, comissões disciplinares, TJDs, STJD)
Portanto, concluiu o CAS que apelações contra decisões do procurador do STJD não eram contempladas pela legislação brasileira. Assim, o CAS não poderia apreciar o caso do zagueiro Victor Ramos, já que não havia previsão inserida pela CBF em seu estatuto ou regulamento que admitisse tal possibilidade.
Ou seja, o CAS disse que não tinha competência para julgar e rejeitou o pedido do Internacional sem analisar o mérito.
Resumindo: Bahia e Internacional apresentaram um caso de um possível erro de inscrição de atleta pela CBF. O STJD não quis levar o pedido adiante e julgar o mérito, alegando inclusive falsificação de documento (que a própria Justiça mais tarde disse não haver). O clube gaúcho apelou ao CAS, que também não julgou alegando não ter competência para isso.
O caso Victor Ramos é o legítimo julgamento do futebol brasileiro que foi sem nunca ter sido.
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Foto: Blasting News.