O esporte está passando por uma revolução que poucos estão enxergando. Por diferentes motivos, atletas e clubes estão se mobilizando e vencendo o histórico déficit democrático, ajudando a transformar o jogo. No mundo, ainda não no Brasil.
Na semana passada, o jornal francês L’Équipe noticiou que já existe um acordo entre UEFA e clubes para uma nova Champions, com mais jogos e dinheiro para as principais equipes. A decisão veio depois que os clubes ameaçaram criar uma Superliga europeia, reunindo as principais equipes do velho continente.
Antes disso, a mobilização de atletas pelo mundo combatendo o preconceito também obrigou o esporte a adotar uma nova postura. FIFA, NFL, NBA e até o COI foram obrigados a rever as punições que aplicavam historicamente contra esses tipos de manifestações.
Seja pela defesa de direitos humanos (atletas) ou na proteção de interesses econômicos (Superliga), a cadeia associativa do esporte se viu ameaçada e precisou agir, da única maneira possível: dialogando.
Superliga ameaça monopólio FIFA
Com a possibilidade de um supercampeonato organizado pelos grandes clubes europeus, não restava outro caminho para a UEFA/FIFA que não fosse esse: negociar.
Casos recentes contra Federação Internacional de Patinação e de Natação mostram que Tribunais europeus têm protegido a livre concorrência, não aceitando as regras rígidas de exclusividade típicas do movimento esportivo. Ou seja, eles estão consolidando jurisprudência que limita os poderes das entidades que controlam os esportes,
A criação de uma Superliga ameaça o monopólio das entidades no futebol. Sabendo disso, a entidade que cuida do futebol europeu entrou em acordo com clubes e vai mudar a Champions League.
Segundo o jornal francês L’Équipe, existe um acordo entre UEFA e clubes para um campeonato com mais jogos e dinheiro para as principais equipes.
Serão 36 equipes, quatro a mais do que é hoje. A primeira fase será em pontos corridos. Depois, nas oitavas, a competição volta a ser em mata-mata. Serão 180 jogos, no lugar dos 96 na atual fórmula.
O campeonato muda por pressão dos clubes.
O Brasil viveu algo parecido lá nos anos 80, com a criação do Clube dos 13 e a consequente organização da Copa União, obrigando a CBF a dialogar com a nova entidade.
Mas ele não durou muito tempo e isso é assunto para outra coluna.
George Floyd desencadeia onda de protestos e mudanças
Com a morte do negro George Floyd por um policial branco ano passado, uma onda de protestos contra o racismo tomou conta do planeta, e o esporte quebrou um silêncio que incomodava.
Marcas, clubes, entidades esportivas e atletas se posicionaram de maneira firme contra o preconceito, entendendo o papel que têm na proteção de Direitos Humanos.
Isso obrigou entidades esportivas a mudar postura em relação a esses movimentos.
A FIFA orientou suas entidades filiadas a não punir atletas que se manifestarem contra o racismo, como aconteceu na Alemanha. As regras do jogo proíbem manifestações políticas em campo. Mas, nesse caso, a entidade faz uma leitura mais ampla da regra, entendendo que a proteção de Direitos Humanos vai além de qualquer bandeira ideológica.
A NFL é uma Liga independente e conservadora, mas até ela se curvou pela necessidade de combater a discriminação. Em comunicado escreveu: “Estávamos errados ao não ouvir os jogadores mais cedo e a encorajá-los a falar e protestarem pacificamente. Nós, NFL, acreditamos no ‘Black Lives Matter’.
Também na onda de protestos com a morte de Floyd, atletas da NBA fizeram uma paralisação histórica, obrigando a Liga a adotar o combate ao racismo entre outras reivindicações sociais.
Até o Comitê Olímpico teve que ceder, e já esta debatendo com atletas a Regra 50 (ela proíbe manifestações políticas em eventos esportivos).
A importância do esporte como vetor de desenvolvimento da paz, igualdade e respeito às diferenças é reconhecida dentro do arcabouço institucional do movimento esportivo.
A própria Carta Olímpica estabelece que o objetivo do Movimento Olímpico é contribuir para a construção de um mundo melhor e pacífico por meio da educação dos jovens por via do desporto, praticado de acordo com o Olimpismo e os seus valores.
Veja, os Princípios Fundamentais 2 e 4 dessa Carta determinam como como base do Olimpismo o respeito à dignidade humana e a não discriminação em função de raça, cor, credo, sexo.
Além disso, tratados universais como o Tratado de Roma promovem direitos iguais e repudiam qualquer tipo de discriminação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos já começa dispondo que “todos os homens devem ser iguais em dignidade e direitos”.
É como se a Regra 50 fosse “inconstitucional”. Ela não está de acordo com os princípios fundamentais do esporte. Proteger direitos humanos é da natureza do esporte, ele integra e não exclui. E precisa ser uma bandeira de quem o pratica também.
Mobilização gera mudança
É fundamental, como venho escrevendo aqui, ter uma leitura mais elástica dos ordenamentos esportivos e entender que direitos humanos não são questões político/partidárias, e que pedidos pacíficos por igualdade não podem ser punidos.
Os fatos recentes comprovam uma realidade histórica da sociedade. Tensão gera mudança, de fora para dentro. Mobilizados, atletas e clubes mostraram a força que muitos ainda desconhecem ter.
O esporte se organiza dentro de cadeias associativas. A adesão de todos às regras é o que garante uma estabilidade jurídica a esses movimentos.
E, claro, que atletas e clubes fazem parte da cadeia associativa. E, por isso, precisam ter voz nas discussões, inclusive sobre regras e fórmulas de campeonatos.
Os casos da “Superliga Europeia” e do “George Floyd” provocaram irritações nesse sistema, obrigando as entidades esportivas a dialogar até como forma de sobreviver.
O ‘déficit democrático’, como bem definiu o professor e colunista do Lei em Campo Wladimyr Camargos, existe, principalmente no Brasil. Mas ele está sendo vencido.
E as conquistam dessa democratização do movimento esportivo prometem ser históricas.
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