Imagine o seguinte cenário: você competindo em uma prova de velas, organizada por um clube de iates, na qual cada participante concorda expressamente com as regras estabelecidas por aquele clube, inclusive uma cláusula prevendo que toda e qualquer embarcação que descumpra as regras da competição será responsável por “todas as perdas e danos derivados de tal descumprimento”. Então, durante a competição, um dos iates descumpre as regras, e colide com o seu iate, causando o afundamento da sua embarcação. Você busca o total ressarcimento das suas perdas de acordo com o regulamento da competição, mas o dono do iate que causou o acidente se defende alegando que só deveria ser responsável pela compensação das suas perdas de acordo com o teto máximo estabelecido em legislação existente versando sobre colisões entre navios mercantes (muito menor do que suas perdas). E aí? Como resolver essa situação tendo em vista que as partes não entraram em contrato entre si?
Esse foi o cenário encontrado pela mais alta corte de Justiça da Inglaterra e do País de Gales (uma das três jurisdições do Reino Unido), em 1897. Isso mesmo, em 1897. Oito anos após a Proclamação da República brasileira. A decisão desse caso, conhecido como The Satanita (nome do iate causador da colisão), deu origem à doutrina dos contratos multilaterais, ou seja, contratos horizontais e verticais, na jurisdição inglesa. Esse caso tem relevância não só por seus fatos, oriundos de uma competição esportiva, mas também por ser exceção à doutrina de formação de contratos de acordo com o direito inglês: oferta e aceitação.
A House of Lords, uma das duas câmaras constituintes do Parlamento inglês e que até 2009 acumulou a função de mais alta corte judicial do Reino Unido, decidiu em 1897 a favor da parte vítima do acidente. Os lordes decidiram que havia um contrato entre os donos dos iates participantes da competição. O fato da existência de contratos verticais entre o clube de iates e os donos dos iates participantes, que por sua vez concordaram em se submeter às regras daquela competição, criou um contrato horizontal implícito entre os donos competidores mesmo sem eles terem contratos entre si. Assim, o dono do iate vítima pode, sim, processar o dono do The Satanita com base no regulamento da competição, que era obviamente mais vantajoso.
E qual a atual importância desse caso? Ele foi usado como referência pelo Judiciário inglês para decidir uma disputa judicial envolvendo o Everton Football Club no ano passado.
Em Mercato Sports (UK) Ltd vs. Everton FC [2018], um futebolista (“AB”) foi contratado pelo Everton. Mercato, uma agência empresária de atletas, alegou que eles haviam indicado AB ao Everton e, portanto, teriam direito a receber pagamento pelos seus serviços, mesmo não havendo um contrato por escrito entre as partes, ou, alternativamente, baseado no enriquecimento ilícito do Everton.
Everton defendeu-se alegando que o Judiciário deveria suspender os autos para que as partes pudessem usar de arbitragem, de acordo com a regra K do regulamento da Football Association. Essa regra prevê que todos os participantes de suas competições (clubes, jogadores e empresários) devem resolver suas disputas por meio de um processo de arbitragem especializada. A regra K serve como cláusula arbitral. Mercato, por sua vez, alegou que, por não ser uma agência empresária registrada na Football Association, não estaria sujeita à regra K. Porém, durante sustentações orais pelos advogados das partes, ficou claro que Mercato havia sido registrada naquela instituição em anos anteriores, mas não havia renovado o registro recentemente.
Ao fundamentar a decisão, o Judiciário inglês citou The Satanita e determinou que, para que a regra K seja aplicável como cláusula arbitral, deve existir um contrato entre as partes (cuja existência depende da doutrina tradicional de formação de contratos); ou que ele pode ser implícito entre partes que não têm contrato entre si (contrato horizontal), desde que elas tenham contratos separados (contratos verticais) com uma terceira parte em comum, assim as comprometendo às regras estipuladas por aquela terceira.
Tendo em vista a revelação de que a Mercato havia sido registrada como agência intermediária na Football Association, o Judiciário inglês determinou a existência de um contrato vertical entre Mercato e a Football Association e, por consequência, um contrato horizontal entre Mercato e Everton Football Club. Mas o Judiciário foi além. Determinou que, mesmo que a Mercato não tivesse sido registrada, ainda deveria se submeter aos regulamentos da Football Association, porque suas atividades se enquadram nas definições de “participante” daquela instituição por conduzir atividades sancionadas pela Football Association. Assim, devido ao fato de as partes estarem sujeitas aos regulamentos daquela instituição, a disputa está coberta pela regra K. O processo foi suspenso, e as partes submetidas a arbitragem.
Esses dois casos são de extrema relevância tendo em vista o volume de negócios da Premier League – a temporada 2017/2018 movimentou cerca de £ 211 milhões em pagamentos para empresários. Portanto, é importante que clubes, empresários e atletas tenham sempre contratos por escrito, para evitarem disputas caras e estressantes sobre a formação de contratos, e que tais contratos sejam feitos por advogados especializados.