Crédito foto: Diego Matheus/Tumulto Comunicação
Por João Pedro Leite
Ao escutar a história de um jovem atleta, ainda menor de idade, que já conta com uma legião de fãs em suas redes sociais, bem como alimentação balanceada, rotina de treinamentos e acesso à educação e à saúde de qualidade, provavelmente o interlocutor suspeitaria que se trata de um promissor atleta de futebol. No entanto, no lugar da chuteira e da bola, o jovem em questão utiliza fones de ouvido, mouse ou até mesmo um celular como seu instrumento de trabalho. Trata-se, na verdade, de um talento dos esportes eletrônicos.
Nesta seara, destaca-se o sucesso recente do Free Fire, jogo mobile na categoria battle royale[1] que atraiu muitos atletas jovens de diferentes localidades e formações. Isso porque o título rompeu a barreira econômica através do acesso democrático – disponível para grande parte dos celulares presentes no mercado – e assistiu várias equipes profissionais se formarem, números de audiência explodirem e alcance de redes sociais superar até grandes clubes de futebol[2]. Vale ressaltar, no entanto, que esta é apenas uma das categorias responsáveis por atrair inúmeros jovens atletas neste setor.
Iniciativa que corrobora este cenário é a do projeto AfroGames, idealizado pelo AfroReggae e inaugurado dentro de uma favela em Vigário Geral no Rio de Janeiro. Busca a capacitação e a formação de jogadores da indústria de esportes eletrônicos dentro da comunidade carente[3], de forma a permitir a maior participação dos jovens com menor poder aquisitivo neste segmento.
O esporte sempre foi visto como o maior produtor de mobilidade social do Brasil, e agora essa realidade bate na porta dos esportes eletrônicos. Por meio do presente artigo, busca-se apresentar a profissionalização de jovens neste ambiente, bem como explorar os instrumentos jurídicos adequados e as ferramentas/desafios para proteger tanto o clube formador como o jovem atleta, incluindo críticas e sugestões aos atuais projetos de lei que buscam tratar dessa matéria.
Legislação aplicável
Em um primeiro momento, é necessário deixar claro que o enquadramento jurídico dos esports como legítimos esportes já é questão superada dentro do mercado, incluindo o exemplo internacional dos Estados Unidos, que agora possibilitam que cyber atletas retirem vistos de atletas profissionais, bem como França e Rússia, que reconhecem os esports oficial e legislativamente.
Sob o prisma nacional, destacam-se, entre as diversas possibilidades, os seguintes fatores: (i) preceitos constitucionais e iniciativa legislativa na propositura de projeto de lei para regulamentar os esports; (ii) posicionamento do Ministério do Esporte sobre a incompetência para reconhecer qualquer modalidade como esporte, sendo este viés considerado pela própria sociedade, ao dizer que o esporte é um direito social; (iii) a definição dos especialistas da área de esporte e educação física sobre esporte; (iv) o próprio modus operandi e estruturação dos esports na sociedade brasileira; (v) a internalização de equipes de esports por clubes que possuem outras modalidades esportivas tradicionais; e (vi) transmissão e veiculação de torneios de esports em canais de televisão e sites esportivos, bem como existência de mercado de transferências de atletas nas competições de esports[4].
De modo a aprofundar os desafios jurídicos enfrentados na atuação de uma categoria de base nos esportes eletrônicos, vale apresentar o tratamento jurídico permitido segundo a Lei Geral do Desporto (Lei nº 9.615/1998), também conhecida como Lei Pelé, incluindo sua espinha dorsal e as justificativas por trás de seus artigos selecionados. Em seguida, verificar as particularidades nos esportes eletrônicos, bem como os principais desdobramentos e problemáticas nas atuais discussões e projetos de lei sobre o tema.
Contrato de Formação Desportiva
É importante destacar que a categoria de base já é um tema complexo o suficiente, com inúmeras discussões, nas próprias modalidades tradicionais como o futebol, incluindo que o atual tratamento para jovens atletas foi conferido somente em 2011, por meio da alteração implementada na Lei nº 12.395.
Considerando a vedação expressa presente na Constituição Federal de 1988 para trabalho de menores de 16 anos (art. 7º, XXXIII, CF), bem como a interpretação do artigo 29 da Lei Geral do Desporto, em que se ressalta o limite mínimo de 16 anos para se firmar contratos profissionais de trabalho, apresenta-se o contrato de formação desportiva. É o instrumento jurídico adequado para cuidar de jovens atletas em formação, tanto do ponto de vista esportivo como de ser humano em desenvolvimento educacional.
Continuando a análise do artigo 29 da Lei Pelé supramencionado, verifica-se a construção pautada nos seguintes pilares do contrato de formação desportiva: instrumento destinado para atletas entre 14 e 20 anos, sem vínculo empregatício e duração ajustada entre as partes envolvidas. Ademais, confere-se ao clube o direito de firmar o primeiro contrato de trabalho desportivo profissional, bem como preferência em eventual renovação (Art. 29, § 4º, § 5º e § 7º, Lei nº 9.615/1998).
No tocante às obrigações do clube, este deve ajustar o tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta (que não pode ultrapassar quatro horas por dia) aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante, além de propiciar-lhe a matrícula escolar, com exigência de frequência e satisfatório aproveitamento (Art. 29, § 2º, f, Lei nº 9.615/1998). Ademais, deve garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar (Art. 29, § 2º, c, Lei nº 9.615/1998). Este instrumento jurídico, de acordo com o artigo 29, §4º da Lei Pelé, permite o recebimento de auxílio financeiro pelo atleta na forma de bolsa de aprendizagem, livremente pactuada entre as partes.
Tendo em vista que a garantia destas obrigações envolve elevadas cifras e não são todos os atletas que geram resultado do ponto de vista esportivo e econômico, garante-se ao clube formador uma indenização de até duzentas vezes os gastos comprovadamente efetuados com a formação do jovem caso o atleta se vincule, sob qualquer forma, a outra entidade de prática desportiva sem autorização expressa da entidade de prática desportiva formadora (Art. 29, § 5º, Lei nº 9.615/1998). Neste sentido, nos explica Álvaro Melo Filho a importância do referido mecanismo:
“(…) os gastos com a formação são compensados, parcialmente, gerando receitas apenas com alguns dos atletas formados, conquanto as despesas em que os clubes formadores incorreram servem para formar tanto os futuros jogadores profissionais, como os que nunca o serão. E, se não puder recuperar as quantias investidas na formação de jovens atletas, os clubes formadores, especialmente os pequenos clubes, ficam sem condições de reinvestir e financiar novas atividades de formação, a par de realizar uma relevante função social e educativa do desporto[5]”.
Neste diapasão, além da garantia acima, a referida indenização tem o objetivo de impedir a prática predatória entre clubes, de modo que, sem um instrumento jurídico forte o suficiente, times com maior poder aquisitivo poderiam aliciar os jogadores de base sem que o clube formador pudesse se defender. Também busca encontrar uma compensação justa considerando o trabalho do clube em valorizar o atleta e o prejuízo esportivo com a sua ausência, tendo em vista a retirada de uma peça importante do conjunto de atletas que atuam em equipe. Assim, o mecanismo de formação busca, além de garantir o desenvolvimento socioeducativo, conferir maior competividade e equilíbrio esportivo entre os agentes envolvidos.
Particularidades dos esportes eletrônicos e atual tratamento em projetos de lei
Não obstante o enquadramento do esporte eletrônico como esporte e a aplicação da Lei Geral do Desporto, vale destacar que as particularidades dos esportes eletrônicos já devem ser observadas nas atuais categorias de base. Neste sentido, a classificação indicativa de cada jogo eletrônico é um fator que deve andar em conjunto com o instrumento jurídico adequado, tendo em vista que foi planejada de forma a garantir a proteção da criança e do adolescente contra imagens e cenas que possam prejudicar a sua formação.
Ademais, outra particularidade fundamental e que merece papel de destaque são as diretrizes emitidas pelas empresas desenvolvedoras/publicadoras de jogos eletrônicos (publishers), que atuam como legítimas entidades de administração do desporto. Além de serem as únicas responsáveis/capazes de alterarem os mecanismos de funcionamento dos jogos eletrônicos, também cuidam de todo o calendário de competições, requisitos de inscrição para clubes e jogadores, bem como diretrizes da prática esportiva. Um contrato de formação de atleta celebrado hoje em dia não pode simplesmente ignorar estes fatores, uma vez que são responsáveis por conferir especificidade necessária sobre a matéria.
Contudo, nota-se que os atuais projetos de lei que buscam regulamentar os esportes eletrônicos, ao invés de implementarem estes temas, praticamente os ignoraram e pouco se falou a respeito da formação desportiva de jovens talentos nos esports. Nesta acepção, o Projeto de Lei Federal 383/2017, de autoria do senador Roberto Rocha, limitou-se a permitir a aplicação da Lei Pelé para essas modalidades, sem considerar as particularidades supracitadas. Ademais, dedicou seu texto a trazer institutos que não conversam com a realidade do esporte eletrônico, como confederações, federações e ligas associativas.
Um dos temas ausentes nos projetos e que é responsável por inúmeras críticas ao tratamento jurídico hoje disponível para as categorias de base se dá em torno da idade mínima de 14 anos supracitada, considerada tardia sob o ponto de vista de formação de jovens talentos no século da informação. Ademais, considerando as obrigações dos clubes em viabilizar acesso à educação e à saúde de qualidade, conforme acima mencionado, tal medida poderia beneficiar inúmeras crianças desamparadas pelo Estado, ainda que não se tornassem jogadoras profissionais no futuro, uma vez que as atividades de formação são desenvolvidas exclusivamente no seu tempo livre.
No entanto, os clubes que hoje optarem por investir em categorias de base para atletas com idades inferiores a 14 anos não possuem proteção expressa e garantida no ordenamento. Assim, abre-se o leque para a celebração de questionáveis instrumentos privados, que podem ser objeto de indagação no judiciário, bem como de aliciamento por outras entidades de prática esportiva e até mesmo por empresários, o que é ruim tanto para o clube formador como para o próprio jovem atleta, que muitas vezes não possui todo o respaldo jurídico necessário. Já dizia Georges Ripert: “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.
Reconhece-se que não é um procedimento de fácil mudança, tendo em vista a previsão constitucional do mínimo de 14 anos (art. 7º, XXXIII, CF), no entanto um movimento legislativo coordenado com o setor e suas reais necessidades é capaz de executar tal tarefa. Um exemplo de exceção à regra acima pode ser ilustrado através da classe artística, que, com base no Decreto nº 4.134/2002, responsável por promulgar a Convenção nº 138 e a Recomendação nº 146 da OIT (Organização Mundial do Trabalho), permitiu a participação de menores de 14 anos em atividades artísticas, incluindo apresentações musicais, teatros etc., sempre ressaltando a preocupação com a saúde e o bem-estar da criança e do adolescente envolvidos nestas atividades.
Uma conquista neste sentido nos esportes eletrônicos poderia servir, inclusive, como modelo às modalidades tradicionais, que também se encontram desprotegidas em idades anteriores à supramencionada, mesmo com a previsão expressa do mecanismo de solidariedade da FIFA para atletas de 12 aos 23 anos no futebol, por exemplo.
Conclusão
Ante o exposto, conclui-se que a categoria de base nos esportes eletrônicos já é realidade, de modo que os esports representam uma nova alternativa de formação profissional e humana de jovens atletas, considerando o seu caráter transformador para o jovem e para toda a sua família.
Aplica-se hoje o tratamento conferido na Lei Pelé para os atletas entre 14 e 20 anos e sujeitos ao regime de formação desportiva, sem olvidar das particularidades conferidas por meio das publishers e de sua própria natureza, no papel de entidades de administração do desporto. Não obstante, as regras do jogo ficariam ainda mais claras se os legisladores se preocupassem com as questões jurídicas de fato importantes para os esportes eletrônicos e para todas as pessoas sujeitas ao seu poder transformador.
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[1] Gênero de jogo eletrônico que combina elementos de sobrevivência e exploração, incluindo busca por equipamentos e armas. Geralmente envolve um grande número de jogadores, que iniciam a rodada com equipamentos mínimos e devem procurar armas e armaduras melhores, bem como eliminar outros oponentes enquanto evitam permanecerem fora de uma “área segura”, que encolhe gradualmente com o passar do tempo. O vencedor é o último competidor/equipe a sobreviver no jogo.
[2] TEIXEIRA, Chandy. LOUD atropela futebol e só perde para Flamengo e Corinthians em popularidade na web. Globo Esporte, 2020. Disponível em: <https://globoesporte.globo.com/esports/opiniao/blog-do-chandy/post/2020/09/09/loud-atropela-futebol-e-so-perde-para-flamengo-e-corinthians-em-popularidade-na-web.ghtml>. Acesso em 16/09/2020.
[3] PROJETO DE ESPORTS DO AFROREGGAE, AFROGAMES É INAUGURADO EM FAVELA NO RIO DE JANEIRO. Sportv, 2019. Disponível em: <https://sportv.globo.com/site/e-sportv/noticia/projeto-de-esports-do-afroreggae-afrogames-e-inaugurado-em-favela-no-rio-de-janeiro.ghtml>. Acesso em 16/09/2020.
[4] MIGUEL, Ricardo Georges Affonso. O Enquadramento Jurídico do Esporte Eletrônico. São Paulo. Quartier Latin.2019.
[5] MELO FILHO, Álvaro. Nova Lei Pelé: Impactos e avanços. Rio de Janeiro. Maquinária. 2011, p. 161.
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João Pedro Leite é advogado formado na Faculdade de Direito da USP – Largo São Fransico, especialista em Direito Desportivo e atualmente head jurídico do INTZ ESPORTS, clube que conta com mais de 70 atletas em 12 modalidades.