Temos nos deparado com casos submetidos à Câmara Nacional da Resolução de Disputas da CBF envolvendo controvérsias decorrentes do Contrato Especial de Trabalho Desportivo (CETD) ou contrato de empréstimo de atletas profissionais de futebol, este último de natureza civil, sem a existência de cláusula arbitral ou cláusula compromissória, mecanismo previsto em lei e utilizado para submeter um contrato à arbitragem.
Nesses tipos de contrato há possibilidade das partes, de comum acordo, optarem por eleger determinado foro do Poder Judiciário, sem óbice ao seu registro na respectiva entidade de administração do desporto – Federação local e Confederação Brasileira de Futebol.
Ocorre que, muitas vezes, uma das partes ingressa com ação no âmbito da CNRD para discutir questões atinentes a esses tipos de contrato, o que gera da parte contrária a alegação de ausência de jurisdição e competência da Câmara Nacional de Resolução de Disputas, com fundamento na Súmula 335 do STF[1] e art. 64 do CPC[2]”.
Entretanto, as decisões da CNRD vêm rejeitando esse tipo de preliminar por uma série de fundamentos que, a meu ver, s.m.j., não procedem.
Defende, em síntese, que a CBF previu em seu estatuto uma cláusula compromissória, obrigando os seus associados a submeter eventuais litígios ou conflitos relacionados ao sistema nacional do futebol à CNRD; que as normas citadas naquele regulamento estão em sintonia com a Lei n. 9.615/1998, que prevê a coexistência entre normas nacionais e internacionais específicas para a prática desportiva de cada modalidade, bem como reconhece sua validade quando aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto; que a suposta cláusula compromissória prevista no Estatuto está em consonância com a legislação brasileira; que os clubes se comprometeram a observar as normas das referidas entidades; que bem antes de firmar os contratos já estavam submetidos à jurisdição da CNRD; e que um documento particular celebrado entre os clubes litigantes não tem o condão de afastar as obrigações às quais se sujeitaram no ato da filiação.
Pois bem. É sabido que para um atleta participar de uma partida, é necessário que tenha o contrato formal de trabalho desportivo com a associação (condição legal); tenha este contrato tenha sido registrado junto a entidade dirigente da modalidade – Federação local e CBF; não pode estar com pendências na Justiça Desportiva ou cumprindo pena de suspensão; e estar em pleno estado de saúde física, mental e sensorial.[3]
Destarte, o vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva somente se constituirá válido após o registro do contrato na entidade de administração do desporto. E, nesses casos em análise, se não houve impugnação ou impedimento, e ao atleta foi dada condição de jogo para atuar nas partidas organizadas pela Federação local e CBF, não há como sustentar a invalidade de qualquer uma das cláusulas daquele contrato, inclusive no tocante a eleição de foro distinto da CNRD.
De fato, sem qualquer vício de vontade, de comum acordo, as agremiações envolvidas no negócio jurídico renunciaram a toda e qualquer disposição prevista nos estatutos da CBF e da Federação local, sem qualquer reprimenda daquelas entidades, muito pelo contrário. A partir do momento em que o contrato foi registrado, houve a chancela formal do que fora pactuado, caracterizando o ato jurídico perfeito e direito adquirido das partes aos termos daquele contrato.[4]
Nos termos do artigo 5°, inciso XXXVI, da CF/88, a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, não havendo que se falar em nulidade do contrato em geral.
Portanto, não se sustenta a tese de que os clubes se filiaram às entidades desportivas dirigentes, no exercício de sua liberdade e autonomia constitucionalmente asseguradas e que surgiu para ambos a obrigação de reconhecer os estatutos e regulamentos aplicáveis à prática formal do futebol, em observância ao caráter associativo da relação dos clubes com as entidades dirigentes, assim como não procede a tese de que a existência de cláusula de eleição de foro no Contrato de Empréstimo não afasta a competência da CNRD para avaliar os litígios que façam parte do seu rol de atribuições.
Com toda a vênia, não pode em hipótese alguma ser ignorada a vontade das partes e a celebração de acordo renunciando a arbitragem, optando pela submissão da celeuma ao Poder Estatal, em respeito a segurança jurídica e legalidade. Ao registrar o contrato de empréstimo a entidade do desporto chancelou a livre vontade das partes nesse particular.
O princípio da vedação ao comportamento contraditório possui ligação direta com o princípio da boa fé objetiva, o qual visa proporcionar às partes contratantes maior segurança jurídica nas negociações, as quais deverão apresentar comportamento coerente com o objetivo a ser alcançado, ou seja, no âmbito do Direito Obrigacional, as partes devem ser fiéis com o que está sendo contratado de livre e espontânea vontade por elas.
É defeso às partes e entidades vinculadas ao caso discutirem que a eleição de foto seria ilegal, contrária às normas estatutárias ou colidiria com os termos do que fora pactuado. Se assim entendiam, que não registrassem o contrato e impedissem a condição de jogo do atleta. Nos parece que restou acobertada pelo manto da preclusão.
O venire contra factum proprium também guarda íntima relação com a vedação de alegação da própria torpeza, pois se trata de princípio geral do direito que se irradia por todo o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente nas relações obrigacionais e contratuais.[5] Seu escopo é fazer com que as partes contratantes e terceiros diretamente envolvidos (entidades de administração do desporto), comportem-se de forma leal nas relações contratuais e obrigacionais, tal princípio, busca preservar a confiança e a segurança jurídica, a fim de proteger a expectativa gerada à contraparte a qual a manifestação de vontade foi direcionada.
Por fim, aquele que apresenta determinado comportamento no meio jurídico, principalmente nas relações mais ligadas ao Direito das Obrigações, não poderá simplesmente escusar-se das consequências jurídicas provenientes de sua manifestação de vontade, a fim de frustrar a expectativa gerada na outra parte que, de boa fé, confia e acredita nos efeitos que aquele determinado comportamento poderá gerar em seu favor.
Não menos relevante ressaltar que o sistema de arbitragem previsto na Lei nº 9.307/96 pode ser recusado consensualmente pelas partes, eis que intimamente ligado ao princípio da autonomia da vontade para que possa ser instaurado.
Igualmente, também podem renunciar – sempre consensualmente – a sua instauração, optando por submeter qualquer controvérsia ao Poder Estatal. Sob a dicção de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, a Constituição da República empalmou o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, em síntese, de um lado, outorga ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição e, de outro, faculta ao indivíduo o direito de ação, ou seja, o direito de provocação daquele.[6]
Portanto, nada justifica obrigar uma das partes a se submeter ao regime da CNRD, quando elas mesmo optaram por eleger foro distinto para dirimir litígios ou dúvidas oriundas do contrato.
Imperioso ressaltar que nesses casos sequer costuma ser levantada a hipótese de abusividade da cláusula de eleição de foro do contrato, sendo defeso a uma das partes criar situação completamente inusitada entendendo que a solução do seu problema será mais célere recorrendo ao CNRD.
Com relação ao contrato de natureza cível – empréstimo de atleta – se aplicam as normas do Código Civil de 2002 e Código de Processo Civil de 2015, juntamente com as súmulas e jurisprudências do tribunal competente para analisa-lo. Restaram, portanto, atendidas as formalidades do artigo 63 do CPC/15, verbis:
“As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.
- 1º A eleição de foro só produz efeito quando constar de instrumento escrito e aludir expressamente a determinado negócio jurídico.” – destacamos.
Por sua vez, a questão se torna ainda mais cristalina quando se trata de analisar a competência para dirimir questões vinculadas ao contrato especial de trabalho desportivo, por força da norma constitucional do artigo 114 da CF/88, que expressamente reconhece a competência da Justiça do Trabalho.
Além do que, o artigo 90-C da Lei 9.615/1998 dispõe que:
“Art. 90-C. As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva.
Parágrafo único. A arbitragem deverá estar prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho e só poderá ser instituída após a concordância expressa de ambas as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso arbitral”.
Ou seja, ainda que constasse no contrato de trabalho eventual cláusula arbitral, seria imperiosa a existência de acordo ou convenção coletiva de trabalho que preveja a arbitragem, sob pena de nulidade. A previsão do artigo 90-C, parágrafo único, da Lei n. 9.615/1998 tem prevalência sobre a disciplina do artigo 507-A da CLT, por se tratar de norma especial que se sobrepõe à regra geral.
Inclusive, o art. 3º, II, do Regulamento da Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD, reconhece que:
“Art. 3º – Sem prejuízo do direito de qualquer atleta, treinador, membro de comissão técnica ou clube recorrer aos órgãos judicantes trabalhistas para dirimir litígios de natureza laboral, na forma da lei, a CNRD tem competência para conhecer de litígios:
(…)
II – entre clubes e atletas, de natureza laboral, desde que de comum acordo entre as partes, com garantia de um processo equitativo e respeito ao princípio da representação paritária de atletas e clubes;”
Consta expressamente que o referido regramento não afasta a competência da Justiça do Trabalho, matéria constitucional que não pode ser fulminada por Lei Ordinária e, menos ainda, por regulamento ou ato normativo de entidade privada.
Considerando que as partes simplesmente renunciaram qualquer outro foro, sem desigualdade intelectual entre elas, a incompetência relativa não pode ser declarada de ofício, menos ainda por órgão administrativo de uma entidade privada (CBF). Caso contrário, restará caracterizada a violação dos princípios da boa-fé objetiva, da inafastabilidade do judiciário, da legalidade, do devido processo legal e da segurança jurídica.
Outro ponto polêmico merece ser estudado. Suponhamos que a eleição de foro e a posterior renúncia ao procedimento arbitral constante no Estatuto da CBF não fossem válidas. Ainda assim, o procedimento arbitral deveria ser analisado em sintonia com o ordenamento pátrio que utiliza o modelo do civil law, sem a submissão exclusiva ao regulamento da FIFA.
A cláusula compromissória é um dispositivo contratual em que é estabelecido que a solução de conflitos decorrentes do contrato deve ser resolvida através da arbitragem. A existência válida da cláusula em questão afasta atuação do Judiciário conforme o inciso do VII, art. 485 do Código de Processo Civil, segundo o qual, “o juiz não resolverá o mérito quando acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência”.
A Lei nº 9.307/1996 que trata sobre arbitragem dispõe em seu art. 4º, § 2º que a cláusula compromissória só terá eficácia nos contratos de adesão – estatutos ou regulamentos – quando o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar expressamente com sua instituição através de documento anexo ou em negrito com assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.[7]
Para tanto, seria obrigatória a existência de documento escrito anexado ao estatuto da CBF e Federação em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula nos autos, permitindo fosse utilizado o procedimento arbitral do CBMA ou privado da CNRD.
A convenção de arbitragem se caracteriza como negócio jurídico, devendo ser respeitada a regra dos artigos 104 e 166 do Código Civil que tipificam a invalidade do negócio jurídico, que poderá ser considerado nulo ou anulável.[8] São alguns deles: carência de agente capaz; objeto lícito, possível e determinado; e, forma prescrita ou não defesa em lei, ou ainda a existência de vício na manifestação e vontade.
Também, é polêmico considerar válida qualquer arbitragem cujas partes sejam impedidas de escolher os árbitros, tal como o procedimento ora imposto pelo CNRD, ao arrepio do que fora pactuado pelas partes com a anuência das entidades do desporto.
A fim de evitar a subversão da ordem jurídica, deve o intérprete sempre interpretar a lei à luz da Constituição, e não o contrário. É sabido que o ordenamento jurídico é um sistema de normas (regras ou princípios) que se relacionam de uma forma hierarquizada. Esse sistema é coerente e completo e capaz de superar as lacunas e antinomias das normas. Tem como objetivo atingir o melhor convívio social e a paz social., sendo baseado na obra de Hans Kelsn (Teoria Pura do Direito) e Norberto Bobbio (Teoria do Ordenamento Jurídico).
O primeiro e mais relevante critério solucionador de antinomias é o hierárquico, pois não há o que se falar em norma jurídica inferior contrária à superior. Isto ocorre porque “a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior”[9].
Por sua vêz, o ordenamento jurídico brasileiro está estruturado no art. 59 da Constituição Federal de 1988[10], razão pela qual, nenhuma norma jurídica poderá prescrever conduta diversa do que já delimitado pela nossa Constituição Federal, que é o fundamento de validade direto ou indireto de todas as normas jurídicas do Brasil.
Insistimos, da mesma forma que o pacto da convenção de arbitragem é um ajuste impregnado da noção de boa-fé e de cooperação entre as partes, opção feita no interesse de ambos os contratantes, a sua renúncia deve ser respeitada com idênticos fundamentos.
Por tais fundamentos, é perfeitamente cabível aplicar ao caso a regra da Súmula nº 335/STF, afastando – nesses casos específicos – a jurisdição e competência da CNRD.
……….
[1] “É válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato.
[2] “Art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. § 1o A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício. § 2o Após manifestação da parte contrária, o juiz decidirá imediatamente a alegação de incompetência. § 3o Caso a alegação de incompetência seja acolhida, os autos serão remetidos ao juízo competente. § 4o Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente.”
[3] Art. 28, § 5º – Lei n. 9.615/98 – O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
[4] Ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Direito adquirido diz respeito àqueles que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
[5] GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico. 15. ed. São Paulo: Rideel, 2012, p.448;
[6] “CF/88 – Art. 5º – XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
[7] “Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
- 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.” – destacamos.
[8] “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: III – forma prescrita ou não defesa em lei.”
“Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: IV – não revestir a forma prescrita em lei;”
[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 217.
[10] “Art. 59 CF/88. O processo legislativo compreende a elaboração de:
I – emendas à Constituição;
II – leis complementares;
III – leis ordinárias;
IV – leis delegadas
V – medidas provisórias;
VI – decretos legislativos
VII – resoluções
Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.”