Por Carlos Henrique Ramos
Em maio de 2022, aqui mesmo no Lei em Campo, publicamos pequeno ensaio versando sobre o papel da Justiça Desportiva no enfrentamento ao preconceito no esporte por atos dos torcedores[1], a partir do qual demonstramos certa preocupação com a possibilidade da punição aos clubes por meio da dedução de pontos. Naquele momento, já saltava aos olhos o absurdo e crescente número de manifestações de cunho racista e homofóbico em partidas disputadas em solo brasileiro e nas competições continentais sul-americanas, sendo que, nestas últimas, muitas das manifestações (nestes casos, racistas) são comumente dirigidas a torcedores brasileiros. Não obstante, não há dúvidas de que os reiterados e abusivos ataques racistas sofridos pelo atleta Vini Jr. na Espanha, especialmente no ano de 2023, projetaram novas luzes no debate e reacenderam o interesse da comunidade internacional desportiva no tema.
Aos poucos, as reações no âmbito desportivo a tais comportamentos vão transfigurando-se da permissividade para a reprovação, como fruto da necessária e umbilical relação entre o esporte e a proteção aos direitos humanos, embora o movimento de combate aos atos discriminatórios no esporte não seja tão recente como possa parecer.
No Brasil, a partir de 2019, a Procuradoria do STJD do Futebol passou a emitir recomendações para que clubes e federações promovam campanhas educativas de caráter preventivo junto aos torcedores e para que os árbitros relatem nas súmulas quaisquer manifestações preconceituosas ocorridas durante as partidas. Na seara disciplinar, o art. 243-G, em seu caput e §2º do CBJD, já previa que a prática de ato discriminatório relacionado a preconceito em razão de raça ou sexo por parte dos torcedores traz a possibilidade de responsabilização das entidades de prática desportiva (clubes) com pena de multa, além de que os torcedores porventura identificados ficarão proibidos de frequentar a praça esportiva. Há, ainda, nos termos do §3º, a possibilidade de que, se a infração for considerada como de extrema gravidade, o órgão da Justiça Desportiva aplique as penas previstas nos incisos V, VII e XI do art. 170 do CBJD, quais sejam, perda de pontos, perda de mando de campo e exclusão de competição. A princípio, o referido dispositivo vinha sendo aplicado pela Justiça Desportiva no sentido de punir os clubes exclusivamente com pena de multa, pois, a princípio, os atos preconceituosos não seriam considerados como graves.
Em resposta aos eventos, naquela mesma época do ano (maio/2022) tivemos a chamada “Reforma da CONMEBOL”, que pode muito ser atribuída às pressões e ao papel ativo que o, na época, recém-empossado Presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, vinha exercendo sobre a entidade continental. A CONMEBOL, cujo Tribunal Disciplinar até então também se limitava a aplicar a pena de multa, alterou seu Código Disciplinar no art. 17 para elevar a multa mínima aos clubes de 30 (trinta) para 100 (cem) mil dólares por atos preconceituosos dos torcedores, havendo a possibilidade, ainda, de imposição da necessidade de atuação sob portões total ou parcialmente fechados, fora outras sanções adicionais caso assim demandem as circunstâncias particulares do caso.
A CBF, na mesma esteira, incluiu no Regulamento Geral de Competições (RGC) de 2022 o parágrafo único no art. 54, no sentido de considerar como de extrema gravidade as infrações de cunho discriminatório praticadas nas competições por ela organizadas. A referida modificação mostrava-se muito mais profunda e estrutural do que poderia parecer, visto que poderia atrair a aplicação do mencionado §3º do art. 243-G do CBJD (que fala em elevada gravidade), fazendo com que os clubes, além de multados, possam ter pontos deduzidos, perder mandos de campo e/ou serem excluídos de competições da CBF por conta de atos preconceituosos de seus torcedores, a depender da atuação da Procuradoria do STJD quanto às denúncias e da postura dos julgadores.
Já na versão 2023 do seu RGC, a CBF deu prosseguimento às novas orientações ao repisar no art. 134 que as infrações de cunho discriminatório praticadas por dirigentes, representantes e profissionais dos Clubes, atletas, técnicos, membros de comissão técnica, torcedores e equipes de arbitragem serão consideradas como de extrema gravidade. Ademais, por novidade, embora salte os olhos uma certa insegurança jurídica sobre como tal procedimento ocorrerá e pairem certas dúvidas até mesmo sobre sua legalidade estrita, a punição a tais atos pode agora ser imposta administrativamente pela entidade, encaminhando-se o caso ao STJD, que dará a palavra final sobre a possibilidade de aplicação da perda de pontos ao clube infrator, fora a eventualidade de aplicação de multa administrativa pecuniária em dobro em caso de reincidência.
A FIFA também manifestou preocupação a partir da crescente identificação de atos discriminatórios praticados por torcedores em suas competições e buscou alterar, ainda que timidamente, sua política de direitos humanos. A entidade incluiu o combate ao racismo como um dos pilares do seu Código Disciplinar, especialmente ao atribuir poderes aos árbitros para, ao identificar atos racistas em uma partida, aplicar um “procedimento de três etapas”: solicitar um anúncio público para exigir que tal comportamento pare, suspender o jogo até que essas atitudes cessem e, finalmente, abandonar a partida definitivamente atribuindo a derrota ao infrator. Tal protocolo já chegou a ser acionado em diversas competições, embora sem chegar à consequência derradeira. A FIFA também elevou de cinco para dez jogos o período de suspensão para atletas e demais atores envolvidos em práticas discriminatórias. Após os episódios envolvendo o atleta Vini Jr., o Presidente da FIFA também prometeu criar um grupo de trabalho antirracismo sob a liderança do próprio jogador, que já se tornou um símbolo mundial no combate ao racismo.
Embora seja louvável a guinada da FIFA, tememos que tais medidas não passem do campo simbólico, embora reconheçamos que certos simbolismos sejam importantes para dar visibilidade e despertar maior sensibilidade da sociedade para certas causas ou bandeiras. No mais, os sinais dados pela entidade são contraditórios, muitas vezes em sinal invertido. Explica-se. Em um momento, defende medidas contundentes contra o preconceito e em outro prega neutralidade e proíbe a braçadeira “One Love” na Copa do Catar (orientação mantida para a Copa do Mundo Feminina de 2023 na Austrália e Nova Zelândia, embora a entidade tenha avançados em outras flexibilizações); em dada altura, prevê em seus estatutos uma política de direitos humanos, mas ao mesmo tempo realiza muitas de suas competições em países autoritários com longa tradição de violação a tais direitos, especialmente das mulheres. Enfim…
A grande questão que se coloca é seguinte: o que mudou desde a publicação do nosso último ensaio, há pouco mais de um ano? Muito pouco: algumas ações são simbólicas e outras mais funcionam como indicativos ou planos futuros de ação. O que salta aos olhos, infelizmente, é o notório e substancial incremento do número de casos de atos discriminatórios identificados, sejam eles racistas ou homofóbicos, praticados pelas torcidas mundo afora, mesmo após tamanha repercussão.
Ainda assim, no Brasil, é possível destacar um recentíssimo episódio que guarda certo caráter histórico.
Em junho passado, a 3ª Comissão Disciplinar do STJD, com base no art. 243-G do CBJD, puniu o Corinthians com a perda de um mando de campo em virtude de cânticos homofóbicos entoados por sua torcida no clássico contra o São Paulo pelo Campeonato Brasileiro. A partida chegou a ser interrompida aos 17 minutos do segundo tempo pelo árbitro e, somente após vários alertas emitidos no telão e no sistema de som do estádio, a partida pôde ser retomada após cerca de 4 minutos. Este foi praticamente o primeiro julgamento em um caso de maior repercussão envolvendo atos discriminatórios após a publicação do RGC 2023 da CBF, daí seu caráter histórico e de grande simbolismo, especialmente em virtude de envolver, como infrator, o Corinthians, clube de grande apelo popular e que, curiosamente, sempre apresentou como um “clube do povo”, democrático e que cultua importante valores historicamente ligados aos direitos humanos.
O clube interpôs recurso voluntário e, inicialmente, obteve o efeito suspensivo para disputar a partida seguinte, contra o RB Bragantino, com portões abertos, aguardando a decisão do referido recurso. No dia 06/07, o Pleno do STJD, por maioria de votos, decidiu por manter a punição ao Corinthians com a perda de um mando de campo com portões fechados, a ser cumprida no jogo contra o Vasco da Gama, no dia 29 de julho. Os auditores, em síntese, ressaltaram a gravidade dos cânticos, que não devem mais ser tolerados na sociedade atual e, diante da reincidência do clube infrator, cuja torcida já havia entoado cânticos homofóbicos no mesmo clássico no ano passado, a perda do mando do campo seria a punição mais adequada neste momento diante da circunstância agravante, ainda mais diante do fato de o próprio STJD já ter aplicado a pena de multa no episódio anterior.
O julgamento, apesar de histórico, acabou inicialmente ofuscado pela aprovação da nova Lei Geral do Esporte. Ainda assim, mesmo que pouco comentado, trouxe indicativos importantes de uma possível ressignificação do olhar do STJD do futebol sobre os atos discriminatórios, indo ao encontro do entendimento que defendemos no estudo anterior.
Como é sabido, a punição aos clubes por atos dos torcedores já deixou de ser uma novidade em si há tempos. O problema é que, em relação aos cânticos racistas e homofóbicos, a questão é substancialmente mais complexa do que aquela envolvendo a punição dos clubes por conta de falhas na segurança ou arremesso de objetos em campo, por exemplo. Sustentamos que, se as agremiações podem exercer algum tipo de vigilância sobre o comportamento dos torcedores e impor medidas preventivas e de vigilância no campo da segurança, não há como controlar previamente aquilo que as pessoas falam ou como se manifestam. No máximo, podem empreender campanhas educativas em suas redes sociais e nos autofalantes dos estádios, mas com eficácia sabidamente muito limitada. A questão de fundo é social, comportamental, de modo que uma simples transferência de tal responsabilidade aos clubes seria, a nosso ver, algo absolutamente desproporcional, ainda mais quando se verifica a impossibilidade de comprovação do nexo causal entre a conduta dos torcedores e a postura dos clubes, o que deveria ser o pressuposto de qualquer tipo de responsabilização na seara da teoria geral do direito.
Daí que a proposta que viemos sustentando no sentido de que a Justiça Desportiva, ao julgar tais infrações, deve adotar uma postura de autocontenção. Na dosimetria da pena, defendemos que o órgão julgador deveria aplicar a multa como sanção inicial, aliada à perda do mando de campo. A perda de pontos, embora haja grande pressão para que esta seja a sanção inicial, especialmente dos meios de comunicação especializados, deveria ficar restrita apenas a casos de eventual reincidência, que atuaria como circunstância agravante.
A punição desportiva dos clubes por meio da perda do mando de campo por atos preconceituosos de seus torcedores seria seguramente a sanção (inicial) que preservaria um dos princípios mais basilares do direito desportivo: o da pró-competição. Tal postulado busca preservar a prevalência e a continuidade das competições, evitando ataques indevidos ao esporte e preservando o resultado validamente produzido dentro de campo, os quais só podem ser alterados por falha grave o suficiente para macular a disputa em si. Tratar-se-ia de sanção absolutamente proporcional e adequada ao objetivo de punir os clubes, que serão desportiva e financeiramente afetados pela ausência de público, fora o caráter educativo aos próprios torcedores. Mas sob o ponto de vista puramente desportivo, a Justiça Desportiva, mais contida, não imporia uma sanção definitiva (o clube punido ainda pode performar e vencer seus jogos) que poderia alterar a tabela das competições e que certamente decidiria o resultado de campeonatos mais equilibrados.
A nosso ver, embora sem constar expressamente nas decisões, este parece ter sido o caminho percorrido pelo STJD no caso Corinthians que, agora sim, em futuros casos, corre o risco de perda de pontos, diante de uma eventual “segunda reincidência”. Aparentemente e, de forma elogiável, os auditores deixaram nas entrelinhas um escalonamento das sanções a depender da reincidência como circunstância agravante: multa, perda de mando de campo e dedução de pontos. Caso a Justiça Desportiva se arvorasse a atuar no calor do momento e sob forte comoção social pela aplicação imediata da pena de perda de pontos, poderia esta acabar por firmar precedentes excessivamente intervencionistas, de difícil administração no futuro e que destoam do seu perfil constitucional, fora o risco de estimular um denuncismo exacerbado por parte dos clubes visando a alterar o resultado das competições. Afinal de contas, quem gostaria de um campeonato decidido pelo Tribunal, fazendo voltar o velho sentimento de tapetão?
Os auditores, a nosso sentir, ao julgar atos de discriminação nos estádios praticados por torcedores, não devem se preocupar em “dar exemplo” nem buscar resolver o problema por meio de seus julgados. Seu papel é o de julgar as infrações (apenas!) com equilíbrio e de contribuir argumentativamente para o debate por meio de suas decisões, com respeito à legalidade e aos regulamentos vigentes. Caso contrário, abraçariam uma cômoda e indevida transferência de responsabilidades, as quais devem, em verdade, ser assumidas pelas entidades de administração do desporto e pelas autoridades, que poderiam começar, por exemplo, pelo investimento em inteligência e tecnologia com o escopo de identificação e punição dos torcedores responsáveis pelos atos discriminatórios na seara criminal.
Por derradeiro, pensamos que o verdadeiro enfrentamento do problema, muito além da responsabilização dos clubes pela Justiça Desportiva por conta de algo que aqueles têm imensa dificuldade de controlar, precisa passar pelo incômodo e pelo prejuízo econômico. Em algum momento será necessário deixar claro que com racismo e preconceito não vale a velha máxima do show must go on. E isto precisa ser algo muito mais assertivo e enfático do que o protocolo da FIFA atribuindo poderes aos árbitros para interromper partidas ou demais medidas implementadas até o momento. Diante dos inúmeros episódios de racismo envolvendo o atleta Vini Jr. na Espanha, por exemplo, por qual razão a CBF, que administra a maior marca do futebol mundial, agendou o amistoso Brasil X Guiné na própria Espanha em junho último? Já que a própria CBF pretendia divulgar o slogan “com racismo não tem jogo”, a seleção brasileira sequer deveria ter entrado em campo a partir do momento que houve relatos antes da própria partida da ocorrência de um episódio de racismo envolvendo o staff do jogador. Se havia compromissos comerciais anteriormente avençados, que se assuma o prejuízo. A mensagem passada acabou sendo a oposta: “o show precisa continuar mesmo com racismo, nada que aconteça nos fará retroceder, nossa ação é apenas simbólica e politicamente correta”. Os eventuais patrocinadores até suportariam prejuízos no curto prazo, mas a associação de suas marcas a valores ligados a causas humanitárias certamente renderia frutos no long run. Que se pense nisso.
Reconhecemos o caráter utópico desta última proposição, especialmente diante dos diversos interesses envolvidos na indústria do futebol. Mas quem não gosta de uma boa utopia? Do contrário, continuaremos buscando e aplicando soluções fáceis para um problema complexo e multifacetado.
Crédito imagem: Corinthians/Divulgação
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[1] RAMOS, Carlos Henrique. O papel da Justiça Desportiva no enfrentamento ao preconceito no esporte por atos dos torcedores. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-papel-da-justica-desportiva-no-enfrentamento-ao-preconceito-no-esporte-por-atos-dos-torcedores/. Acesso em 05/07/2023.