Por Fernando Monfardini
Eu queria muito ter escrito mais um artigo falando de situações mais práticas em termos de governança e compliance no futebol. Porém, com a possível aprovação de alguns dos Projetos de Lei sobre o Clube-empresa, surgiram diversos novos artigos que vão desde a fé cega em algum modelo, propaganda deliberada de serviços a um forçado malabarismo argumentativo para forçar falsa isenção no debate.
Por conta disso, resolvi fazer esse artigo para colocar alguns pontos do que eu penso, mas deixando claro que o que eu penso não é meramente fruto da minha cabeça, mas sim de anos de pesquisas sobre tudo que envolve a Governança no esporte.
Longe de mim querer pontuar como as pessoas deveriam se posicionar num debate, mas acho pouco produtivo essa tentativa de debater a partir do maniqueísmo. Pode ser o fruto da nossa construção social, pode ser a falta de tradição de debate ou puramente os interesses tomando conta dos diálogos. Cada um argumente da forma que lhe convir, porém, se vai defender algum posicionamento, que este seja feito com embasamento e transparência e não com bordões e frases que lembram mais os porões de um passado antidemocrático ou remodelagens de argumentos de cartolas amadores que tanto dizem combater.
O debate saudável sobre o tema deveria ser pontuado a partir de um verdadeiro diálogo sobre os modelos de gestão, partindo de um parâmetro básico de governança corporativa que todos os clubes e federações deveriam seguir, pensando em estruturas e matrizes de responsabilidades e competências, objetivos, estratégias e processos, reportes, comunicação e transparência com partes interessadas, participação de sócios ou associados no processo de tomada de decisão, mecanismos de controle (incluindo compliance), gestão de riscos, inovação, responsabilidade social e sustentabilidade.
Também deveria fazer parte do debate assuntos gerais como a falta de organização em bloco dos clubes para buscar melhorar o produto, seja com a negociação coletiva de direitos de transmissão, como também a melhoria do próprio espetáculo, venda de produtos para o exterior, fair play financeiro efetivo e sustentável e a remodelagem na estrutura de governança da própria CBF.
A partir daí a discussão seria sobre os prós e contras dos modelos de clube-empresa e clube associativo, para que cada entidade, sabendo que deve seguir um padrão de governança corporativa adequada, poder fazer a opção para alinhar seus objetivos e estratégia.
Por exemplo, nos clubes associativos, os riscos que envolvem a eleição de grupos populistas, dificuldade com grandes aportes financeiros e conflitos de interesses. Nos clubes-empresas os custos que envolvem uma transição para os modelos societários, os riscos com investidores, lavagem de dinheiro e falência.
Nós temos um largo histórico de como as associações com o modelo aristocrático padrão podem causar insucessos nos clubes, mas já existem diversas pessoas estudando o tema, disputando espaços e buscando soluções. Nos clubes-empresas também temos diversos exemplos de fracassos gigantescos, que inclusive viraram fardo para associações democráticas ficarem pagando a conta.
A diferença é que esses “cases” quase sempre eram considerados revolucionários e novo modelo de sucesso até dar errado e, quando acontecia, os defensores fingiam nunca ter defendido e colocavam a culpa nas associações, na falta de estrutura adequada ou no risco do pioneirismo. Não seria melhor calçar a sandália da humildade e de fato encarar os desafios com sinceridade, estudando os riscos e buscando soluções plausíveis antes de apoiar cegamente um processo de mudança tão grande e complexo?
Enquanto globalmente o mundo corporativo discute transformação digital, governança corporativa inserida num contexto de sustentabilidade e responsabilidade social e ambiental (ESG), gestão enxuta e métodos ágeis, o futebol brasileiro volta à década de 80 para discutir se mudar o CNPJ vai tirar o atraso dos clubes brasileiros e, magicamente, suprir as diferenças macroeconômicas, políticas e sociais do Brasil com a Europa.
Aproveito esse artigo para apelar pelo bom senso de pessoas que possuem capacidade de se comunicar em massa por meio de seus canais e pedir a eles que, ou pautem o assunto com mais embasamento e responsabilidade ou abram espaço para as pessoas que estão de fato estudando essas questões no futebol brasileiro. E digo que não são poucas, porque vejo com certa frequência debates amplo sobre o assunto, inclusive vindo de grupos políticos que disputam espaços nos clubes e defendem a democratização.
Mas muitas vezes a discussão pauta as soluções estudadas para os clubes associativos com argumentos que parecem vir diretamente da boca dos dirigentes que essas pessoas tanto criticam. Por exemplo, a insinuação que a discussão clube-empresa x associativo é algo semelhante à direita x esquerda é rasa, haja vista existência de políticos e jornalistas que se colocam no campo da esquerda que são publicamente a favor do clube-empresa,
assim como as pessoas posicionadas à direita fazem parte de grupos que defendem a democratização das associações desportivas.
Outro erro é trazer o argumento que o clube-empresa elimina os interesses políticos, como se a política saísse de qualquer ambiente da nossa sociedade. Somos seres políticos e os clubes terão de lidar com o fator político de qualquer forma, seja com um único dono lidando com diversos diretores e stakeholders, seja com uma assembleia geral de investidores ou associados.
Por isso muitos pesquisadores gastaram décadas pesquisando sobre governança corporativa, para conseguir soluções criando mecanismos para harmonizar interesses. E o que é a política se não a discussão em torno de interesses diversos? Dessa forma, penso que seria mais proveitoso gastar energia estudando como estruturar essa nova dinâmica, ao invés de apelar para um bordão falacioso de que o meio corporativo não possui o fator político.
Também é lamentável associar grupos sócios de clubes a partidos políticos. Essa associação direta me lembra bem os argumentos utilizados por cartolas que controlam os clubes por anos e querem impedir a democratização. Além disso, muitos clubes que viraram empresa eram antes controlados por pessoas ligadas a partidos políticos e uniram sua força política ao poderio econômico para se perpetuarem no controle dessas entidades.
O mesmo acontece com muitos clubes associativos que não estão democratizados e que são controlados por grupos políticos que possuem envolvimento com partidos (de direita e de esquerda) e, de forma ardilosa, esses dirigentes tentam colocar de maneira negativa esse tipo de rótulo em pessoas que buscam evoluir a estrutura associativa das entidades a partir de um modelo de governança corporativa democrática.
Se de fato pensam que o modelo societário elimina a política, ou seja, o debate, eu me pergunto, como ficará a relação entre os interesses dos torcedores e do(s) dono(s) dos clubes-empresa? É possível manter em um clube um modelo sustentável que ignore essa relação? Essa questão não deveria ser debatida para que a OPÇÃO clube-empresa tivesse mais sucesso?
Mas para aqueles que associam a política ao mal eu só tenho a lamentar e torcer para que não seja mais um dos arroubos antidemocráticos e ódio ao popular que o Brasil carrega desde a sua origem. Além disso, devo sugerir que talvez pudessem também fazer artigos e propagandas sobre como seria melhor se as prefeituras e governos do estado virassem empresas, com assembleia de investidores e conselhos de administração ao invés de câmaras legislativas.
E, bem, o Brasil poderia se transformar numa Holding e assim deixaríamos tudo bem padronizado, sem nos preocuparmos com bandeiras políticas, seja nos clubes ou nas escolas de samba.
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Fernando Monfardini é advogado, Autor do Livro Compliance no Futebol, Presidente da Comissão Especial de Compliance da OAB/ES, Professor da Especialização em Governança, Gestão de Riscos e Compliance da FDV, Especialista em Compliance, Anticorrupção e Controle da Administração Pública pela FDV e Membro do Comitê de Ética da CBTri.