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Decisão de Biden sobre transgêneros afeta o esporte

Joe Biden mal assumiu e já nos primeiros dias cumpriu uma das promessas de campanha. Através de uma ordem executiva publicada dia 20 de janeiro, ele suspendeu qualquer tipo de discriminação a transgêneros no país, o que inclui o esporte estudantil nos Estados Unidos.

A participação de atletas transgêneros no esporte é uma das discussões mais presentes no movimento esportivo, que tem usado a ciência como aliada para tentar encontrar uma equação que garanta a proteção de direitos fundamentais e mantenha o necessário equilíbrio esportivo. Mesmo assim, vira e mexe, o Estado entra nessa história.

Pelo Brasil existe até Projeto de Lei na Assembleia de São Paulo querendo proibir a participação de transgêneros no estado. Quer dizer, em terras paulistas não poderia jogar; em outros lugares, tudo bem. (!?)

Não. Não dá para concordar.

Primeiro porque a Assembléia está perdendo tempo – e desperdiçando dinheiro – discutindo sobre o que não pode juridicamente.

Segundo, porque há questões fundamentais de direitos humanos envolvidas nessa história.

Esqueça se você é a favor ou contra transgêneros no esporte, o mesmo vale para o VAR no futebol (sim, tem político querendo discutir o tema), ou para qualquer assunto relacionado ao jogo (não interessa o que você pensa, ou se eu sou a favor) e à organização interna das entidades esportivas.

A discussão que se propõe aqui é sobre a estrutura jurídica do movimento esportivo, leis e sobre proteção de direitos humanos.

A causa é boa, mas o caminho é perigoso

Com a ordem de Biden, jovens que se declararem mulheres, mesmo com identidade civil masculina, podem competir com outras mulheres, independentemente de questões biológicas.

Esse critério já tem afetado um dos pilares do esporte, o equilíbrio competitivo. As competidoras portadoras dos cromossomos XX (que a biologia determina como do sexo feminino) estão tendo menos chances de vitória em algumas competições estudantis nos Estados Unidos.

Em texto para o Lei em Campo, o colunista Vinícius Morrone escreve que “houve uma manifestação do Departamento de Educação apontando que essa autorização fere os direitos civis das mulheres, por ir de encontro ao Título IX das Emendas Educacionais de 1972, uma vez que muitos estudantes Estadunidenses recebem bolsas em suas universidades para disputarem competições esportivas.”

As instituições de ensino nos Estados Unidos investem muito no esporte. Bolsa de ensino para quem se destaca em alguma modalidade esportiva é algo muito praticado e funciona como um passaporte para um futuro melhor no país. Com uma vantagem física evidente, existe argumento para quem diz que esse critério pode diminuir as vagas para os indivíduos XX.

Já conversei com muita gente sobre o assunto, já pesquisei, li e escrevi muito aqui no Lei em Campo sobre o assunto. No meu entendimento, existe caminho para conciliar a proteção de direitos fundamentais e o equilíbrio esportivo.

A grande discussão do movimento esportivo

Reforçando: a participação de atletas trans tem sido uma das grandes discussões do esporte. Os dois lados têm argumentos que se baseiam na busca pela igualdade.

Quem defende a participação lembra a igualdade de direitos e o necessário combate à discriminação.

Quem é contra, levanta a bandeira da igualdade de condições entre os competidores, o princípio da “paridade de armas”.

O direito esportivo tem como um dos princípios fundamentais o da “paridade de armas”. Ou seja, dar condições iguais aos competidores para garantir a “incerteza do resultado”, que também é da natureza do esporte. Em tese, homens têm vantagens físicas – como força – sobre mulheres, o que levaria um atleta trans autorizado a jogar a romper com esse princípio.

Acontece que a não discriminação também é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico (inclusive Brasil e Estados Unidos), que também prega a bandeira da igualdade.

Esta na Carta Olímpica, no sexto princípio fundamental do Olimpismo, que é condenada qualquer discriminação dentro do esporte.

E tudo isso tem sido considerado nessa revolução recente que vive o esporte e a sociedade.

Nessa discussão, um personagem precisa ser protagonista: a ciência.

O que diz a ciência

Confrontados com casos como o de Tifanny do vôlei o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio TAS/CAS têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.

Mas calma lá para quem já quer gritar contra o caminho que o texto vai seguindo.

O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado pela entidade que não quer permitir a participação do atleta, usando testes científicos. Não é o atleta que tem que provar que pode competir.

Em função de decisões dos tribunais e dos princípios olímpicos, o COI estabeleceu, em novembro de 2015, novos critérios para permitir a participação de atletas transgêneros. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. A cirurgia de redesignação sexual não é mais obrigatória.

Embora ainda se verifique que as entidades esportivas têm tentado, com estudos científicos, proteger critérios para a preservação de uma competição mais igual, de acordo com princípios do direito esportivo, é possível também perceber uma clara abertura a questões de direitos humanos. Ou seja, a Lex Sportiva tem permitido diálogos entre diferentes ordenamentos jurídicos e se desenvolvido com isso. São os entrelaçamentos transconstitucionais que proporcionam aprendizados.

Esse assunto tem sido discutido no Brasil e no mundo. Com argumentos inteligentes e científicos dos dois lados. Acredito que o caminho tomado pelo COI e pelos tribunais, de controlar e acompanhar esse processo de transição, respeitando a natureza de cada um e tentando proteger a essência do jogo, seja o mais adequado.

Esporte muda a partir de provocações

O esporte, tentando proteger o equilíbrio esportivo, sempre foi resistente a presença de atletas trans. Mas ele jamais pode esquecer a sua natureza integradora e o Direito, que é uno.

Quando ele não protegeu direitos fundamentais, foi provocado pelos atletas que se sentiram injustiçados e buscaram tribunais para garantir aquilo que entendiam como justo.

Foi assim desde que Renée Richards, uma tenista trans norte-americana que buscou nos anos 70 a Suprema Corte para poder jogar o US Open na categoria feminina.

“Na visão da corte, o requerimento dos demandados de que o demandante deva passar pelo Teste de Barr para ser elegível para participar de competição feminina individual do US Open é grosseiramente injusto, discriminatório, desigual e violador dos direitos da atleta sob a Lei dos Direitos Humanos deste Estado”, escreveu o relator do caso.

Renée perdeu o campeonato, mas venceu a organização do tênis que precisou mudar regras e critérios de participação de atletas.

Depois dela, outros casos se repetiram.

A verdade é que o esporte tem autonomia para criar regras de elegibilidade, mas não pode esquecer direitos fundamentais. Autonomia não é sinônimo de independência.

E nessa hora é preciso lembrar sempre das palavras do meu eterno conterrâneo Mário Quintana:

“Diálogo Bobo
– Abandonou-te?
– Pior ainda: esqueceu-me?”

Nessa discussão em que há necessidade de se encontrar um caminho entre o equilíbrio esportivo e a proteção de direitos humanos, o diálogo não pode ser esquecido. E a ciência tem que fazer parte desse bate-papo.

Escutem Quintana.

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