A Fifa decidiu: irá levar o próximo Mundial de 2034 para a Arábia Saudita. Uma escolha que não representa um crime, mas que – sem dúvida – escancara mais uma derrota para a política de direitos humanos da própria entidade.
A Arábia Saudita é um país que não respeita a proteção internacional de direitos humanos. Segundo a Anistia Internacional, o país pratica uma repressão implacável contra ativistas pacíficos, jornalistas e académicos, está todos os anos no topo dos países que mais praticam a pena de morte, com dezenas de pessoas executadas a cada ano, tem uma política discriminatória contra mulheres e não permite a liberdade religiosa, a tortura é instrumento rotineiro de trabalho oficial e o país é acusado de matar e esquartejar um jornalista no exercício da profissão.
Em agosto desse ano, o órgão internacional de direitos humanos, Humans Right Watch (HRW) divulgou um relatório nesta segunda-feira (21) em que acusa os guardas da fronteira do país de atirarem e jogarem bombas contra imigrantes vindos da Etiópia.
O grupo de direitos humanos citou relatos de testemunhas oculares de ataques de tropas e imagens que mostravam cadáveres e cemitérios nas rotas de migrantes, dizendo que o número de mortos pode até ser “possivelmente milhares”.
Teria mais, mas dá para parar por aí.
Esporte como máquina de lavar imagem
Claro que um país como a Arábia Saudita, assim como recentemente o Qatar e a Rússia, usam de eventos esportivos para tentar melhorar sua imagem internacional. É o que se passou a chamar de Sportswashing.
O Sportwashing é uma estratégia de marketing que utiliza o esporte para reposicionar a imagem de uma marca, produto ou país. Uma estratégia antiga, usada por Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de 1936 para propagar a ideologia nazista, por exemplo.
A Arábia Saudita faz o papel dela, mas a Fifa entrar nessa que nos leva a uma reflexão necessária. A entidade realmente leva a sério a política de direitos humanos que tem?
Ao levar o Copa para lá, a entidade, em nome de uma “internacionalização do futebol”, esquece direitos universais e também a própria política interna da entidade, que traz no Estatuto a proteção de direitos humanos.
A política de Direitos Humanos da Fifa
É importante entender que o fato de levar a Copa ou um Mundial para um país que desrespeita direitos humanos não é um crime. E isso não se discute.
Pessoas viajam para lá para fechar negócios sem cometer crime algum. Mas lá estando, não permitir atos em defesa de direitos humanos seria possível? Creio que não.
Ou seja, a Fifa vai realizar uma Copa num país que viola direitos humanos e não irá protegê-los durante esse período, como manda seus regulamentos. Irá silenciar, como fez na Copa do Qatar.
A verdade é que o mundo exige hoje de todos, inclusive das entidades esportivas uma política ativa, ou seja, de proteção de direitos humanos. A postura passiva, de apenas respeitar direitos humanos já é muito pouco.
É nessa permanente contradição que a Fifa insiste em ficar.
Esporte não se afasta do direito e o direito tem como base a proteção de direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos, tratados internacionais e os próprios regramentos internos da Fifa reforçam esse compromisso inegociável.
Basta dar uma olhada no estatuto da entidade, a “constituição” do movimento privado do futebol.
No art 4. 2, a entidade se declara neutra em matéria política e religiosa (tentando proteger a utopia da neutralidade esportiva). Mas complementa escrevendo que exceções se darão em casos que dizerem respeito aos objetivos estatutários da Fifa.
Um pouquinho antes, o artigo 3 do estatuto diz que a Fifa protege direitos humanos.
A entidade traz ainda a Política de Direitos Humanos apresentada em 2017 e um novo Código Disciplinar que se tornou mais rigoroso no combate ao preconceito.
O retrocesso evidente
Depois do Fifagate – escândalo de corrupção que derrubou a cúpula da entidade – a FIFA criou uma agenda positiva e estabeleceu expressamente compromisso de se articular construtivamente com os Estados para sustentar a sua política de direitos humanos.
Um dos avanços significativos foi o de que a observância desses direitos passaria a ser critério para a escolha das sedes dos eventos da entidade.
Então, para a escolha da sede da Copa de 2026 e de 2030, critérios de compliance e de direitos humanos foram colocados como indispensáveis para a escolha do país sede.
A partir dessa nova política, a organização mandava um recado de que exigiria que as revisões de direitos humanos fizessem parte do processo de licitação de seus eventos.
Mas no processo de escolha da Copa de 2034, a Fifa já esqueceu dessas regras.
Fifa precisa decidir se respeita ou não direitos humanos
A determinação de levar a Copa para a Arábia Saudita traz um retrocesso gigante a conquistas históricas e recentes da entidade. E é fundamental agir, levantar dentro do ambiente esportivo o debate necessário e contemporâneo indispensável à sociedade, aos Estados e aos organismos internacionais.
O esporte não se afasta do direito e o direito não se afasta da proteção de direitos humanos. Ou seja, direitos humanos deveriam ser elementos intrínsecos ao esporte, base da construção de suas regras privadas.
A verdade é que a Fifa precisa decidir se abraça ou não sua política de direitos humanos. A autorregulação não pode ser só propaganda institucional, precisa ser guia concreto de conduta.
Crédito imagem: Divulgação/SAAF
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