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Competência e estruturação da Justiça Desportiva (parte II)

Em coluna publicada dias atrás[1], traçamos um breve perfil inicial da Justiça Desportiva. Chegou a hora de avançarmos. Vimos que, com base no art. 217 da Constituição Federal e em dispositivos da Lei Pelé (arts. 52 e seguintes), a mesma, apesar da nomenclatura, não é integrante da estrutura formal do Poder Judiciário, pois faz parte do movimento privado do esporte. De qualquer sorte, diferentemente do que se poderia pensar, a Justiça Desportiva não possui competência para apreciar qualquer disputa no âmbito desportivo, mas apenas aquelas questões que digam respeito a competições, disciplina e cumprimento de regulamentos. Conflitos que envolvam o ecossistema esportivo, mas externos às competições em si, como questões contratuais lato sensu e trabalhistas, por exemplo, serão de competência da Justiça Comum estatal, fora a possibilidade de submissão arbitral.

Ao menos em princípio, então, não haveria que se cogitar sobre conflito de competência entre a Justiça Desportiva e a Justiça Comum, pois o espaço de atuação de cada estrutura estaria muito bem delineado em lei. A grande questão é que no mesmo art. 217 da Constituição Federal, talvez com a melhor das intenções, no sentido de assegurar a inafastabilidade do controle jurisdicional, o Constituinte originário veio a prever que o acesso à Justiça Comum fica condicionado esgotamento das instâncias desportivas, o que faz surgir a possibilidade de conflito. Isto quer dizer que após a Justiça Desportiva finalizar o julgamento de uma questão disciplinar ou impor a perda de pontos a um clube por escalação irregular de atleta, por exemplo, seria possível recorrer ao Poder Judiciário? Não seria a competência da Justiça Desportiva, ela própria, uma exceção ao direito de ação em matéria de competições e disciplina? Aqui reside uma velha e quase insolúvel polêmica, pelo menos sob o ponto de vista do direito positivo.

Pela redação estritamente legal, o acesso ao Poder Judiciário ficaria condicionado ao esgotamento das instâncias desportivas próprias, só podendo ser aquele acionado nesta hipótese ou quando a Justiça Desportiva não respeitar o prazo máximo de 60 (sessenta) dias para proferir decisão final. De qualquer maneira e, aqui há que se reconhecer importante polêmica, defendemos o entendimento mais restritivo no sentido de que, após o exaurimento da esfera esportiva, o Poder Judiciário não poderia imiscuir-se a analisar o mérito do conflito (exceto decisões claramente teratológicas), mas apenas verificar a regularidade do procedimento e a observância do devido processo legal e das garantias fundamentais do processo, especialmente a ampla defesa, o contraditório, a publicidade e a motivação das decisões, as quais também são, em última análise, direitos ou garantias fundamentais. Assim, privilegia-se a Justiça Desportiva em virtude da especialização de seus pronunciamentos.

Ocorre que a questão não se encerra por aqui. A relação entre a Justiça Desportiva e o acesso ao Poder Judiciário sempre foi bastante problemática, especialmente porque a FIFA, dentro da perspectiva de seu sistema associativo (que é privado e pretende funcionar infenso à interferência estatal), ao qual busca conferir a necessária segurança e estabilidade contratuais, acena com a possibilidade de desfiliação ou de aplicação de outras sanções ao clube que acessar a Justiça Comum (e obriga que as respectivas Federações insiram tais sanções em seus respectivos regulamentos – art. 59 do Estatuto da FIFA e art. 11 do Estatuto da CBF), rompendo com o sistema. Neste ponto, não haveria ofensa à Constituição, pois a FIFA é uma entidade privada e a associação a ela por parte dos clubes e das federações é absolutamente voluntária. De toda sorte, vale realçar que a FIFA costuma ter deferência às decisões da Justiça Trabalhista dos diferentes países, exatamente pela ausência de conflito com os tribunais desportivos.

No geral, os clubes costumam ser “obedientes”, especialmente no exterior, onde a aceitação é mais espontânea. No Brasil, houve poucos, mas conhecidos casos de “rebeldia”, sendo que muitos tiveram o impasse resolvido via negociações e/ou acordos. Dois foram paradigmáticos.

O América-MG, em 1993, foi rebaixado devido ao fato de a CBF ter mudado o regulamento no curso do campeonato. Após ingressar na Justiça Comum, ficou proibido pela CBF de participar de competições nacionais. Decorridas longas negociações, o clube desistiu da ação e voltou a disputar a série “B” do Campeonato Brasileiro. Em 1999, após o jogador Sandro Hiroshi, então atuando pelo São Paulo, ter atuado irregularmente em 2 (duas) partidas após ter falsificado sua certidão de nascimento e, como à época a perda de pontos levava à sua transferência para o clube adversário em tais partidas, o Gama-DF acabou rebaixado. Imediatamente, o clube acionou a Justiça Comum e teve ganho de causa. A CBF foi condenada e obrigada a promover o campeonato seguinte da série “A” com a participação do Gama. Pressionada pela FIFA e sem tempo para recorrer, a CBF entregou a realização do campeonato ao “Clube dos Treze”, que organizou a “Liga” em módulos (e não em divisões) para abranger 116 clubes.  Assim nasceu a Copa João Havelange em 2000, pelos clubes organizada e que não previa rebaixamento para o ano seguinte. O Fluminense, que havia subido da série “C” para a “B” em 1999, foi beneficiado com a “virada de mesa” e disputou o módulo principal, assim como o Bahia, integrante da série “B”.  O atabalhoado torneio terminaria com o Vasco da Gama sagrando-se campeão, sendo que no jogo final, contra o São Caetano (que não disputou o módulo principal), o alambrado cai no superlotado estádio de São Januário (o gramado foi invadido e centenas de pessoas ficam feridas) e a partida remarcada para o estádio do Maracanã, já em janeiro de 2001, sem perda do mando de campo. O Gama-DF só veio a desistir da ação no final do ano de 2000, o que acabou afetando o acesso e o descenso no Campeonato Brasileiro pelos 3 (três) anos seguintes.

Cumprindo as instruções da FIFA, a CBF prevê, em seu Regulamento Geral de Competições (RGC), que clubes e federações devem empreender esforços para o demover o torcedor de acessar a Justiça Comum, pois estes possuem legitimidade ativa na qualidade de apreciador. Tudo isto por conta da possibilidade de as agremiações tentarem usar o torcedor com um “testa de ferro” e evitar punições por parte das Federações ou da FIFA. Como consumidor e apreciador, o torcedor pode e deve buscar a Justiça Comum para discutir seus direitos em relação a questões como venda de ingressos, ambulância, assento no estádio, etc. A questão resulta muito mais sensível e de difícil solução quando o acesso do torcedor é voltado para discussão de questões relativas à competição, disciplina ou doping, escalação de jogador irregular ou rebaixamento. Embora seja legítimo seu acesso sob o ponto de vista de o apreciador buscar a lisura da disputa, por outro lado este constitui fator gerador de insegurança e instabilidade, até porque tal legitimidade é muito difusa.

Por fim, outro debate importante diz respeito ao momento em que supostamente ocorreria o esgotamento das instâncias desportivas. Tal exaurimento, a supostamente legitimar o acesso à Justiça Comum, dar-se-ia em âmbito nacional ou internacional? Há uma forte tendência a se considerar que tal situação só se consolidaria após acesso e pronunciamento do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS), com sede na Suíça, que possui total independência de qualquer organização desportiva e que busca facilitar a resolução de litígios, especialmente envolvendo casos de doping ou de transferência de atletas, por meio de arbitragem e mediação, com normas processuais adaptadas à realidade do esporte, desde que sua atuação seja reconhecida em normas internacionais de cada modalidade. Vale lembrar que o sugestivo art. 1º, §1º da Lei Pelé reza que “a prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto”.

Seguiremos tratando da Justiça Desportiva nas próximas colunas. O tema é envolvente, extenso e de grande relevância para a comunidade esportiva.

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[1] https://leiemcampo.com.br/competencia-e-estruturacao-da-justica-desportiva-parte-i/. Acesso em 26/06/2024.

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