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Conflito de normas

Acabou a Copa América! E o que isso quer dizer? Sim, voltou o futebol de verdade: os campeonatos de clubes. E com eles, voltaram também as brigas, polêmicas e processos da Justiça Desportiva. E como não poderia deixar de ser, a primeira grande polêmica do Campeonato Brasileiro em seu retorno é dele, o amado e odiado por muitos VAR. E novamente com um clube carioca envolvido, desta vez o Vasco.

Sim, houve mais um pedido de anulação no Campeonato Brasileiro em razão do VAR, e mais uma vez com os mesmos árbitros envolvidos (e vocês vão ler mais sobre isso no Lei em Campo). Tanto barulho, tantos questionamentos, tanta polêmica mostra que precisamos discutir mais sobre o VAR. Mas não se você é a favor ou contra ele, porque a tecnologia é boa e veio para ficar, e sim sobre os aspectos jurídicos que envolvem o uso da tecnologia.

Hoje vamos tratar de um dos aspectos que estão sendo utilizados pelo Vasco para solicitar a anulação da partida contra o Grêmio: o uso do VAR em situação ou momento não permitido. Alega o Vasco que se trata de um erro de direito, por isso, a partida deveria ser anulada.

Então vamos começar definindo o que é um erro de direito. Erro de direito é toda ação consciente que vá de encontro, ainda que involuntariamente, a uma norma. Ou seja, quando o árbitro, sabendo o que vê, por opção própria ou desconhecimento da regra, decide em desacordo com ela. Exemplo clássico de erro de direito ocorre quando o árbitro permite a continuidade de uma partida enquanto um time de futebol está com seis jogadores em campo. A regra diz que a partida deve ser interrompida, o árbitro tem ciência do número de atletas em campo e, ainda assim, descumpre a regra. É diferente do erro de fato, que ocorre quando o árbitro deixa de aplicar a regra por não visualizar um lance, como uma agressão ou uma bola que entrou sem que ele visse.

O protocolo do VAR é uma norma vigente no futebol, ainda que hierarquicamente inferior a diversas outras. Dessa forma, descumprir uma determinação ou limitação do protocolo do VAR configura, de fato, um erro de direito. Mas o próprio protocolo do VAR diz que sua utilização em momento inadequado não é suficiente para anular uma partida. E é aí que a discussão começa a ficar interessante.

Um protocolo é um documento que tem por objetivo determinar o conjunto de procedimentos que deve ser adotado em determinadas situações. Nesse caso, o protocolo do VAR é instrumento jurídico adequado para determinar como e quando o equipamento poderá ser utilizado. O artigo que define se uma partida pode ou não ser anulada em razão do uso do VAR não apresenta em seu texto conteúdo que seja adequado a um protocolo, ou seja, juridicamente o protocolo está exacerbando sua função, e aquela norma pode ter a validade questionada, naquele ponto, por problemas formais. Para Bobbio (1995), não basta a uma lei sua existência, sendo também necessário identificar se ela é válida e onde reside sua validade. Para isso, deve-se analisar se a norma foi criada por autoridade normativa competente, seguiu os procedimentos jurídicos adequados e se está em conformidade material com o restante do ordenamento jurídico ao qual pertence.

Não bastasse isso, ainda que seja considerado válido o dispositivo, ele vai de encontro a outra norma vigente no ordenamento jurídico-desportivo brasileiro, o CBJD. Mesmo que não seja uma lei, é o CBJD que disciplina o funcionamento da Justiça Desportiva no Brasil quando não há um código próprio para a modalidade (como é o caso do rugby, que submeteu seu código a aprovação do CNE). Isso geraria um conflito de normas entre protocolo do VAR e CBJD. Um conflito de normas ocorre quando existem duas ou mais normas conflitantes, como uma norma dizendo que a partida é anulável e outra dizendo que a partida não é anulável.

Nesse caso há uma série de formas de buscar identificar qual norma deverá prevalecer. A primeira delas é temporal. Normas mais recentes revogam normas mais antigas em sentido contrário, desde que sejam hierarquicamente iguais ou superiores às normas revogadas, ainda que não façam menção expressa a essa revogação. Ou seja, quando uma norma é criada em oposição a uma norma existente, prevalecerá a norma mais nova, conforme dispõe o artigo 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A segunda forma de se solucionar um conflito aparente de normas é por meio do critério hierárquico, segundo o qual uma norma que represente o fundamento para a existência da outra é hierarquicamente superior a ela (Kelsen, 2006). Por fim, o terceiro critério para solução dos conflitos entre normas (antinomias) é o da especialidade, ou seja, havendo uma norma geral e uma norma especial, deverá prevalecer a norma especial. No caso do protocolo do VAR, no entanto, não podemos falar em norma especial; ainda que tal documento respeite mais as especificidades da modalidade, não se trata de uma norma especial (seria o caso de um código específico para a modalidade), não havendo que se falar em sua prevalência.

Portanto, ainda que seja considerado formalmente válido o protocolo do VAR em sua integralidade, no caso dessa antinomia, a norma que deve prevalecer é o CBJD, por ser hierarquicamente superior. Ou seja, deve prevalecer a possibilidade de anulação de partida em caso de erro de direito, no caso o descumprimento do protocolo do VAR. Caberá, no entanto, avaliar se houve de fato o erro do árbitro, ou seja, se o lance verificado era ou não passível de verificação pelo VAR. E tudo vai depender da interpretação do tribunal sobre o momento em que se inicia o chamado “lance de gol”. Se entenderem que é na retomada da bola pelo time que marcar o gol, em alguns jogos poderemos ter lances de mais de 1 minuto sendo revisados, o que dará ainda mais poder ao vídeo, que deveria interferir apenas em lances claros e capitais.

……….

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Apresentação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Revisão técnica de Cláudio De Cicco. 6. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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