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Caso Wallace, ou a ética do justiçamento

Por Pitágoras Dytz

Há pouco mais de uma semana, o jogador de voleibol Wallace Leandro de Souza replicou uma postagem em rede social na qual constava uma enquete em que se questionava quem estaria disposto a atirar no atual Presidente da República, tudo acompanhado da imagem deuma arma de grosso calibre, não deixando margem para especulações quanto à conotação que queria dar à mensagem.

Como era de se esperar – e que bom que continue sendo assim – a indignação pública foi geral e mesmo com a quase imediata exclusão da postagem, o reconhecimento público do erro e a correspondente retratação, o atleta, campeão olímpico com a Seleção Brasileira masculina, viu seu nome inscrito numa representação, apresentada pela Advocacia-Geral da União, à Confederação Brasileira de Voleibol [e ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Voleibol] e ao Comitê de Ética do Comitê Olímpico do Brasil.

Na representação – cuja solicitação alguns veículos de imprensa dizem ter partido da Ministra do Esporte, outros, do da Justiça – a AGU afirma que a ação do atletaconfiguraria clara incitação à violência contra o atual mandatário, contrariando assim disposições do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD, representando, outrossim, infração ética, apta a legitimar a atuação do órgão responsável pela pauta deontológico-esportiva dentro do COB. Frente a tais circunstâncias, o órgão de representação da União requereu à Confederação a aplicação das sanções desportivas correspondentes – censura, suspensão e multa, e, ao Comitê de Ética, aaplicação de multa e o banimento do esporte, pena máxima em termos de sancionamento na esfera esportiva, o velho e conhecido ostracismo.

Recebida a representação, e como também era de se esperar, a CBV logo deu curso a ela, encaminhando a questão à Procuradoria-Geral do STJD da modalidade que,antes de tomar qualquer decisão, respeitando o consagrado direito ao contraditório, abriu prazo para que o representado apresentasse seus argumentos. Já o Comitê de Ética do COB, numa velocidade de fazer inveja aos velozes pés de Aquiles, invocando uma idílica figura deum atletaque, desde a Antiguidade Clássica, seria o portador dos valores esportivos redivivos no espírito olímpico coubertiano e que, por sua posição de destaquecomo atleta olímpico, cuja conduta serviria de exemplo e exerceria “influência em toda a juventude”, deveria buscar manter um comportamento exemplar, determinou a suspensão cautelar do jogador “de TODAS as atividades esportivas do sistema COB – consequentemente de suas afiliadas” até a finalização do procedimento instaurado para fins de eventual aplicação de punição que, nas palavras do relator, Des. Federal Ney Bello, não pode “minimizar atos dessa natureza”, sob pena, segundo ele,de implicar “não apenas uma omissão impiedosa na defesa da racionalidade, como também sinaliza[riam] equivocadamente no sentido da normalização do absurdo, permitindo que atos se repitam e que o caos se instaure”.

Esses os fatos tornados públicos até o momento em que este texto, opinativo, é escrito.

Em circunstâncias como estas, em que temos a materialidade e a autoria da infração comprovadas, com confissão, arrependimento e tudo mais para completar o cenário, é tentador já se pronunciar a sentença e executá-la o mais rápido possível, pois por isso clama a opinião pública, a ser satisfeita em seus anseios sem maisdemoras. Sim, é tentador, e imagino o quanto mais ainda o seja em virtude do conturbado momento que atravessamos, seja em razão da projeção que o caso ganhou, especialmente porque quem figura como ameaçado da ação fatal é o Presidente da República.

Porém, o Direito, e o jurista, especialmente o que compõe colegiados incumbidos de julgar e decidir sobre os destinos de cidadãos, não pode se deixar levar pela vontade da turba ensandecida e sedenta de sangue, não pode sucumbir à ânsia do revanchismo e da pura e abjeta vingança. Deixar-se vencer por essa vontade, às vezes recôndita e inconfessa, é justiçamento, não Justiça.

Porém, sem adentrar no mérito da mensagem proferida ou reproduzida, seu contexto ou as condições pessoais de seu emissor, nem tampouco buscandominimizar o que foi dito ou exculpar mensagem e mensageiro, principalmente para que o arbítrio e a barbárie não se banalizem, olhando a questão mais de perto e com pouco esforço, confesso que me deparo com uma série de percepções que trazem dúvidas quanto à efetiva lisura do procedimento tal como vem sendo conduzido perante o Comitê de Ética do COB, lançando-o numa zona cinzenta que só tende a manchar a futura decisão. E essas dúvidas à Machado de Assis ganham especial relevo quando nos deparamos com a circunstância de que o relator do caso no Comitê de Ética do COB é homem das letras jurídicas, de quem se espera, ainda que apenas no plano do idílio, o devido conhecimento dos cânones do Direito, a começar pelo necessário respeito às regras inerentes ao devido processo legal, garantia que a todos assiste em qualquer instância, judicial ou administrativa, conforme previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, pedra de toque do Estado Democrático de Direito.  

Pelo curto espaço de que disponho, me volto principalmente àquelas questões antes levantadas, formais sim, mas de grande relevância quando se está diante de uma situação envolvendo um ataque subjacente às liberdades civis e políticas tanto da vítima da provocação gratuita quanto do acusado, mas principalmente quando o julgamento se dá no campo deontológico, quadra na qual onde vale a máxima de que à mulher de César não basta ser honesta, ela deve também parecer honesta. Não basta, pois, apenas ser justo; é essencial ser, ou, ao menos, parecer ser, estritamente correto desde o início.    

Mas saiamos das divagações e entremos no mundo dos fatos para que, assim como se deseja de um julgamento dessa natureza, tudo esteja às claras.

A primeira questão que chama a atenção nesse caso é quanto à competência, elemento essencial para a lisura do julgamento. Sem o devido respeito à regra do juiz natural, não há julgamento justo.

Segundo o art. 12 do Regimento Interno do Comitê de Ética do COB, havendo uma representação ao colegiado, após a devida autuação, compete ao seu presidente sortear, mediante rodízio, um conselheiro relator, o qual, ainda segundo esse dispositivo, e como é de se esperar num julgamento regular, deverá abrir prazo para defesa do representado; aberto o prazo, de 5 dias, os autos voltam para uma análise prévia do relator, tenha o representado se manifestado ou não. Por seu turno, o caput do art. 13 do mesmo Regimento Interno prevê que após a análise do relator, o Conselho deliberará pela admissibilidade ou não da representação, determinando a realização de investigação e coleta de provas, ou arquivando-a liminarmente, e o § 1º do mesmo artigo estabelece taxativamente que, uma vez admitida a representação, competirá ao Conselho, e apenas em casos excepcionais, suspender, cautelarmente, o representado e pelo prazo máximo de 30 dias, prorrogáveis, apenas uma vez, por mais trinta.

Ou seja, os arts. 12 e 13 do Regimento do Comitê de Ética do COB, a sua “Constituição”, estabelece um procedimento estrito e específico para casos como o da famigerada postagem, não deixando margens ao alvedrio, ou à sanha decisória, de quem quer que seja. E, o que é mais grave: nenhum desses dispositivos confere ao relator o poder de, monocraticamente, e sem a oitiva do representado – que, pela própria leitura da decisão, que não traz qualquer menção à apresentação de esclarecimentos e/ou defesa por parte dele, exarar qualquer decisão. Tal competência, ou poder, é conferido apenas ao órgão colegiado, leia-se: o Conselho. Se assim o é, resta evidente que ao impor a suspensão cautelar, o relator usurpou uma competência própria e exclusiva do Conselho, o que macula o procedimento desde o início, com a agravante, smj, de que o fez sem nem ter oportunizado a manifestação prévia do atleta, tal como previsto no art. 12, dispositivo que nada mais faz do que expressar a propalada garantia constitucional ao devido processo legal!  

E, à vista de uma regra procedimental específica, não vale a invocação do poder geral de cautela conferido aos julgadores, exceto se para justificar a inobservância da regra.

Outro ponto que merece atenção se relaciona com a regra insculpida no § 2º do art. 48 da Lei Pelé, que estabelece que as penalidades de suspensão, desfiliação ou desvinculação previstas nos incisos IV e V do caput – essas últimas aplicáveis apenas às pessoas jurídicas,somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva.

Partindo-se da premissa de que é inegável que a pena de banimento do esporte – prevista no art. 57 do Código de Conduta Ética do COB, e que, à luz da alínea ‘d’ do inc. XLVII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, e do § 5º do art. 50 da Lei Pelé, de compatibilidade constitucional e legal bastante duvidosatem as mesmas características das de desfiliação ou desvinculação de que falam os incisos do art. 48 da Lei Pelée com elas se equipara, eis que se destinam a situações semelhantes e têm os mesmos efeitos, reclamando, portanto, idêntico tratamento jurídicoa inarredável conclusão a que se chega é que o processamento do feito no âmbito do Comitê de Ética do COB não apenas é incabível neste momento, pois extemporâneo, como deve ser suspenso até que haja uma decisão definitiva por parte da Justiça Desportiva competente, o que, no presente caso, pode envolver inclusive o Tribunal Arbitral do Esporte, além de também ir de encontro a expressa disposição legal, causando prejuízos ao atleta, eis que, com a suspensão imposta – outro ponto que merece atenção pela aparente desproporção entre meios e fins: o que ela protege ou assegura afinal? – a estender-se até o fim do procedimento, que, como visto, pode chegar até o TAS, o atleta não pode exercer sua profissão. Ao fim e ao cabo, somente após a decisão da Justiça Desportiva é que o julgamento no Comitê de Ética do COB, e a aplicação de qualquer sanção, mesmo em caráter cautelar, poderá ter sequência, sob pena de nulidade, inclusive declarada pelo Poder Judiciário.

Compreendo o afã, inclusive coletivo, de se fazer Justiça, a reverberar Anatole France no seu soberbo Os deuses têm sede, mas não se pode, mesmo sob a justificativaum tanto messiânica, convenhamos – de querer dar uma resposta dura, exemplar e sem demora, digna dos melhores e mais aguerridos defensores do prosopopaico Estado Democrático de Direito, esvaziar as garantias que lhe animam e sustentam nos muitos embates pela sobrevivência.

Embora estejamos vendo muitas coisas que nos arrastam numa viagem para o passado (sombrio) dasépocas marcadas pela selvageria e incivilidade, aqueles que ainda conservam a parcimônia no julgamento e o respeito às instituições, inclusive e especialmente às criações do Direito, não podem se entregar, e logo àprimeira nota do canto das sereias, e jogar-se ao mar da insensatez e do justiçamento como se Justiça fosse. Que a punição merecida venha, mas que seja imposta respeitando-se os cânones do Estado Democrático de Direito, não olvidando o ensinamento de Montaigne, de que aquele que castiga quando está irritado, não corrige, vinga-se.

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Pitágoras Dytz. Escritor. Advogado da União desde 2009. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito pela UFRGS. Pós- graduado, latu sensu, em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/Uniderp. Membro da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Esporte de 2011-2016. Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte de 2013-2016. Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal da Advocacia-Geral da União, 2016-2018. Auditor do STJD/Voleibol de 2016-2020. É membro da Secretaria de Análise de Atos Normativos da Advocacia-Geral da União. Professor de Direito Desportivo.

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