O esporte está ligado a uma política universal de direitos humanos. E só não enxerga isso quem não acompanha o mundo. As entidades esportivas estreitaram a dobradinha direitos humanos / esporte, muito em função das pressões externas, de decisões judiciais e do engajamento de atletas. A Olimpíada de Sochi traz um ótimo exemplo de como essas irritações ao sistema podem provocar transformações no movimento esportivo.
Os jogos de Sochi foram marcados por um grande movimento que desencadeou uma mudança importantíssima na Carta Olímpica, uma espécie de Constituição do movimento olímpico. E ela foi desencadeada um ano antes, quando o parlamento russo aprovou uma lei que tornou ilegal a veiculação a menores de propagandas que continham relacionamento sexuais “não convencionais”. Ela ficou conhecida como “lei antigay“.
A reação foi imediata. Coletivos de proteção de direitos humanos, da comunidade LGBT e atletas de várias partes do mundo se posicionaram contra a lei.
A preocupação dos atletas era de como seriam recebidos no país. Mas não só isso. Eles entendiam ser importante também se posicionar contra ‘uma violência real e na intimidação que a comunidade LGBT russa vive”, disse Brian Ellner, membro da diretoria da Athlete Ally, ao New York Times à época.
O movimento cresceu, e até se cogitou a possibilidade de um grande boicote aos jogos de inverno na Rússia. Eu estava em Sóchi cobrindo as Olimpíadas e o clima de tensão era permanente. Havia risco de protestos em vários lugares, inclusive dentro das arenas esportivas.
Em resposta a esse movimento, o presidente Vladimyr Putin afirmou que os estrangeiros deveriam respeitar “a cultura russa”. Na mesma linha a supercampeã Yelena Isinbayeva argumentou que “as pessoas deveriam seguir as leis dos outros países quando estiverem na condição de convidados”.
Com o risco de protestos, o Comitê Olímpico se viu numa situação difícil. Ele não se posicionava contra a Lei, mas também entendia o tamanho da pressão externa e dos atletas. Manifestações durante as competições poderiam levar a aplicação da regra 50 da Carta Olímpica, que veda manifestações de cunho político, religioso ou racial nas instalações olímpicas.
A saída do COI foi delimitar áreas de protesto fora dos locais de competição.
Mas isso foi muito pouco. A pressão continuou.
Com o apoio de diversos atletas, as organizações All Out e Athlete Ally organizaram a campanha, batizada de “Princípio 6”. Para acrescentar ao sexto princípio do Olimpismo – que veda discriminação – a expressão “orientação sexual”.
Em artigos vermelhos, como camisas, cuecas e casacos, membros de coletivos e atletas mostravam o texto da Carta Olímpica.
– O esporte não discrimina em termos de raça, religião, política, gênero ou outros.
O COI cedeu.
Um pouco depois dos jogos, o Comitê alterou o sexto princípio acrescentando a expressão “orientação sexual “. E mais, colocou uma cláusula antidiscriminação nos contratos a serem celebrados com os países que sediarão os próximos jogos olímpicos.
Como escreveu Vinícius Calixto no ótimo livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos”, “a realização de um grande evento esportivo serviu como vetor para que atores nas esferas nacionais , supranacionais, internacionais e transnacionais provocassem irritações no ordenamento jurídico russo”. E também dentro da cadeia esportiva.
A verdade é que o esporte vive uma grande transformação. Com coletivos globais, engajamento de atletas e posicionamento de cortes judiciais acelerando mudanças necessárias. Além disso, essa necessidade de se acompanhar normas de direitos humanos vem de um processo crescente de cobrança por maior transparência, práticas de boa governança e compliance dentro do próprio movimento esportivo.
O caso da Rússia é mais um exemplo. Se o esporte não enxergar as demandas que a sociedade impõe, seu sistema corre risco de colapso. E cada vez mais atletas e sociedade civil, com a força que tem, estão entendendo que têm forças para participar dessas transformações necessárias.
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