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Como fazer leis sem Parlamento nem povo

Nesta minha incursão acerca da vida e influências sofridas por João Lyra Filho, o pai fundador do Direito Esportivo brasileiro, já mostrei que há uma relação direta entre a ascensão de Getúlio Vargas ao poder e o surgimento de novo ramo jurídico em nosso país.

Lyra Filho era o mais destacado gestor federal da área esportiva a partir dos anos 1940, auge do Estado Novo.

Também já mostrei nas colunas anteriores que as influências filosóficas do regime varguista e de João Lyra Filho se assentavam muito nos estudos de Oliveira Vianna, em sua culturologia e na tese do “insolidarismo social”.

E o que Vianna escreveu acerca do Direito Esportivo? Há uma passagem tão célebre na obra do autor sobre nossa área que Lyra Filho a ela deu destaque no seu principal livro, “Introdução ao Direito Desportivo”, de 1952. O trecho é justamente o que reproduzo abaixo:

Há, por exemplo, um largo setor do nosso direito privado que é inteiramente costumeiro, de pura criação popular, mas que é obedecido como se fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero me referir ao direito que chamo esportivo e que só agora começa a ser “anexado” pelo Estado e reconhecido por lei. Este direito, cuja Charta (para empregar uma expressão de Malinowski) se estende pelo Brasil inteiro, é de autêntica realização popular e é aplicado com um rigor que muito direito escrito não possui. Organizou instituições suas, peculiares, que velam pela regularidade e exação dos seus preceitos. Tem uma organização também própria – de clubes, sindicatos, federações, confederações, cada qual com administração regular, de tipo eletivo e democrático; e um Código Penal seu, com a sua justiça vigilante e os seus recursos, agravos e apelações, obedecidos uns e outros, na sua atividade legislativa ou repressiva, como se tivessem ao seu lado o poder do Estado. Direito vivo, pois.

Dominados pela preocupação do direito escrito e não vendo nada mais além da lei, os nossos juristas esquecem este vasto submundo do direito

costumeiro do nosso povo, de cuja capacidade criadora o direito esportivo é um dos mais belos exemplos. Criadora e organizadora – porque o sistema de instituições sociais que servem aos esportes, saídas do seio do povo – da massa urbana, como uma emanação sua – traz impressa a sua marca indelével e oferece um aspecto de esplêndida sistematização institucional. (Oliveira Vianna, Francisco José. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999, p. 45) [grifei]

Eu sempre me vejo admirado quando leio esta fantástica visão de Oliveira Vianna acerca do Direito Esportivo. Já citei em discursos, reproduzi em minha tese de doutorado e até nos meus livros. É de uma sensibilidade científica ímpar. Ainda que confunda o que denominamos hoje por “pluralismo jurídico” – enquanto admissão de uma multiplicidade de fontes jurídicas, inclusive advindas de sistemas não estatais – com direito costumeiro, o jurista fluminense entendeu perfeitamente a peculiaridade do Direito Esportivo: um sistema jurídico autônomo e que surgiu e se manteve sem a interferência do Estado até então.

Observe que, nas partes que destaquei no texto, o autor se preocupa em mostrar que se trata de um direito de “pura criação popular”. Ele visualizava o Direito Esportivo como uma realização do “povo-massa”, uma emanação própria da “massa urbana”, um “Direito Vivo” fruto da “capacidade criadora do povo” e renegado pelos juristas daquele tempo.

Lembre-se de que estamos falando de um livro de teoria política, mas que tem um capítulo próprio somente para a análise desse fenômeno popular, o Direito Esportivo, assim intitulado na obra: “Setores costumeiros do nosso direito. O nosso direito esportivo: suas regras e instituições.” Esse Capítulo II aparece no livro antes mesmo da parte em que ele se dedica ao estudo do Direito do Trabalho, sua área de atuação acadêmica e governamental.

Por que tanta ênfase em Direito Esportivo e na palavra “povo”, em encarar nossa área como um fenômeno elucidativo da criação popular?

Recorda-se de que Oliveira Vianna defendia a tese do “insolidarismo social” do brasileiro? Que o cidadão brasileiro, para ele, não estava apto a viver em um regime democrático, por inaptidão histórica e até de formação biológica? Clara defesa do eugenismo?

Mas por que então sua defesa da participação popular na gênese e manutenção de um direito autônomo ao Estado? Por que essa homenagem à “capacidade criadora” do povo brasileiro quando trata do Direito Esportivo?

O contraste viannista entre um povo brasileiro incivilizado frente aos anglo-saxônicos, eles sim, segundo ele, aptos à democracia, e a busca por um direito que emanasse diretamente desse mesmo povo brasileiro inapto à vida democrática pode ser explicado inicialmente pela adesão à escola da Jurisprudência Sociológica de Holmes.

Assim, o ideólogo do Estado Novo apregoava um distanciamento com o formalismo jurídico legado do regime liberal (op. cit, 1999, p. 386) e se aproximava da escola da “jurisprudência sociológica” holmesiana.

Oliver Wendell Holmes Jr. – o pai do Realismo Jurídico norte-americano e proeminente juiz da Suprema Corte Americana nas três primeiras décadas do mesmo séc. XX, alcunhado como o “great dissenter” – é conhecido pela célebre passagem: “A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência”.

Holmes lutava contra o formalismo jurídico, o apego ao rigor da tradição e dos precedentes. Operou as bases de uma revolução na jurisprudência estadunidense e mundial. Acreditava na experiência de vida como critério para as decisões judiciais. Liderou um movimento progressista nas ciências jurídicas.

De modo bastante distante da realidade norte-america de participação popular e de um sistema constitucional bem constituído, ainda que antes da consolidação dos direitos civis, Oliveira Vianna se apodera das ideias de Holmes tão somente para justificar a redação das leis, das normas, sem um Parlamento que funcionasse com delegação popular para este fim.

Para ele, a elaboração das normas se deslocaria das elites para a busca das tradições jurídicas do povo, como consta de seu livro já aqui citado:

Colocado, destarte, sobre a base do comportamento social o estudo cientifico do direito, ou melhor, do direito público e constitucional (restrinjo-me, neste livro, exclusivamente, a este setor da ciência jurídica), desloca-se este estudo então do domínio do direito escrito para o domínio do direito costumeiro. Daí lei para o costume. Das normas da Constituição para a tradição popular: para os usos, para as praxes, as práticas, os modos de vida do povo; em suma: para a cultura. Ou, por outras palavras: desloca-se, praticamente, das atividades ou comportamentos das elites para as atividades ou comportamentos do povo-massa. (id. ibid., p. 59)

Ora, tanto a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como a primeira Lei Geral do Esporte no Brasil foram editadas fora do Congresso Nacional (fechado durante o Estado Novo), por meio de decretos-lei do presidente da República que se baseavam em estudos realizados por comissões de especialistas que em tese falariam em nome desse povo criador das tradições jurídicas, mas, que na verdade, eram compostas em grande maioria por membros da própria elite.

O legado social de Getúlio Vargas para o Brasil é inegável, mas a forma como os problemas eram resolvidos durante Estado Novo, por vias não democráticas, sem a participação do Congresso Nacional, é uma das críticas mais contundentes ao regime.

Continuaremos a falar sobre este assunto na próxima semana. Até lá.

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