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Competência e estruturação da Justiça Desportiva (parte I)

O esporte é inegavelmente um fator cultural de formação da identidade nacional. A partir de tal reconhecimento, o Constituinte de 1988 veio a consagrar o esporte na qualidade de direito fundamental social. O Estado passa a ter um papel primordial no incentivo às práticas desportivas, sejam lúdicas ou profissionais, ainda mais quando se abraça a ideia de que o esporte, além de tudo, é instrumento de promoção da saúde e do bem-estar, de inclusão social, de desenvolvimento, de soft power e até mesmo da consecução da paz entre as Nações.

O esporte é, além de tudo, responsável por parte do PIB mundial, movimentando centenas de bilhões de dólares por ano. A indústria desportiva envolve e opera os mais diferentes interesses, seja de atletas, clubes, torcedores, treinadores, médicos, psicólogos, analistas de desempenho, intermediários, agências de marketing e publicidade, operadores de transportes, hospedagem e alimentação, patrocinadores e fornecedores de material esportivo, além de um sem número de empregos indiretos gerados. Neste contexto, o direito desportivo desponta como ferramenta jurídica para assegurar regramento às competições e segurança jurídica aos negócios e transações realizadas no âmbito desportivo, especialmente diante da constatação de que os conflitos inevitavelmente surgirão.

Na parte que toca as competições, em específico, reside o campo de atuação da Justiça Desportiva. Caberá à Justiça Desportiva, a princípio, regular as relações desportivas e conferir a necessária segurança jurídica às questões atinentes às competições e à disciplina, com o escopo máximo de assegurar que as mesmas possam transcorrer em ordem, segurança, tranquilidade, estabilidade e isonomia entre os competidores. Conforme perfil traçado pela Constituição Federal, no art. 217, além da Lei Pelé (arts. 52 e seguintes), a Justiça Desportiva é estrutura que faz parte do movimento privado do esporte, não integrando a estrutura formal do Poder Judiciário. Assim, funciona como uma espécie de contencioso administrativo próprio e especializado, instituído com a finalidade de proteger o próprio desporto.

A Justiça Desportiva é uma instituição de direito privado dotada de interesse público com competência para dirimir as questões desportivas definidas no CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), constituída por um conjunto de instâncias autônomas e independentes das entidades de administração do desporto, funcionando como um sistema de justiça reguladora, fiscalizadora e disciplinadora de atos praticados pelos desportistas que atentem contra as regras e a moral do desporto nacional. Sua caracterização como justiça especializada e célere é marca do seu perfil constitucional, de sorte que o calendário e o andamento das competições não devem ficar à mercê da morosidade e de certo despreparo da Justiça Estadual para lidar com questões jurídicas desportivas.

Os órgãos da Justiça Desportiva, formalmente, são dotados de independência decisória e autonomia, sendo vedadas quaisquer intervenções em suas atividades por parte das entidades de administração do desporto de cada modalidade, sendo que cada uma delas conta os seus respectivos tribunais, de sorte que não há tribunais multiesportivos, com exceção do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJDAD).

Caso haja uma infração relacionada ou cometida em competição estadual, como o Campeonato Carioca ou Paulista, haverá 3 (três) instâncias, da hierarquicamente inferior para a superior: a Comissão Disciplinar Regional (CDR) do Tribunal de Justiça Desportiva (TJD); Tribunal Pleno do TJD, com competência recursal em relação às decisões das CDR´s, sendo que cada Estado federado terá o seu respectivo TJD; e, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que julga recursos provenientes dos 27 (vinte e sete) TJD´s. No mais, caso haja previsão em norma internacional da modalidade, o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS), com sede da Suíça, funcionará como instância recursal internacional final.

Na hipótese de uma infração relacionada ou cometida em competição interestadual ou nacional, como o Campeonato Brasileiro das séries “A”, “B”, “C” ou “D” ou a Copa do Nordeste (competições chanceladas pela CBF), haverá 2 (duas) instâncias, da hierarquicamente inferior para a superior (guardando certa simetria com a estruturação regional): a Comissão Disciplinar Nacional (CDN) do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD); e, o Pleno do STJD[1], com competência recursal correspondente e cujas decisões são irrecorríveis. Em havendo previsão em norma internacional da modalidade, o TAS/CAS também funcionará como instância recursal internacional final.

Todo Tribunal Pleno terá 9 (nove) integrantes, sendo que seu corpo de auditores é híbrido e resultado de indicações, sendo 2 (dois) pelas entidades de administração (CBF, FERJ, etc.), 2 (dois) pelas entidades de prática (clubes), 2 (dois) pela OAB nacional ou estadual (advogados com notório saber jurídico desportivo), 2 (dois) pelos atletas, via órgão representativo e 1 (um) por parte das associações nacional ou estadual de árbitros. Não é exigida formação jurídica, mas notório saber jurídico, por mais paradoxal que pareça. Os auditores indicados terão mandato de 4 (quatro) anos, com direito a uma única recondução. Já a Procuradoria funciona como órgão acusador, responsável pela denúncia que será apreciada pelos auditores em colegiado, sendo que, junto a cada tribunal, haverá 2 (dois) procuradores em atuação.   Há relatoria, mas não há tradição de monocratismo nos tribunais desportivos, que é excepcional, normalmente adstrita à concessão de medidas urgentes ou de efeito suspensivo a eventual recurso, de modo que, suas as decisões, em maioria, são proferidas na forma de acórdão. Os auditores do Pleno também são responsáveis por eleger os integrantes das Comissões Disciplinares, que terão 5 (cinco) membros.  Tais funções não são remuneradas.

Os julgamentos da Justiça Desportiva são marcados pela oralidade, pela incidência das garantias fundamentais do processo e pela celeridade, tanto que a CF, no mesmo art. 217, prevê que a mesma possui prazo de 60 dias para proferir decisão final, ou seja, de última instância. Quando os tribunais desportivos são acionados pelos clubes no decorrer das competições, sua intervenção costuma ser erroneamente associada com o famoso “tapetão”. Quando um tribunal ligado ao esporte faz cumprir as normas pré-estabelecidas, confere, em verdade, segurança e previsibilidade ao desporto e suas competições. O “tapetão” diz respeito a situações diametralmente a esta opostas, como o desrespeito aos regulamentos, “viradas de mesa”, etc.

Pois bem, traçado um breve perfil da Justiça Desportiva, seria possível então, afirmar que qualquer disputa no âmbito do esporte será necessariamente resolvida pela Justiça Desportiva? A resposta é negativa. Conflitos que envolvam o ecossistema esportivo, mas não gravitem em torno de competições, disciplina e cumprimento de regulamentos, como questões contratuais lato sensu e trabalhistas, por exemplo, serão de competência da Justiça Comum estatal, sendo que tais questões podem, ainda, ser contratualmente submetidas à arbitragem privada[2].

Com base no exposto, em tese, não haveria, então, que se cogitar sobre a possibilidade de haver conflito de competência entre a Justiça Desportiva e a Justiça Comum, pois o espaço de atuação de cada estrutura é muito bem delineado em lei. O problema que é o mesmo art. 217 da Constituição Federal condiciona o acesso à Justiça Comum ao esgotamento das instâncias desportivas, suscitando a possibilidade de conflito. Surge uma velha e quase insolúvel polêmica, que será objeto das próximas colunas. Até lá!

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[1] Os Tribunais Plenos do TJD e do STJD também possuem competência originária para apreciação de certos procedimentos especiais previstos no CBJD, com o de impugnação de partida (art. 84 e seguintes), por exemplo.

[2] Vale lembrar que, com a recente derrubada do veto presidencial ao art. 27, parágrafo único, da Lei Geral do Esporte, questões que hoje são de competência da Justiça Desportiva (disciplina e competições) também passarão ser arbitráveis, a depender da vontade de clubes e Federações.

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