Search
Close this search box.

Counterfeity Liberty: o drama de Marcus “Buchecha” no ONE Championship

INTRODUÇÃO

Marcus “Buchecha” é um dos melhores lutadores de Jiu-Jitsu da história da modalidade no Brasil e, depois de assinar com o ONE Championship, o 13x campeão mundial da IBJJF e 2x medalhista de ouro do ADCC não luta desde sua derrota em agosto de 2023 por decisão para o senegalês Oumar Kane. “Buchecha” estava 4-0 na promoção antes dessa luta.

Falando nas redes sociais, Buchecha assim descreveu sua situação contratual:

“Muitas pessoas estão me perguntando ultimamente se eu me aposentei, a resposta é claro que não, a razão pela qual não estou lutando não é minha escolha, estou esperando por uma luta há quase um ano, mas não tenho sorte em conseguir uma luta, essa é a razão pela qual estou longe da gaiola ou do tatame.[1]

A situação que “Buchecha” narra é comum entre os atletas da luta. Os grandes eventos costumam ter cláusulas em seus contratos que impedem que o atleta possa fazer lutas em eventos concorrentes enquanto a duração de sua obrigação com o evento não cessa.[2]

Nesse ponto, os contratos do ONE conseguem ser, talvez, os mais restritivos do mercado da luta.

Em 2011, o ONE Championship foi fundado como uma para lutadores promissores de toda a Ásia. Em quase uma década, o ONE fez parcerias com outras organizações em outros países e passou a ter não apenas MMA, mas também Muay Thai, kickboxing e até mesmo E-Sports.

De prever a impossibilidade de manifestação pública do atleta em relação a qualquer assunto envolvendo o ONE, até permitir que o evento disponha da imagem do atleta depois de sua morte, as cláusulas contratuais do ONE estão entre as mais polêmicas dos eventos de luta.[3]

Isso tudo é permitido por conta da precarização a que é submetido o atleta de esportes de combate nos EUA. Meca da luta profissional, o país dita a forma como a indústria lida com os atletas em todos os demais países do mundo.

Dessarte, como não são feitas ressalvas em relação ao modelo de contratos em outros países que exploram tais atividades, tal fórmula é replicada sem óbice algum.

COUNTERFEITY LIBERTY: A FALSA LIBERDADE DO TRABALHADOR DA LUTA COM BASE NO MODELO DOS EUA

Adotando o mesmo modelo de contratos do UFC[4], o ONE se firmou como a maior organização de luta na Ásia depois de assinar contratos com várias estrelas dos esportes de combates.

Cingapura, foro dos contratos do ONE, adota, por força da colonização, o sistema da common law.[5] Isso significa que o país tende a uma aproximação natural com o sistema jurídico norte-americano, privilegiando uma maior liberdade contratual entre as partes, com mínima intervenção estatal, em que pese a hipossuficiência dos atletas frente ao evento.

Tal liberdade contratual, instituto que os estudiosos do direito do trabalho estadunidense denominam de counterfeit liberty (traduzido livremente como a liberdade falsificada), traz a ideia de uma liberdade contratual meramente formal e, na maioria dos casos, ilusória e fragilizada, sendo instrumento apto a viabilizar juridicamente as manifestações de vontade destinadas a suprimir a proteção social dos trabalhadores.[6]

O direito estadunidense apresenta uma longa tradição no sentido de analisar, conceitualmente, a noção de autonomia de vontade individual enquanto elemento de tipificação do contrato de trabalho e de construção de suas cláusulas.[7]

Desprovidas de um conteúdo apriorístico mandatório relevante, as relações de trabalho nos EUA sempre foram pautadas pela ideia de autonomia contratual, eventualmente mediada por contratos coletivos firmados com a interveniência dos sindicatos.[8]

Importante lembrar que os atletas da luta nos EUA não podem se sindicalizar por serem considerados contratados independentes.[9] Portanto, cabe apenas a estes e aos seus empresários, que muitas vezes têm ligação com os eventos[10],  as negociações contratuais com os promotores de lutas.

Contra “Buchecha”, para tentar se livrar do contrato, além do problema do foro, pesa ainda a questão da cláusula arbitral[11], sendo que os custos proibitivos[12] do processo (US$ 80.000 em média no caso de Cingapura), o tempo em média (13 meses) e a tendência de juízos arbitrais respeitarem o pacta sund servanda[13] podem refrear qualquer ímpeto do atleta em busca de uma solução para o impasse.[14]

CONCLUSÃO

 A situação de vários atletas de eventos de luta é similar a de “Buchecha”: nada recebem para esperar lutas e não podem lutar por outros eventos.

Qualquer solução que envolva os tribunais é complexa: a se considerar os posicionamentos de determinadas cortes, existem grandes chances de os contratos serem mantidos como estão e os atletas sigam à espera de oportunidades, ainda arcando com o prejuízo financeiro da demanda judicial.

Uma possível solução seria uma mudança na legislação norte-americana, a exemplo do que houve com o boxe. As limitações contratuais que hoje a legislação garante aos boxeadores impedem que passem pela mesma situação que atletas de outras modalidades.

Não obstante, isso ainda levará tempo. Resta esperar os desdobramentos do processo do UFC, que, caso venham a alterar os contratos do atleta da promoção, poderão impactar os demais eventos que os têm como modelo de negócios.

Crédito imagem: Divulgação ONE

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] https://www.instagram.com/p/C_iulh8OfY8/?utm_source=ig_web_copy_link.

[2] COSTA, Elthon José Gusmão da. O fim da cláusula de exclusividade em contratos de atletas da luta. Consultor Jurídico, Brasil, 11 maio 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-11/o-fim-da-clausula-de-exclusividade-em-contratos-de-atletas-da-luta/. Acesso em 7 set. 2024.

[3] Falei mais sobre essas cláusulas em: COSTA, Elthon José Gusmão da. Cale-se e lute! O drama contratual dos lutadores do ONE CHAMPIONSHIP. In: DUTRA, Lincoln Zub (org.). Direito do trabalho e direito econômico: diálogos e interconexões – Volume III. Leme – SP: Mizuno, 2024. cap. 8, p. 181-208.

[4] Que enfrenta complicado processo neste momento por conta de tais cláusulas. Ver mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. A Ação civil de classe contra o UFC e seus novos andamentos. Academia Nacional de Direito Desportivo, 1 dez. 2023. Disponível em: https://www.andd.com.br/artigos-academicos/a-acao-civil-de-classe-contra-o-ufc-e-seus-novos-andamentos. Acesso em: 8 set. 2024.

[5] FREITAS, Vladimir Passos de. Características do sistema de Justiça da República de Singapura. Consultor Jurídico, Brasil, 24 jun. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-24/segunda-leitura-caracteristicas-sistema-justica-republica-singapura/. Acesso em: 8 set. 2024.

[6] CORDEIRO, Wolney de Macedo. “Counterfeit liberty” e a autonomia de vontade individual no direito do trabalho brasileiro: como extinguir direitos sociais sem revogá-los. Revista Trabalho, Direito e Justiça, Curitiba-PR, v. 2, n. 3, p. e092, 2024. DOI: 10.37497/RevistaTDJ.TRT9PR.2.2024.92. Disponível em: https://revista.trt9.jus.br/revista/article/view/92. Acesso em: 8 set. 2024.

[7] Ibid, p. 4.

[8] Ibid.

[9] Mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. O sindicalismo no MMA. Lei em Campo, Brasil, 11 nov. 2022. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/o-sindicalismo-no-mma/. Acesso em: 8 set. 2024.

[10] COSTA, Elthon José Gusmão da. A regulação do agenciamento de atletas nos esportes de combate nos EUA. Lei em Campo, Brasil, 10 ago. 2022. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-regulacao-do-agenciamento-de-atletas-nos-esportes-de-combate-nos-eua/.  Acesso em: 8 set. 2024.

[11] COSTA, Elthon José Gusmão da. Cale-se e lute! O drama contratual dos lutadores do ONE CHAMPIONSHIP, Op. Cit., p. 199-200.

[12] Uma convenção de arbitragem é incapaz de ser executada quando a arbitragem “não pode ser efetivamente iniciada”. A incapacidade de executar a convenção de arbitragem é um fundamento mais prático. É um fundamento para anular uma convenção de arbitragem quando for física ou legalmente impossível de ser executada. Quanto à impenhorabilidade, quando uma parte impenitente não tem meios financeiros para participar da arbitragem, o direito de acesso à justiça pode ser violado. Nesse sentido, a impecuniosidade poderia ser considerada uma barreira legal. De fato, buscando defender o direito de acesso à justiça, a arbitragem seria impedida de ser iniciada. Sob essa ótica, a impecuniosidade poderia ser qualificada como um motivo pelo qual a convenção de arbitragem se tornou incapaz de ser executada nos termos da Convenção de Nova York. VAICEKAUSKAS, Vytautas. Impecuniosity in international commercial arbitration. Arbitražas: Teorija ir praktika, ISSN 2424-4295, Lituânia, v. IX, 19 dez. 2023. Disponível em: https://www.arbitrazas.lt/failai/_Zurnalas/2023/2023.2.Arbitrazas-Nr.9-Vytautas%20Vaicekauskas.pdf. Acesso em: 8 set. 2024.

[13] Os contratos existem para serem cumpridos. Este brocardo é tradução livre do latim pacta sunt servanda. É muito mais que um dito jurídico, porém. Encerra um princípio de Direito, no ramo das Obrigações Contratuais. É o princípio da força obrigatória, segundo o qual o contrato faz lei entre as partes. “Assim, se pode dizer que pacta sunt servanda é o princípio segundo o qual o contrato obriga as partes nos limites da lei.” ZUNINO NETO, Nelson. Pacta sunt servanda x rebus sic stantibus: uma breve abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/641. Acesso em: 8 set. 2024.

[14] Levando em conta a intenção declarada de Singapura de ser um centro para a comunidade de arbitragem internacional e seu desejo de ser favorecida por disputas internacionais, os tribunais de Cingapura tendem a equilibrar seu dever como guardião da política pública de Cingapura de observar uma questão mais humana relativa ao contrato de trabalho dos atletas – que não recebem para esperar lutas – e a atitude de Cingapura em relação à questão de fazer cumprir uma cláusula arbitral que não tenha fraude ou irregularidade a ser observada.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.