A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) nesta quarta-feira (4) em que autoriza o Flamengo a receber público em partidas em que for mandante nas competições organizadas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) agitou os bastidores do futebol brasileiro.
Incomodados com o pedido do Rubro-Negro e com o parecer favorável, diferentes clubes da Série A se manifestaram publicamente contra a decisão do tribunal, que segundo eles, “atenta contra a integridade da competição, sua credibilidade e isonomia”.
“A decisão é liminar (ou seja, pode ser revista) e segue os preceitos sanitários emitidos pelo ente federativo compete, no caso, o Município do Rio de Janeiro. Então, do ponto de vista da legalidade e da razoabilidade, é válida, inclusive sob a ótica do Estatuto do Torcedor. Por outro lado, o CBJD tem como princípio, também, a estabilidade das competições (pro competitione). E é bastante compreensível argumentar, inclusive com lastro estatístico, que autorizar a presença de público para algumas equipes, em detrimento de outras, pode desestabilizar a competição”, avalia Victor Targino, advogado especialista em direito desportivo.
“No aspecto de equilíbrio da disputa, os clubes que tiverem sua torcida durante as partidas, poderão ser em alguma medida beneficiados indiretamente. Por outro lado, se pensar que as competições vigentes acontecem por todo o Brasil, algumas partidas ocorreram sem a torcida dos clubes disputantes, ainda que em seu Estado já seja permitido o ingresso de torcedores, já que alguns jogos acontecerão fora de casa. A decisão de permitir público nos estádios envolvem uma série de fatores alheios à questão do esporte em si. Portanto, desde que cumpra os requisitos de transparência na organização e demais regras impostas pelo Estatuto do Torcedor, qualquer reclamação em face desta decisão torna-se de difícil mensuração”, afirma Ana Mizutori, advogada especialista em direito desportivo.
“Diante disso, algumas frentes podem (e devem) se abrir. Uma, a CBF deve tentar equacionar a questão, inclusive dialogando com o Poder Público das localidades das demais equipes presentes na Série A, ao menos, a fim de obter autorizações similares. Outra, os próprios clubes devem pressionar a CBF e os respectivos poderes municipais e estaduais que lhes competem, a fim de que o desbalanço seja nivelado. Ainda assim, a palavra final sobre a reabertura de público é do próprio Poder Público”, completa Targino.
O tema é polêmico e passou a ser ainda mais discutido após o começo da pandemia de Covid-19, quando diferentes campeonatos do mundo foram paralisados. Em artigo no Lei em Campo, o advogado Higor Maffei Bellini fez uma análise sobre a situação.
“Como se comprova o desequilíbrio competitivo de um clube que tem torcida em um jogo e outro não? Nesse caso, as legislações específicas versam sobre a proteção do torcedor em relação à segurança, integridade física, o que implica que qualquer afronta à eventual decisão de liberação dos estádios à torcida se paute em critérios técnicos de afronta aos protocolos de segurança e outros direitos assegurados pela lei. No mais, resta difícil a confirmação de que este fator, por si só, geraria considerável desequilíbrio competitivo”, explica Ana.
Para expressar o descontentamento com a decisão, alguns clubes, como Corinthians, Palmeiras, Santos, São Paulo, Internacional e Bragantino publicaram textos praticamente semelhantes nas redes sociais, citando um acordo celebrado entre as equipes da Série A com a CBF, em março, na qual o retorno só ocorreria após uma nova rodada de debate, o que não aconteceu.
“O Palmeiras discorda integralmente da decisão que permitiu que apenas alguns clubes joguem com a presença de seus torcedores. A decisão atenta contra a integridade da competição, sua credibilidade e isonomia. A propósito, é de conhecimento público que os clubes da Série A, conjuntamente, em reunião do conselho técnico, decidiram que a retomada do público nos estádios somente aconteceria após definição de seu colegiado e essa decisão deve ser respeitada”, escreveu o Palmeiras, em nota.
“A fim de não haver desequilíbrio esportivo, o Corinthians é a favor de que o retorno do público se dê apenas nos termos da reunião de março de 2021 ou conforme futura decisão colegiada, sempre no sentido de garantir a isonomia da competição”, reforçou o Corinthians.
Segundo o despacho do presidente do STJD, Otávio Noronha, a autorização só será permitida para a carga máxima estabelecida pelos municípios e com obrigatoriedade do cumprimento de protocolos das autoridades locais.
“Antes de mais nada, qualquer decisão que envolva o retorno de público nos estádios deve estar em linha com as orientações das autoridades sanitárias, prefeitura, governo. Isso significa que cada cidade, de acordo com a situação que apresenta, pode permitir maiores flexibilizações quanto aos protocolos de prevenção ao COVID-19, enquanto outros, devem permanecer com maior rigidez. A decisão proferida pelo STJD deve se pautar em análise exclusivamente científica e objetiva, cabendo a reclamação do torcedor e das demais agremiações se verificada ofensa aos princípios da moralidade, da impessoalidade, ou seja, desviados dos critérios técnico”, ressalta Ana.
Em nota oficial, a CBF também criticou a decisão do STJD e disse que irá recorrer. A entidade ressaltou que tem seu próprio protocolo para o retorno do público aos estádios e que, dessa forma, “qualquer partida realizada com público em desconformidade com tal planejamento inspira grande preocupação”.
“O pedido do C.R. Flamengo e a decisão proferida contrariam deliberação tomada pelos Clubes em reunião do Conselho Técnico da Série A, ocorrida em 24 de março de 2021 que, dentre outras questões, vedou a presença de público nos estádios até nova apreciação do assunto pelos Clubes. Tal vedação é objeto de Diretriz Técnica que integra expressamente o Regulamento Especifico da Competição”, escreveu a CBF.
A “estabilidade das competições” é um dos preceitos básicos do Regulamento Geral das Competições da CBF, publicado em 4 de janeiro deste ano, e está descrito logo no Art.1º:
“Este RGC foi elaborado pela CBF no exercício da autonomia constitucional desportiva para concretizar os princípios da integridade, ética, continuidade e estabilidade das competições, do fair play (jogo limpo) desportivo, da imparcialidade, da verdade e da segurança desportiva, buscando assegurar a imprevisibilidade dos resultados, a igualdade de oportunidades, o equilíbrio das disputas e a credibilidade de todos os atores e parceiros envolvidos”, diz um trecho do artigo.
A situação é diferente na Libertadores. Lá, a Conmebol já autorizou o retorno dos torcedores aos estádios a partir das oitavas de final, também seguindo o que determina cada autoridade local. Nesse cenário, o Flamengo transferiu a partida contra o Olimpia-PAR para o Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília, onde 30 mil pessoas poderão acompanhar o confronto, de acordo com o protocolo do Governo do Distrito Federal (GDF).
Para Victor Targino, por se tratar de um momento tão desconhecido na história, é normal que ocorra diferenças de critérios que influenciem em decisões como essa.
“Independentemente, o que enxergo, inclusive tendo em conta o exemplo dos EUA que, como nós, também é uma Federação, que o provável desequilíbrio entre as equipes será temporário, à medida em que a vacinação avança. É natural, num cenário tão inédito e emergencial como o presente, que a reabertura seja gradual, mais lenta e com critérios distintos em alguns locais do que outros e, portanto, algumas equipes acabarão por ser mais desfavorecidas do que outras, no particular, especialmente em localidades em que a vacinação ainda esteja relativamente atrasada e/ou que a ocupação de leitos hospitalares esteja saturada”, finaliza o advogado
Crédito imagem: Alexandre Vidal/Flamengo
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