O futebol é transnacional. As regras do jogo superam limites geográficos e ganham o mundo. E o segredo para manter o jogo como é, tendo essa universalidade, é a aceitação dos membros da cadeia associativa de seus regramentos internos. Foi um deles que fez com que o craque francês Eric Cantona, punido na Inglaterra, não jogasse no Brasil nos anos 90.
Antes de chegar a Cantona e sua quase vinda ao Brasil, é importante entender como as decisões do movimento esportivo precisam dessa aceitação universal. Simples. De que valeria uma licença para jogar futebol dada pela CBF que não fosse aceita pela AFA. Ou, de que valeria uma punição a um atleta por doping, se ele ultrapassasse uma fronteira internacional para competir em outro país?
Valeria uma insegurança jurídica e um esporte menos globalizado e mais regionalizado.
Daí a importância da chamada extensão internacional das decisões esportivas.
Com essa breve pontuação jurídica, ao caso de Eric Cantona que foi punido na Inglaterra e por conta de regulamento da Fifa não jogou no Brasil.
Eric Cantona, craque e polêmico
O Manchester United é considerado um dos maiores times do mundo. O clube inglês já conquistou os principais títulos possíveis e teve muito dos melhores jogadores de todos os tempos vestindo sua camisa vermelha. Entre esses jogadores, um dos que mais marcou época foi o francês Eric Cantona.
Jogando pelos Red Devils, como a equipe é chamada, Cantona marcou 82 gols e conquistou a liga inglesa em quatro oportunidades. Craque e polêmico.
No dia 25 de janeiro de 1995, o futebol inglês foi palco de um acontecimento que ficou marcado na história da Premier League, lembrado todos os anos nessa data: a voadora de Cantona.
Expulso no empate por 1 a 1 entre Crystal Palace e Manchester United, o atacante Eric Cantona reagiu à provocação de um torcedor e deu uma “voadora” em um jovem chamado Matthew Simmons, torcedor do Palace.
O atacante caminhava aos vestiários, quando corrigiu o seu trajeto ao ouvir ofensas de Matthew Simmons. Ele virou-se e golpeou o torcedor com um chute no alto. A voadora de Cantona não foi o suficiente. Mal caiu no chão e já levantou para emendar um soco.
A agressão custou caro a Cantona
Sir Alex Ferguson, técnico à época e todo poderoso no United, não tinha visto a cena, nem sabia da proporção que a agressão tinha tomado. Segundo o The Guardian escreveu , ele pensara que Cantona tinha sido arrastado para a multidão enquanto ele passava, explica o jornal britânico.
Ferguson decidiu deitar e enfrentar o dia seguinte. Porém, como contou o jornal, ele não conseguia dormir e finalmente assistiu ao vídeo por volta das 5 da manhã.
Seu instinto inicial foi que Cantona teria de ser demitido e o conselho do United concordou com isso. Mas o advogado do clube aconselhou que tal ato poderia trazer prejuízos legais e econômicos e o Manchester esperou até a noite de quinta-feira para discutir o que iria fazer. Foi então que as coisas começaram a mudar de figura e Ferguson passou a defender a permanência de Eric.
Apesar de reconsiderar sua demissão, o clube puniu o francês até o final da temporada, o impedindo de disputar outra partida. Mas as punições não pararam por aí. A Federação Inglesa impôs uma pesada punição de 8 meses fora dos gramados. Que também foi processado por agressão e condenado a 2 semanas de prisão, que foram convertidas em trabalhos comunitários.
Sobre o chute Cantona disse o seguinte; “Foi um erro, mas a vida é assim, e eu sou assim. Às vezes, para a gente (jogadores), é um sonho poder bater neste tipo de torcedor. Fiz para que se sentissem felizes”.
É agora que a história chega ao Brasil.
Segundo notícias da época, o atacante começou a negociar com o São Paulo uma vinda para o futebol brasileiro, a fim de trabalhar aqui já que na Inglaterra não era possível.
Foi aí que apareceu o que se conhece como extensão internacional das decisões esportivas, que escrevi na abertura do texto. Não fosse ela, seria apenas de alcance limitado a suspensão imposta no início dos anos 1990 a Eric Cantona pela Federação Inglesa.
A Fifa, ao tomar conhecimento das tratativas com o São Paulo Futebol para que o atleta atuasse no Brasil enquanto cumpria suspensão na Inglaterra, fez valer o artigo 54 de seu Estatuto então em vigor (reconhecimento mútuo das decisões nacionais das federações membros) para, assim, barrar aquela transferência.
Esse artigo do Estatuto da entidade-mor do futebol obriga as federações nacionais a respeitarem as decisões tomadas por outras federações nacionais, a fim de dar legitimidade e eficácia a esse movimento jurídico privado do esporte.
Estando dentro dessa “cadeia associativa”, todos precisam cumprir as mesmas regras, desde que respeitados direitos previstos no ordenamento jurídico e regulamentos internos dessa comunidade. Uma espécie de “contrato de adesão”.
Através desse poder coercitivo dos regramentos internos da Fifa, a entidade maior dessa cadeia associativa, o clube brasileiro desistiu de avançar nas conversas.
A eficácia e a segurança jurídica desse sistema transnacional do esporte se alicerçam em cima dessa livre associação. Como escreveu Teubner, o desafio de desvincular a legitimação do papel do Estado dentro de um movimento como o do esporte passa “pela responsabilidade fundamental conferida nos contratos”. Ou seja, a aceitação dos membros dessa cadeia de seus regulamentos internos.
Foi o paradoxo da auto-referencialidade contratual que fez com que um francês, punido na Inglaterra não pudesse jogar no Brasil por causa de uma regra de uma entidade com sede na Suíça.
Crédito imagem: Divulgação
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