Em 1993, o São Paulo conquistou o Mundial Interclubes no Japão ao vencer o Milan por 3 a 2. Isso muita gente sabe. O que muitos não sabem é que o time italiano só entrou em campo como representante europeu no torneio em função de uma decisão da justiça, depois de um dos maiores escândalos do futebol francês.
O Olympique de Marseille foi o Campeão Europeu naquele ano. Um time fantástico, com jogadores como Deschamps e Barthez, que conquistariam o mundo cinco anos depois com a França. Acontece que esse time que encantou a Europa se envolveu com um dos maiores inimigos do esporte, a manipulação de resultados.
E é fácil entender por que o esporte ataca fortemente a manipulação. Ela atinge a integridade esportiva, o fair play.
A graça do esporte está na incerteza do resultado. Se todos soubessem de véspera qual seria o placar de um jogo, o esporte perderia força, e a paixão encolheria. Por isso vários dos princípios do direito esportivo visam garantir essa imprevisibilidade, como a integridade esportiva, o jogo limpo, e a paridade de armas, que é dar condições iguais aos competidores.
Por isso, mesmo o esporte tendo como pilar a estabilidade das competições, o “pro compettione”- que é a prevalência do resultado de campo -, em casos de manipulação de resultado incontestável (como o Brasileiro de 2005) , o resultado de campo pode ser mudado. E, no caso do Olympique, era o caminho necessário.
O escândalo de Marseille
O Olympique de Marseille é o único clube francês que já foi campeão europeu. Isso aconteceu em 1993, e finalizou uma história que começou em 1988 e resultou em um tetracampeonato nacional, uma Copa da França, o fim de um jejum e um escândalo sem precedentes que manchou toda uma bela história.
Foram poucas semanas depois desses momentos mágicos, de levantar o seu quinto título seguido do Campeonato Francês e a Champions League, que o OM viveria um pesadelo. O clube seria rebaixado, perderia o título francês e teria o seu diretor de futebol, Jean-Pierre Bernes, preso acusado de suborno de jogadores adversários. E não parou por aí, dois anos depois, o presidente do clube, Bernard Tapie, acabaria na prisão.
A situação já havia se complicado antes mesmo da conquista da Champions. Pipocaram denúncias na imprensa europeia de que o clube francês teria subornado jogadores do Valenciennes antes de um jogo pelo Francês. O objetivo nem era assegurar a vitória, pois ela era provável devido ao desnível técnico dos times, mas garantir que o triunfo seria obtido sem grande esforço. Com isso, poderia deixar o time marselhês descansado uma semana antes da final europeia sem prejudicar a luta pelo título francês.
O campo apresentou o que o Olympique desejava: vitória tranquila por 1 a 0 num jogo morno e título francês antecipado. Time empolgado e descansado para conquistar a Champions. Mas tudo desandou em seguida.
Conforme a imprensa francesa contou, detetives encontraram um envelope com 250 mil francos enterrados no quintal da casa da tia de Christophe Robert, atacante do Valenciennes. Foi então que a polícia chamou os principais personagens da trama para depor. O investigador da operação, Bernard Beffy, conseguiu ordem judicial para entrar na sede do Olympique de Marseille e ficaram horas procurando provas no escritório de Jean-Pierre Bernes, diretor de futebol do clube. Quando os jogadores chegaram ao centro de treinamento, 12 deles foram convocados a depor.
Segundo as investigações, Jean-Jacques Eydelie, então meio-campista do Marseille, foi a figura central da história. Ele intermediou a negociação do suborno, ligando para três jogadores do Valenciennes para acertar o acordo: Christophe Robert, Jacques Glassmann e Jorge Burruchaga, campeão do mundo pela Argentina em 1986. Eydelie e Bernes foram presos pouco depois acusados de corrupção ativa. Robert admitiu aceitar o suborno, Burruchaga disse que aceitou, mas depois mudou de ideia e Glassmann disse que nunca aceitou esse acordo.
Segundo um livro publicado por Eydelie em 2006, ele agiu a pedido do presidente do OM: “Bernard Tapie disse para mim: ‘É imperativo que você entre em contato com seus ex-companheiros de Nantes que estão no Valenciennes [havia dois, um deles Burruchaga]. Nós não queremos que eles ajam como idiotas, nos quebrando antes da final com o Milan. Você os conhece bem?'”.
A história tinha personagens, provas, dinheiro e vergonha. A UEFA precisou agir.
No dia 7 de setembro, ela excluiu o Marseille da Champions League 1993/94 por causa do escândalo. Dias depois, o título francês foi cassado por ter sido conquistado por meio ilícitos. Além disso, o OM foi rebaixado para a segunda divisão nacional. O título europeu foi mantido, mas o clube perdeu o direito de disputar competições internacionais e, por isso, o Milan representou a Europa no Mundial Interclubes de 1993, contra o São Paulo.
O Valenciennes não foi punido coletivamente, apenas seus jogadores. Burruchaga e Robert foram suspensos do futebol por seis meses. Eydelie foi suspenso por um ano por ter um papel mais importante na trama.
Em maio de 1995, Bernard Tapie foi considerado culpado e, depois de recorrer da sentença, foi preso por oito meses.
Direito desportivo e estabilidade das competições
O direito desportivo tem como princípio a estabilidade das competições, manter o resultado de campo. E precisa funcionar assim, justamente para que os tribunais esportivos não se estabeleçam como terceiro tempo desportivo. Por isso, é raro que um resultado de campo seja modificado pela Justiça Desportiva. Raro, mas não impossível.
Casos de interferência externa, erro de direito e manipulação de resultados, quando devidamente comprovados, exigem uma atitude drástica e pesada. O OM sentiu na pele. Ele e sua torcida. O Milan aproveitou e herdou a vaga, mas quem comemorou no finzinho daquele ano de 1993 foi o São Paulo.
PS: agradecer ao amigo Carlos Serrato pela sugestão de assunto para coluna. Depois de ler sobre o caso da Dinamarca que entrou de penetra para fazer a festa na Euro de 1992, ele me lembrou deste caso do Mundial de Clubes no ano seguinte . Obrigado.
Crédito imagem: FIFA
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