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Copa no Catar: ela ajudou ou não na proteção de direitos humanos? Sim e não

Qual é o poder transformador do esporte? Uma pergunta difícil de responder, mesmo que muitos saiam por aí falando sempre sobre “legado”. Mas temos um aliado, a pesquisa, o aprofundamento acadêmico, que pode ajudar a dar uma ideia. Um exemplo, um trabalho sobre a Copa do Qatar e avanços na proteção de direitos humanos.

Saiu agora em março no German Law Journal, um conceituado espaço de direito comparado europeu e internacional, uma edição especial comandada por Antoine Duval e Daniela Heerdt, uma série de artigos que tem como reflexão ‘A Copa do Mundo da FIFA e a luta por Direitos Humanos no Qatar”

Com textos dos editores, de Carl Lewis, Andrew Brady Spalding, Shubham Jain, entre outros, os artigos se focam em especial a duas questões que pulsaram antes, durante e após o mundial: as condições de trabalho dos imigrantes no Qatar e os ataques a comunidade LGBTQIA+.

Num resumo, o que se tem são alguns avanços nas questões trabalhistas e nada de significativo nas questões ligadas ao preconceito a homofobia.

Questões trabalhistas

Muito se escreveu, inclusive neste espaço, sobre as condições de trabalho dos imigrantes que levantaram a estrutura da Copa do Mundo. Submetidos ao sistema Kafala, eles eram os escravos da Copa.

Em função da pressão de coletivos globais, da imprensa, de patrocinadores, de processos internacionais – o país árabe apresentou algumas reformas importantes que derrubaram aspectos-chave do sistema kafala , como a possibilidade dos trabalhadores de mudar de emprego sem a necessidade de aprovação do empregador e aos trabalhadores expatriados o direito de sair do país sem necessidade de autorização do empregador.

Claro que a conquista foi importante e teve a Copa como protagonista, como bem traz Carl Lewis na German Law “Afinal de contas, como destaca Qadri, as leis laborais do Qatar não receberam um escrutínio internacional especial até que o país teve a oportunidade de acolher o Campeonato do Mundo e parecem ter sido reformadas em resposta às críticas globais feitas contra o Qatar ao receber o direito de acolher o Campeonato”.

Recentemente, relatórios de organizações internacionais apontaram as reformas como “cosméticas”, ou seja, apenas maquiagens para efeito externo. Mas a vigilância aumentou, e a estratégia “cosmética” de países também passou a ser um alvo de atenção na luta por direitos humanos.

Esses progressos em matéria de direitos laborais sublinham a importância de reunir as partes interessadas (tanto os titulares de deveres como os titulares de direitos, como coletivos globais, esporte, atletas, organizações internacionais), construindo coligações e movimentos de solidariedade e empreendendo mudanças estruturais abrangentes e coordenadas. Agora, o exemplo do mundial mostra também a importância de se entender o contexto local e capacitar os defensores dos direitos locais e os grupos comunitários que estão em melhor posição para ajudar na identificação de problemas e preparar soluções para avanços efetivos.

O combate ao preconceito

Diferentemente das questões trabalhistas, as análises com relação ao movimento de defesa do movimento LGBTQIA+ não mostram avanços em função da Copa, pelo contrário.

A explicação pode vir de Andrew Brady Spalding, que traz na introdução do seu artigo uma distinção importante entre princípios e práticas. “Distingue entre princípios, que estão profundamente enraizados no sistema de crenças políticas, culturais ou religiosas de um país, e práticas, que encontram o seu apoio na conveniência, no lucro e no interesse próprio de poderes entrincheirados, mas que carecem de uma visão cultural, filosófica, ou fundamentação religiosa. “

Aqui, práticas são trabalhistas; princípios, a questão do orientação sexual. Quando se trata de princípios, o desafio é sempre muito maior.

É Shubham Jain que traz um alerta importante: “os defensores dos direitos humanos, com todas as suas melhores intenções, podem não “saber o que é melhor”.

É o que lá atrás vários pensadores, como Max Weber, já escreveram e chamavam de etnocentrismo, que vem a ser um olhar de fora, um julgar o outro, outras culturas, com valores diferentes, com valores próprios. É entender o mundo apenas sob seu modo de viver.

O Catar criminaliza as relações e a expressão cultural entre pessoas do mesmo sexo. Membros da comunidade LGBTQIA+ foram forçados pelas autoridades a rastrear outros membros da comunidade em troca da sua própria segurança.

Lembro também de escrever aqui que embora o Emir do Qatar afirmasse pessoas LGBTQIA+ seriam bem recebidas no Qatar, não foi o que se viu. O país exigia que os visitantes respeitassem a cultura do Qatar.

A FIFA, com o aplauso discreto do país-sede, inclusive impediu que as seleções nacionais de futebol usassem as braçadeiras de arco-íris “One Love” ,ameaçando punição desportiva. Ou seja, regulamentos privados exercendo força coercitiva para in ibir a defesa de direitos humanos.

Claro que a Copa colocou a comunidade local no centro das atenções, mas, infelizmente, as sujeitou a consequências negativas, incluindo um aumento dos abusos e o facto de os catarianos gays terem sido forçados a denunciar outros membros da comunidade. Ou seja, a ideia de levantar uma bandeira de combate ao preconceito em um país que tem o combate a comunidade LGBTQIA+ como principio, sem levar em conta os contextos e vozes locais, pode ter feito mais mal do que bem.

Talvez valha a lição de Jain “O desafio é defender o universalismo quando necessário e aceitar o relativismo quando possível.”

O que fica?

Grandes eventos tem ou não um poder transformador? Desculpa, mas a resposta pode ser: depende.

Depende da capacidade de mobilização. Depende da cultura de cada lugar. Depende da atenção que se dá aos grupos que sofrem violações de direitos humanos.

Trago aqui uma frase de Will Todman, em artigo para o CSIS,

“Os protestos públicos desafiadores e perturbadores têm sido certamente um factor-chave do sucesso dos movimentos pelos direitos civis em todo o mundo. Mas quando foram bem-sucedidas – na África do Sul, na Europa Oriental e noutros locais – foram lançadas pelos próprios intervenientes nacionais, nos momentos e locais que as próprias pessoas afetadas consideraram apropriados.”

Direitos Humanos e sua universalidade têm freios locais, específicos de cada comunidade, enraizados na cultura. Nesses casos, o esporte pode ser um catalizador de pequenos avanços, que já podem significar muito pra quem vive sob opressão e desencadear mais debates e caminhos.

O que a reflexão dos textos me mostra é que os direitos humanos são, sim uma ferramenta importante de linguagem crítica para alcançar mudanças significativas a partir dos contextos desportivos, mas com limitações inerentes.

Mais ou menos como a Ilha de Malthus, a Utopia. É pouco provável que encontremos o lugar perfeito, as respostas absolutas, mas devemos aproveitar o caminho e tentar.

Crédito imagem: Marvin Ibo G’ng’r/picture-alliance/dpa/AP Images

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