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Compliance de gênero no futebol brasileiro

Por Mariana Covre e Fernando Monfardini

A tão esperada Copa do Mundo de futebol feminino que se avizinha lança holofotes para mais um cenário de relevante (e, diríamos, inafastável) presença das mulheres nos espaços, em condições (literalmente) de “pé” de igualdade com os homens.

São nos pés que estão o domínio e a habilidade técnica que sobressaltam as barreiras impostas pelo relutante comparativo da força física entre os sexos. As pesquisas já constataram que “as mulheres podem jogar futebol tão bem quanto os homens”, descortinando, cientificamente, inverdades que, por décadas, serviram de justificativa para marcar a presença majoritariamente masculina nos esportes que “exijam força”. Foi, aliás, argumento legislativo para afastar, por meio de comando legal, as mulheres do futebol por 40 anos no Brasil.

Afinal, qual é a “força” necessária para as mulheres ocuparem também esse espaço, o do futebol? Apenas a força de lei?

Relembrar marcos normativos que vulnerabilizaram ainda mais a presença feminina em ambientes diversos nas atividades desportivas, atrasando a repercussão do direito à igualdade, é conhecer um cenário escandalosamente vivido em nosso país e reconhecer um alerta para não abrirmos novos capítulos de retrocessos normativos, estruturais, sociais e comportamentais no Brasil.

É real que na década de 1940, ao tempo em que tivemos a consolidação do futebol como o esporte mais popular do país, foi realizada a primeira partida de futebol feminino, seguida sob protestos de grande parte da sociedade, apoiados por setores econômicos e pela mídia.

Sob a justificativa de ser “incompatível com as condições de sua natureza”, o artigo 54, do Decreto 3.199 de 1941, assinado pelo então Presidente do Brasil, Getúlio Vargas, proibiu expressamente a prática do futebol “entre moças”.

Ainda que popular, o esporte seguiu essencialmente masculino nas décadas adiante. O futebol, posto no seio de uma sociedade social e culturalmente sexista, foi ganhando cada vez mais adeptos e, com a proibição da presença feminina, seu crescimento retroalimentava aquele machismo estrutural. Ficou marcada a imagem da atividade como um esporte praticado por homens.

Na Copa de 1970, com o futebol feminino ainda proibido no país, o esporte tomou dimensões mais próximas com as de hoje, sendo o marco da transmissão televisiva em massa, por satélite. O Brasil foi campeão com o talvez maior esquadrão da história.

Aquela Copa (masculina) foi um marco na popularização do esporte, internacionalização e sucesso comercial, abrindo espaço para a chegada das grandes marcas e aproximando o futebol ao entretenimento, tornando-o o mais assistido e praticado no mundo.

Estava posto, no entanto, o sucesso de um torneio essencialmente masculino, sem qualquer edição feminina, cujo contexto seguia reforçado pela proibição cultural e, no Brasil, legal. Os reflexos foram desde o sucesso comercial direcionado para os homens até seus espaços exclusivos, por anos, de ascensão e altos ganhos remuneratórios. Às mulheres eram colocados os lugares para torcer discretamente, seguindo os padrões de comportamento exigidos socialmente à época.

A proibição legal de prática do futebol por mulheres no Brasil somente chegou ao fim em 1979 e sua regulamentação aconteceu apenas em 1983. Sendo que a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino foi realizada quase uma década depois, em 1991, ou seja, 61 anos após a primeira edição masculina.

Todo esse contexto ajuda a explicar os atrasos significativos no desenvolvimento do futebol feminino no Brasil, ainda com muitos ataques discriminatórios, poucos investimentos e incentivo à sua profissionalização, reflexos, mais uma vez, onipresentes do machismo historicamente enraizado na sociedade, desaguado também no futebol.

Estamos vivenciando uma era de mudanças – atrasadas – mas que são muito bem-vindas.

Os clubes, por regulamento das competições, montaram estruturas de futebol feminino, que ainda aquém do masculino. As marcas ainda não se esforçam nos investimentos às jogadoras. A mídia, de forma ainda tímida, vem dando maior espaço nas transmissões para mulheres aparecerem na grade esportiva.

Ao olhar para o ambiente regulado de gênero hoje no Brasil, temos registros de avanços considerados a comemorar. De modo muito marcante o recentíssimo marco regulatório da prática desportiva no Brasil, que está contido na Lei Geral do Esporte (14.697), agora de junho deste ano, traz olhar depurado para os avanços sob perspectivas de gênero e não acena para aqueles retrocessos legislativos que vivenciamos.

A recém-chegada legislação aloca considerados espaços em seu texto normativo para a pauta de equidade de gênero trazendo a previsão expressa do direito da mulher, em qualquer idade, de ter oportunidades iguais de participar de atividades físicas e esportes.

Na governança e gestão esportiva de clubes, reflete a discutida quota de gênero, garantindo a exigência de presença mínima de 30% de mulheres nos cargos de direção.

Atenta à disparidade recompensatória das premiações entre homens e mulheres, garante isonomia nos valores pagos a atletas ou paratletas homens e mulheres nas premiações concedidas nas competições que organizarem ou de que participarem.

Os contratos celebrados com atletas mulheres não poderão ter qualquer tipo de condicionante relativo à gravidez, licença-maternidade ou questões referentes a maternidade em geral.

Trata da regulação do trabalho do(a) atleta profissional, com viés de respeito às peculiaridades de cada modalidade esportiva e do trabalho das mulheres.

Para os casos de discriminação, os aloca em crimes contra a paz no esporte, fazendo constar expressa previsão de penalidades que serão aplicadas em dobro quando se tratar de casos não somente de racismo no esporte brasileiro como de infrações cometidas contra as mulheres.

Diante desse cenário de avanços identificados e normatizados, a Copa do Mundo de futebol feminino, que terá início esta semana, apresenta-se sobre um “campo” legislativo mais igualitário. E se, ainda, considerarmos que a primeira Copa do Mundo de Futebol feminino somente foi acontecer em 1991 e televisionada no recentíssimo ano de 2019, podemos certamente afirmar que a equidade de gênero nos esportes, em especial no futebol, é uma “jovem vitória” e sua premiação está sendo disputada: a plena igualdade de direitos entre mulheres e homens também no futebol!

Sobre a aferição numérico-estatística desses avanços, infelizmente, não se encontram pesquisas e dados consolidados sobre a efetiva presença de mulheres em cargos de liderança em clubes de futebol. Até hoje apenas 10 mulheres foram presidentes de clubes profissionais, sendo que, atualmente, a Presidente do Palmeiras, Leila Pereira, é a única a exercê-lo.

Em 2022, no Campeonato Brasileiro Série A1, 38% das comissões técnicas foram formadas por mulheres, enquanto apenas 19% ocupavam cargos de direção.

O Vasco, em seu Relatório de Sustentabilidade de 2021, divulgado em 2022, antes da transformação em SAF, divulgou que 18% dos seus colaboradores eram mulheres e 19,4% dos cargos de chefia eram ocupados por pessoas do gênero feminino.

Sob forte críticas, muitas delas justas, por desrespeito aos direitos humanos, o Catar foi a primeira edição de Copa do Mundo de futebol masculino a ter árbitras e assistentes de campos mulheres. Foram 3 de cada categoria. Na CBF, até 2021, a presença feminina apresentava configuração de número 6 na arbitragem e 6 assistentes.

As mulheres também vêm lutando por seu espaço como narradoras, comentaristas e jornalistas esportivas. Mas, assim como as jogadores e árbitras, ainda sofrem cobranças excessivas e desrespeitos característicos do machismo da nossa sociedade.

Estruturas de integridade, que englobam temas como compliance, diversidade e inclusão vêm surgindo no futebol brasileiro. Recentemente, o Galo, São Paulo, Athletico e Vasco divulgaram o Movimento pela Integridade no Futebol, uma sinalização de uma mudança organizacional de paradigma, onde os Clubes passam a se colocar como protagonistas das mudanças e não apenas espectadores reativos.

Mas ainda é pouco, sabemos. Olhando pelo copo cheio, hoje, pelo menos falamos sobre o tema. Está faltando agir!

E se o futebol e a sociedade andam juntos, precisamos olhar um a partir do outro.

Crédito imagem: SUZANA CAVALHEIRO/ACERVO DO MUSEU DO FUTEBOL

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Mariana Covre – Advogada em Compliance de Gênero e Ambientes Regulados

Fernando Monfardini – Compliance Officer no Clube Atlético Mineiro

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