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Como surgiu a obra-prima do Direito Esportivo brasileiro?

Como já vimos na coluna anterior, João Lyra Filho era um homem da academia. Mantinha uma carreira docente e uma profícua produção na área do direito esportivo ao lado de sua “militância” na gestão esportiva. Ainda assim, era preocupado com aquilo que chamamos hoje por “vulgarização da ciência”, de popularização do saber científico. Publicou uma série de artigos sobre esporte e direito no Jornal dos Sports, de Mário Filho [falamos dele na edição passada], em coluna regular durante um longo período. E é assim, a partir dos textos dessa coluna, que redigiu o livro “Introdução ao Direito Desportivo”, de 1952. Ao apresentar sua própria obra, o autor revela que se tratava do resultado dos vinte anos que havia dedicado ao esporte desde quando era bibliotecário do Botafogo de Futebol e Regatas – no qual chegou à presidência – até o posto de presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), função que exerceu durante sete anos – Estado Novo e governo Dutra.

“Introdução ao Direito Desportivo” foi o primeiro volume de sua trilogia sobre esporte, integrada ainda por “Introdução à Sociologia dos Desportos” (1973) e “Introdução à Psicologia dos Desportos (1983)”.

Ao contrário do que possa parecer, “Introdução ao Direito Desportivo” não é um agrupamento de artigos jornalísticos, muito menos de folhetins. Na verdade, o considero como a maior obra de direito esportivo no Brasil, tendo sido também o compêndio pioneiro na área. Há uma presente erudição jurídica e sociológica que permeia o livro, sofisticando o tema esportivo com o que se desenvolvia à época nos interesses de estudo do autor, já professor universitário.

No campo estrito da produção sobre o direito esportivo, Lyra Filho já acompanhava os clássicos da área, como Jean Loup – primeiro grande autor mundial de direito esportivo – e Arturo Majada – estudioso primordial das relações trabalhistas no esporte.

Entendia que havia uma normatização própria da esfera esportiva, que se constituía universalmente, como se lê no próprio livro citado:

A instituição do desporto não é privativa de um país; impõe a criação de um direito universal, que se baseia em princípios, meios e fins universais, coordenados por leis próprias no âmbito internacional. Tais características conferem ao direito desportivo uma importância que, sob certos aspectos, supera o maior número dos demais ramos do direito. A hierarquia e a disciplina do desporto inspiram normas comuns aos povos, orientadas e fiscalizadas por poderes centrais de direção universal. Os desportistas se associam dentro do clube; os clubes se reúnem em ligas locais, por seu turno reunidas em entidades regionais. As entidades regionais se agrupam em federações ou confederações nacionais, subordinadas a poderes continentais que se concentram na ordem de uma direção única, suprema, universal.

O direito desportivo é regulado, pois, na conformidade de princípios internacionais codificados. A disciplina desportiva entende-se à feição de uma pirâmide nascida na soma dos indivíduos e projetada ao ápice de um comando universal exclusivo. Eis o que faz ver a extensão e a profundidade do direito, cuja realização impõe a criação de processos específicos que preservem a substância da organização e a eficiência do funcionamento.

A transcrição do longo trecho acima, retirado justamente do clássico “Introdução ao Direito Desportivo”, serve para que se possa demonstrar a forma como Lyra Filho já desenvolvia seus estudos acerca do tema desde os anos 1940 nos artigos que publicou à época. Vários dos temas tratados ali, além de serem inéditos no Brasil à época, podem ser considerados prenunciadores do modo como o direito esportivo e mesmo outros campos das ciências jurídicas se desenvolveriam.

Já nas primeiras linhas desse trecho se percebe uma compreensão sistêmica quanto à organização do direito esportivo. Até o final de sua vida, mesmo que bastante influenciado pelo funcionalismo difundido por meio de Donald Pierson (p. 54) e Gilberto Freyre, Lyra Filho mantém-se fiel à culturologia de Oliveira Vianna (tema que desenvolverei em outra coluna). Assim, não obstante filiado à corrente determinista da sociologia culturalista, o autor aqui já percebia o caráter de diferenciação do sistema jurídico esportivo internacional, em uma clara sinalização ao funcionalismo, contudo mais influenciado, naquele momento, por Durkheim – a quem cita diretamente já nessa obra (p. 9) – do que por Parsons.

A Lex Sportiva

Quanto à organização sistêmica do esporte, o caráter internacional ou universal que ele cita no texto acima transcrito é predição de entendimento de um transnacionalismo do direito esportivo. Ainda que se possa compreender não estar configurada uma Lex Sportiva naquele momento – para autores como Casini, somente com o surgimento de um tribunal arbitral internacional houve necessariamente uma Lex Sportiva, Lyra Filho fornece os elementos de sua constituição: “…realização impõe a criação de processos específicos que preservem a substância da organização e a eficiência do funcionamento” (p. 9). Ora, se se compreende a Lex Sportiva como subsistema jurídico transnacional, autorreferenciado, como se verá adiante, as categorias que o autor já desenvolvia no início de meados do século XX se aproximam bastante desses primados. A interpretação de que esse sistema universal do esporte apresenta “processos específicos” – jurídicos, administrativos, ou seja, diferenciação sistêmica – e que estejam relacionados à preservação da “substância da organização”, autorreferência, revela entendimento da complexidade que envolvia o direito naquele momento na análise de sua interação com o esporte.

Mais uma vez, antes de poder se valer de formulações jusesportivas que somente surgiram depois, Lyra Filho antecipa o que se conhece hoje por “Ein Platz Prinzip”, ou seja, o encadeamento voluntário, orgânico e formal de filiações desde o atleta até o Comitê Olímpico Internacional (COI) para a consecução de um monopólio vertical de representações esportivas por modalidade e por todo o esporte – COI e Comitê Paralímpico Internacional (IPC). Basta a leitura desta parte da passagem em referência:

Os desportistas se associam dentro do clube; os clubes se reúnem em ligas locais, por seu turno reunidas em entidades regionais. As entidades regionais se agrupam em federações ou confederações nacionais, subordinadas a poderes continentais que se concentram na ordem de uma direção única, suprema, universal.

Mesmo que a “ordem” fosse um primado do positivismo filosófico e sociológico que em muito influenciou os autores brasileiros da época – e essa passagem demonstra confiança em uma cadeia hierárquica de poder, Lyra Filho compreendeu que o sistema universal do esporte se auto-organizava em uma pirâmide orgânica. Isso gerava autogoverno, autonormartização – autarquização sistêmica: uma esfera autorreferenciada que perpassava os Estados nacionais: “A instituição do desporto não é privativa de um país; impõe a criação de um direito universal, que se baseia em princípios, meios e fins universais, coordenados por leis próprias no âmbito internacional” (cf. transcrição acima). Esse é um claro sinal de compreensão do sentido da desterritorialização do direito, e não somente da existência de uma pluralidade de fontes normativas. Isso em um momento em que o sistema jurídico internacional ainda caminhava tropegamente da efêmera e fracassada ideia de Liga das Nações para a novel Organização das Nações Unidas (ONU), que se instalava no segundo pós-Guerra Mundial. Em outras palavras, enquanto havia o cuidado no mundo com a afirmação do Direito Internacional Público, Lyra Filho já trabalhava com a noção de um sistema jurídico transnacional, ou seja, extra, e não entre, Estados Nacionais.

Evidenciava, assim, que o caráter autonormativo e self-executing do esporte dispensava – ao menos “ultima ratio” – a atuação estatal e, ademais, que essa não era a única peculiaridade do direito esportivo universal. O esporte se autarquiza na forma de “um conjunto de organizações técnicas, processos e jurisdições” (p. 96), o que ultrapassa o simples produzir normas.

Não utilizava a expressão, até mesmo porque não corrente à época, mas advogava a existência de uma Lex Sportiva não apenas como conjunto normativo, mas também enquanto sistema orgânico de compleição universal e transnacional.

Costumo dizer que João Lyra Filho era um “manipulador do tempo” e vou tentar deixar isso mais claro nos próximos números da coluna.

 

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