Por Igor Serrano
Nas últimas semanas, tem sido amplamente divulgado no noticiário esportivo o acordo entre Red Bull Brasil e Bragantino para transferências das atividades daquele para este. Clube tradicional do interior paulista, campeão estadual em 1990 e vice-campeão brasileiro em 1991, o Clube Atlético Bragantino disputará a segunda divisão nacional de 2019. Já a Red Bull, que além do RB Brasil, sensação do interior na atual edição do Paulistão, tem outras equipes na Alemanha, Áustria e Estados Unidos, decidiu dar um passo mais ousado no território brasileiro, pois o RB Brasil (fundado em 2007) encontra-se “sem divisão” atualmente (não se classificou para a quarta divisão de 2019).
A parceria celebrada entre as equipes promete orçamento de série A, reforma do estádio e equipe competitiva. Mas como ficarão uniforme, distintivo e hino da “nova equipe”? Mais do que isso, como será a reação/aceitação por parte de sua torcida? Diante da impossibilidade de prever o futuro, relembramos alguns casos de relações entre torcida e clube que azedaram pelo mundo após ficarem “sob nova direção”.
Portugal: CF Os Belenenses x Belenenses SAD
Em Portugal, desde a segunda metade da década de 90, é obrigatório a todo clube que deseje disputar competições profissionais de futebol constituir uma Sociedade Anônima Desportiva (SAD) ou uma Sociedade Desportiva Unipessoal Por Quotas (SDUQ), conforme Decreto-lei nº 10/2013, para gestão da modalidade. O clube de futebol Os Belenenses, tradicional vizinho da famosa fábrica de pastéis de nata, assim o fez em 18/11/1999, mantendo a maior parte das ações da SAD sob controle dos seus associados.
Em 2012, entretanto, decidiu vender 90% para a empresa Codecity Sports Management (mantendo apenas 10%, o mínimo legal), que prometia gestão moderna do futebol e um incremento das receitas e resultados esportivos. No termo de cessão, o clube se protegeu e estipulou três períodos de recompra das ações, caso fosse de seu interesse.
A relação entre as partes, desde o início, não era das melhores. A empresa, segundo acusam sócios e diretoria do Belenenses, não prestava contas, não repassava quaisquer valores e utilizava o Estádio do Restelo de forma “gratuita”, dentre outros problemas. O clube não daria o salto de desempenho prometido, não fazendo frente aos rivais da capital (Benfica e Sporting) nem ao Porto. Assim, os sócios invocaram em 2016 (um dos momentos previstos em contrato) a opção de “retomada” do controle do futebol profissional do clube. A Codecity, no entanto, não reconheceu a legitimidade desse procedimento.
O problema foi parar na Justiça, e lá, em decisão deveras contestável (pelos argumentos), a empresa obteve ganho de causa. Com isso, o que já era ruim ficou ainda pior. O clube impediu a utilização do Estádio do Restelo, que fez com que o time fosse jogar no Estádio do Jamor, o Estádio Nacional de Portugal, em Oeiras. Além disso, passou a ser identificado como Belenenses SAD, já que clube e associados não reconheciam mais a sua legitimidade, principalmente após o êxito no Tribunal da Propriedade Intelectual que determinou a proibição do Belenenses SAD de utilizar marca, nome e símbolos do Belenenses.
Para completar, os sócios, em assembleia, decidiram pela criação de um novo time, recomeçando do zero a caminhada no futebol português na 1ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa (equivalente à sexta divisão), utilizando, a princípio, apenas jogadores das categorias de base. Hoje, em Portugal, existem dois Belenenses disputando divisões diferentes da pirâmide do futebol local. E o imbróglio parece longe de uma resolução.
Belenenses x Belenenses SAD
Inglaterra: Manchester United FC x FC United of Manchester
Pouca gente lembra como era a vida de muitos clubes ingleses antes da aquisição por bilionários estrangeiros. O Chelsea e o Manchester City, por exemplo, sempre foram times de muita tradição no cenário local, apesar de poucos títulos, mas se tornaram potências, de fato, após a chegada dos atuais proprietários.
O Manchester United, por sua vez, era um time com diversas conquistas e nome já marcado regional e internacionalmente, tendo conquistado a Europa diante do Benfica de Eusébio e também em 1999, numa final dramática contra o Bayern de Oliver Kahn, além de diversos campeonatos (o maior vencedor da Premier League desde a sua criação), copas e taças nacionais.
Com grande popularidade no mercado asiático e detentor de uma dívida relativamente baixa, o clube do Teatro dos Sonhos logo virou objeto de desejo de diversos investidores dispostos a adquirir os Red Devils. Primeiro, em 1999, o clube quase foi comprado pelo magnata da comunicação na Inglaterra Rupert Murdoch. Os órgãos reguladores, entretanto, entenderam que o detentor das transmissões do campeonato inglês também não poderia ser o dono de um clube que disputava a competição.
Pouco depois, em 2003, os criadores de cavalos John Magnier e J.P McManus também almejaram o time vermelho de Manchester, mas a torcida se mobilizou e fez da vida dos potenciais compradores um verdadeiro inferno, para demovê-los da ideia. Acabaram tendo sucesso com o plano, já que os irlandeses desistiram do negócio.
Em 2005, no entanto, não teve jeito. Apesar dos protestos, o bilionário norte-americano Malcom Glazer, detentor também do Tampa Bay Buccaneers (NFL), adquiriu 90% das ações do clube, para a revolta de muitos torcedores, que consideravam inadmissível o fato de Glazer não ter qualquer ligação e identificação com o futebol e a cidade de Manchester.
Diante do cenário e dos novos valores dos ingressos para os jogos em Old Trafford, alguns rebeldes se reuniram e fundaram um novo clube, cuja essência seria a manutenção da identidade com a comunidade local: o FC United of Manchester, com escudo inspirado em um modelo antigo utilizado pelo Manchester United até 1973, assim como o uniforme, e não por acaso se autointitulariam The Red Rebels: “Acima de tudo, queremos ser vistos como um bom exemplo de como um clube pode ser executado no interesse dos seus membros e ser um benefício para as suas comunidades locais” – diz um trecho do manifesto de fundação do clube.
Iniciado na décima divisão, hoje o clube disputa a sexta. Dirigido por um conselho eleito por seus associados e contribuintes, tem ingressos a preços médios de 10 libras e consegue atrair bons públicos ao Broadhurst Park, em clima bem diferente da atmosfera fria que tomou conta do Old Trafford com a debandada dos torcedores.
Manchester United FC x FC United of Manchester
Áustria: Austria Salzburg x RB Salzburg
Clube tricampeão austríaco e vice-campeão da extinta Copa da Uefa, o Sportverein Austria Salzburg foi fundado em 1933 e costumava a figurar entre as equipes mais tradicionais do país até 2005, quando a chegada da Red Bull estremeceu as relações entre clube e torcida.
A empresa de energéticos, após se tornar proprietária, propôs uma série de mudanças, a começar pela troca do nome do clube de Austria Salzburg para FC Red Bull Salzburg. Até aí nenhum problema, já que no passado o Austria já havia mudado de nomenclatura em outras ocasiões por conta de patrocínios (por exemplo, entre 1978 e 1997, época em que era conhecido por SV Casino Salzburg).
Todavia, um passo mais ousado começou a acender a ira dos torcedores: o clube decidiu que era um novo clube, que estava sendo fundado em 2005 (e não mais em 1933), e que o antigo simplesmente não existiria mais (publicando no site oficial “este é um novo clube sem história”). Em outras palavras, era como se o RB Salzburg pegasse toda a história do Austria e apertasse o delete. A Federação Austríaca de Futebol interveio e não permitiu a iniciativa.
Alguns torcedores se reuniram e criaram um comitê (Iniciativa Violeta e Branco) para dialogar com a Red Bull e protestar, dentre outros pontos, sobre a substituição das tradicionais cores violeta e branca do uniforme e da identidade visual do clube por vermelha, azul e amarela, tradicionais da logomarca da empresa. Após uma contraproposta da Red Bull, considerada indecorosa pela Iniciativa, de manter a cor roxa nos meiões dos goleiros, na braçadeira de capitão e na logomarca da Adidas apenas, os torcedores da IVB decidiram romper com o RB Salzburg e recriar o clube à sua maneira, o novo Sportverein Austria Salzburg, do zero, na sétima divisão austríaca.
Em pouco tempo, o novo Austria Salzburg conseguiu diversos acessos em sequência, mas parou na terceira divisão. O tão aguardado duelo entre os times ainda não aconteceu nos profissionais, apenas nas categorias de base e equipes B, sempre dando trabalho à polícia local.
Austria Salzburg x RB Salzburg
Romênia: FC Universitatea Craiova x CS Universitatea Craiova
Talvez o exemplo mais emblemático. Graças a uma série de trapalhadas nos bastidores da política e do futebol romeno, uma torcida se viu dividida entre dois clubes que diziam ser o mesmo na cidade de Craiova.
Após dois rebaixamentos em cinco anos, o tradicional FC Univesitatea Craiova (fundado em 1948) foi punido, provisoriamente em 2011 e em definitivo em 2012, com a pena de desfiliação da Federação Romena de Futebol por ter acionado a Justiça comum para resolver problemas da área desportiva. Paralelamente a isso, durante a campanha para as eleições municipais de 2012, a candidata à prefeitura da cidade de Craiova Lia Olguța Vasilescu defendia que, caso eleita, ressuscitaria o clube.
Vasilescu venceu e conseguiu firmar uma aliança com o proprietário, Adrian Mititelu, que conseguiu reverter a punição de desfiliação imposta pela FRF. Com o passar do tempo, entretanto, o caldo entornou, e as partes, sem conseguir chegar a um denominador comum, acabaram desistindo do projeto público-privado para reativar o FC Univesitatea Craiova. A prefeita, por sua vez, não abandonaria a ideia, apenas mudaria de parceiro.
Conseguindo apoio de outros empresários, da FRF (que garantiu uma vaga direta na segunda divisão) e de antigos ídolos do FC Univesitatea Craiova (FCU), surgiu, em 2013, o CS Univesitatea Craiova (CSU), que dizia ser a continuação do extinto clube. Adrian Mititelu, insatisfeito com a “pernada” que tomou, acelerou o processo de reativação do clube “original” e conseguiu a volta das atividades também na segunda divisão. Rapidamente o caos se instaurou entre aqueles que até então eram unidos por uma mesma paixão:
“Torcedores que antes torciam por um mesmo clube se dividem. Torcedores do FCU chamam os rivais de ‘clonados’, afirmando que o CSU é um clone. Os torcedores do CSU se referem aos do FCU como ‘escravos de Mititelu’, porque ‘o Universitatea Craiova é do povo e não pode se prender a uma única pessoa’. Torcidas organizadas começam
a pichar a cidade, trocando acusações e provocações. […]O FCU Craiova é exilado pela Prefeitura, sendo impedido de jogar no Ion Oblemenco. O time de Mititelu passa a mandar seus jogos em Drobeta Turnu-Severin e em outras cidades, até mesmo fora da Oltênia. A maioria da torcida fica, a princípio, com o FCU. Vários dos ídolos que jogaram na geração Craiova Maxima e na dos anos 90 passam a trabalhar no CSU. […]
CSU e FCU têm o mesmo nome e as mesmas cores, ambos alegando serem o Universitatea Craiova original, fundado em 1948. Enquanto o FCU continua com o distintivo atual com o desenho de um leão, o CSU usa, além do distintivo do leão, uma remodelação do escudo triangular, anterior a 1983, com listras azuis e brancas.
Na segunda divisão romena, as equipes se enfrentaram duas vezes, em 2 de setembro e 23 de novembro de 2013. A primeira partida, sob o mando de campo do FCU, foi realizada no Estádio Municipal de Drobeta-Turnu Severin. A segunda, sob mando de campo do CSU, no Estádio Ion Oblemenco lotado. Os dois confrontos tiveram a tensão de um verdadeiro clássico, mas nenhum deles teve gols” (ROBERGE, 2017. p. 141-142).
O retorno do FC Universitatea Craiova não durou muito, e em 2014 o clube encerrou de vez as atividades. Com isso, muitos dos torcedores do FCU migraram para o então “rival” CSU, que chegou à primeira divisão e se manteve por lá. Para aumentar ainda mais a polêmica rivalidade, em 2016 o Tribunal de Bucareste decidiu que a marca Universitatea Craiova é propriedade do CSU, e não do FCU.
FC Universitatea Craiova x CS Universitatea Craiova
Diante de todos esses exemplos de relação azedada entre clube e torcida pelo mundo, que resultaram na criação de um novo, esperamos que a Red Bull dê um upgrade, com o aporte financeiro e a melhoria de gestão e marketing, mas não deixe de respeitar as tradições do Bragantino e ouvir os anseios de sua torcida, para que também não nos deparemos com dois Bragantinos em Bragança Paulista.
……….
Igor Serrano é advogado, pós-graduado em Direito Desportivo pela Universidade Cândido Mendes, defensor dativo do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, criador e editor do selo Drible de Letra e autor do livro “O racismo no futebol brasileiro”.
……….
Referências
ALVITO, Marcos. A rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014.
BERCI, Plácido. Paixão: uma viagem pelo futebol inglês. Rio de Janeiro: Via Escrita, 2015.
HOFMAN, Gustavo. Quando o futebol não é apenas um jogo. Rio de Janeiro: Via Escrita, 2014.
ROBERGE, João Vítor. Fotbal: aventuras, tristezas e alegrias romenas. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017.
OFF – Outras Guerras: Austria Salzburg x Red Bull Salzburg
https://maisfutebol.iol.pt/amp/liga/rui-pedro-soares/beleneneses-partido-em-dois-que-equipa-vai-ver-na-proxima-epoca
https://www.dn.pt/desportos/interior/belenenses-sad-perde-recurso-e-esta-impedido-de-usar-o-simbolo-do-clube-10656021.html
http://www.espn.com.br/video/clipe/_/id/5443503
https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/desporto/detalhe/belenenses-sad-vai-a-luz-sem-simbolos-clube-diz-que-nem-o-nome-pode-ser-utilizado
https://www.ojogo.pt/futebol/1a-liga/belenenses/noticias/interior/tribunal-impede-sad-do-belenenses-de-utilizar-nome-marca-e-simbolos-do-clube-10103683.html
https://www.publico.pt/2018/09/30/desporto/noticia/a-sad-ficou-com-o-futebol-profissional-o-belenenses-quer-fica-com-tudo-1845817/amp.
Podcast Som das Torcidas – SDT Na Bancada #08 Os Belenenses – Disponível no Spotify e em http://www.central3.com.br/category/podcasts/som-das-torcidas/