A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol (CNRD/CBF) foi instituída com o objetivo de permitir maior acesso dos entes e pessoas naturais federadas a um julgamento especializado e em conformidade com as nuances da modalidade desportiva – futebol. Também foi constituído para garantir um processamento mais célere, viável e equânime aos chamados “submetidos” ou “sob jurisdição da CBF” (arts. 1o, 2o e 3o do regulamento da CNRD/2021).
Entre os “submetidos” à CNRD/CBF estão os atletas profissionais que podem levar, via procedimento ordinário (arts. 11 e 12 do regulamento CNRD/2021), querelas de natureza trabalhista, ou seja, conflitos laborais que violam as normas de Direito do Trabalho, de competência material originária da Justiça do Trabalho, passíveis de benefícios da justiça gratuita quando os jogadores são hipossuficientes.
Pode-se até questionar a constitucionalidade ou o método extrajudicial da CNRD/CBF para perimir dissídios individuais trabalhistas, decidir sobre verbas enquanto direitos patrimoniais indisponíveis, até mesmo diante dos permissivos arts. 90-C da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé) e 507-A da CLT. Tema muito bem discutido nos capítulos 10 e 23 do livro “Curso de Direito do Trabalho Desportivo, Editora Juspodivm, 2021”. Porém, esta discussão não é o principal foco desta coluna.
Segundo o art. 790, § 3o, da CLT, aqueles atletas que recebem o salário de até 40% do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social são considerados hipossuficientes para reberem a requerimento ou de ofício os benefícios de justiça gratuita. No máximo, ao ajuizar ação no Poder Judiciário Trabalhista, caso os jogadores sejam hipossuficientes, quitam honorários sucumbenciais, mas não as custas processuais.
O referido dispostitivo 790, § 3o, da CLT, ainda contém uma redação de margem à interpretação do magistrado laboral quanto à questão de hipossuficiência, pois para a concessão ex officio da justiça gratuita, como visto acima, ele analisa diretamente o valor salarial exposto no parágrafo anterior, mas ainda pode considerar como hipossuficiente o atleta que recebe acima dos 40% do maior benefício do Regime Geral de Previdência Social, concedendo os benefícios da justiça gratuita para demandar nas instâncias da Justiça do Trabalho.
O ponto nevrálgico se encontra em derredor do regulamento e o regimento de custas da CNRD/CBF que não prevê justiça gratuita para os atletas hipossuficientes. Há a possibilidade de pedir o parcelamento da chamada taxa de administração (custas) ou de quitá-la somente depois da primeira manifestação do requerido quando não houver convenção de arbitragem elegendo a CNRD/CBF (art. 11, § 3°, do regulamento da CNRD/2021), mas inexiste os benefícios de sua isenção.
Esta falta de benefícios de justiça gratuita aos jogadores hipossuficientes se configura um erro crasso do regulamento e regimento interno da CNRD/CBF. A começar pela falta de paralelismo normativo-federativo e jurídico, na medida em que no âmbito internacional, quaisquer atletas, sem nenhuma necessidade de demonstrar hipossuficiência, possuem gratuidade nos procedimentos de mediação e da Dispute Resolution Chamber da Fédération Internationale de Football Association (DRC/FIFA) – gratuidade de custas expressa nos arts. 25/1 e 26/2 do Procedural Rules Governing The Football Tribunal/2021:
Art. 25/1. Procedures are free of charge where at least one of the parties is a player, coach, football agent, or match agent.
Art. 26/2. Mediation is a voluntary process and free of charge. It shall be conducted in accordance with the general principles of the CAS Mediation Rules and through the mediators recognised by a list approved by the FIFA general secretariat.
Nesse esteio, a falta de gratuidade de custas nas instâncias da CNRD/CBF para atletas hipossuficientes, envolvendo demandas laborais, viola o ordenamento jurídico brasileiro e fricciona o paralelismo ou simetria das fórmulas do sistema federativo do futebol, tendo em vista que até no sistema internacional da FIFA é possível demandar perante a DRC sem pagamento de custas nos dissídios trabalhistas.
Ademais, para atletas que detêm pouco poder negocial e vulnerabilidade remuneratória (hipossuficientes), constitui-se completamente inconstitucional querer forçá-los por cláusulas compromissórias ou compromissos arbitrais às instâncias da CNRD/CBF de maneira a cobrar-lhes as custas, pois é cediço que esses tipos de cláusulas inseridas no Contrato Especial de Trabalho Desportivo (CETD) são de adesão e os jogadores aderem a elas sem nenhuma consciência que podem ser prejudicados quando necessitarem reaver seus direitos trabalhistas – cláusulas vedatórias de acesso ao Poder Judiciário Laboral, violadoras dos arts. 5o, XXXV, LIV, LV, 114, da CF/88.
Por outro lado, inexistindo cláusula compromissória ou compromisso arbitral diante do CETD do atleta, nas condições estabelecidas pelos arts. 90-C da Lei Pelé e 507-A da CLT, ou ainda, existindo vício de consentimento em adesão imposta ao jogador por via de cláusulas contratuais do CETD, não os pode vedar de ajuizamento de demanda diretamente na Jusiça do Trabalho. É o que dispõe o próprio art. 3o, parágrafo único, do regulamento 2021 da CNRD/CBF.
Por demais, já se posicionou em uma leitura conjugal dos arts. 90-C da Lei Pelé e 507-A da CLT, em face das teorias do conglobamento mitigado e do diálogo das fontes, que apenas os jogadores com salários superiores a duas vezes o maior benefício do Regime Geral de Previdência social são quem podem consentir de verdade (não de mentira – por adesão) às clausulas compromissórias ou compromissos arbitrais para levar seus dissídios individuais trabalhistas à CNRD/CBF (capítulo 23 do livro “Curso de Direito do Trabalho Desportivo, Editora Juspodivm, 2021”).
Em síntese, o regulamento e o regimento de custas da CNRD/CBF deve se adequar ao sistema de benefícios de justiça gratuita para os jogadores, treinadores e membros de comissão técnica hipossuficientes, sob pena de continuar transgredindo ordenamento jurídico brasileiro, a lógica piramidal do sistema federativo do futebol e o direito de acesso ao Poder Judiciário Trabalhista.
Ao prosseguir sem o benefício de custas gratuitas em seus procedimentos, a CNRD/CBF incentiva a predileção dos atletas hipossuficientes (aproximadamente 86% da classe) a ajuizar demandas laborais na Justiça do Trabalho e com o passar do tempo esquecerem das instâncias da CNRD/CBF, pois imagine um jogador que sofre rescisão indireta por inadimplemento salarial (arts. 28, § 5o, III, 31, da Lei Pelé) ou por qualquer outro motivo (art. 28, § 5o, IV, da Lei Pelé) ter que despender recursos próprios para pleitear seus direitos trabalhistas perante a CNRD/CBF. Certamente, o atleta preferirá o acesso gratuito ao Poder Judiciário Trabalhista e é por isso que a adesão arbitral por cláusulas em CETD tenderá a se afigurar vício de consentimento, salvo em raras exceções.
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